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O cientista político André Singer questiona a expressão “Jornadas de Junho”, usada por parte do campo de esquerda no espectro político brasileiro. A expressão é ancorada no livro O

18 Brumário de Luís Bonaparte (2011), em que Karl Marx analisa a conjuntura aberta pela

revolução de 1848, numa tentativa insurrecional do proletariado, esmagado pela repressão do general Cavaignac. Para Singer (2013), a exemplo da revolução de 1848, o junho brasileiro também produziu “um tremor de terra, porém não chegaria à qualidade de terremoto, uma vez que o travejamento fundamental da ordem não foi questionado” (SINGER, 2013, p. 24). Em síntese, a relação de classes não estava no centro das manifestações. Em vez de jornadas, Singer

(2013) adere à opção de intelectuais franceses dada a outro evento – o maio de 1968 –, cuja dificuldade de nomeá-lo fez com que simplesmente enunciasse “acontecimentos de maio”29.

“Acontecimentos de junho” apontam para a própria dificuldade de interpretar os eventos que se sucederam, porém Singer (2013) sinaliza duas linhas interpretativas em curso até sua análise, na qual formula uma terceira – mas ficamos com a impressão de que o cientista político não se conteve somente em perceber que há algo parecido nessa cena com a de maio de 1968, caindo na armadilha de buscar uma explicação para resolver o problema, o que, se possível, deixaria de se constituir enquanto acontecimento. O primeiro ponto de vista, escrito ainda no calor dos eventos, é de Armando Boito Jr., cientista político da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). No artigo publicado no jornal Brasil de Fato, em 2 de agosto de 2013, Boito crê que foi a classe média que puxou as manifestações: a classe média que “tem alta escolaridade para os padrões brasileiros e viu sua formação ser depreciada pelos rumos do capitalismo em nosso país” (BOITO, 2013). Enquanto o acesso à universidade foi ampliado, foram “criados cerca de 20 milhões de empregos, mas a maioria foram postos de trabalho que requerem pouca formação e oferecem remuneração entre um a dois salários mínimos” (BOITO, 2013).

O outro ponto de vista é do professor do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) Rui Braga (2013), ao considerar:

A massa formada por trabalhadores desqualificados e semiqualificados que entram e saem rapidamente do mercado de trabalho, por jovens à procura do primeiro emprego, por trabalhadores recém-saídos da informalidade e por trabalhadores sub- remunerados – está nas ruas manifestando com o atual modelo de desenvolvimento (BRAGA, 2013, p. 82).

Singer (2013) entra no debate trazendo para a discussão a via do pós-materialismo, formulada pelo cientista político Ronald Inglehart:

Para Inglehart, à medida que as sociedades vão resolvendo os seus problemas materiais ocorre uma mudança de valores, os quais passam gradativamente daqueles que enfatizam “a segurança econômica e física” para aqueles que ressaltam “a autoexpressão e qualidade de vida” (SINGER, 2013, p. 37).

29 Entre os filósofos que aderem à nomenclatura “acontecimento de maio de 1968”, está Alain Badiou (2012), que

traz de forma recorrente a temática. Em A hipótese comunista, entre os mais recentes trabalhos publicados no Brasil, “Maio de 1968 é em si um acontecimento de grande complexidade. É impossível oferecer uma imagem unificada e cômoda. Quero transmitir a vocês essa divisão interna, essa multiplicidade heterogênea que foi Maio de 1968” (BADIOU, 2012).

No curso da análise, há sempre algo a mais que não se resume às lutas tradicionais das últimas décadas do século passado, quando a terra, o trabalho, a moradia etc. eram as bandeiras pelas quais se lutavam. Esse algo a mais, identificado por Inglehart como “qualidade de vida”, foi, na leitura de Singer (2013), o mote da segunda fase dos protestos, seguidos a partir do dia 17, alcançando seu auge no dia 20, quando uma explosão de temas foi levada para as ruas, ocupando a cena da redução de R$ 0,20 na passagem do transporte urbano.

As primeiras mobilizações foram circunscritas mais à cidade de São Paulo nos dias 6, 10, 11 e 13 de junho, acrescidas de duas manifestações no Rio de Janeiro nos dias 6 e 10. Vias públicas eram paralisadas. O confronto com a polícia deu-se ao passo que algo fora da “ordem” escapava das estruturas, tudo isso apimentado pelo discurso da grande mídia. Se nas ruas manifestantes davam a cara pra bater, a demanda vinha das redes sociais. Não era a primeira vez que o MPL convocava a sociedade pelas redes sociais. Enquanto nas ruas o confronto entre os manifestantes e a Polícia Militar acirrava os ânimos, a grande imprensa estampava nos jornais, prédios públicos depredados.

Muitas cenas de violência policial e destruição do patrimônio por grupos de jovens foram reportados pelos jornais. A repetição e insatisfação dos embates levaram o governador paulista, Geraldo Alckimin, a anunciar um endurecimento para a quarta demonstração (na quinta, dia 13), quando um número indefinido de pessoas – a Polícia Militar (PM) calculou 5 mil, segundo os organizadores havia 20 mil – marchou praticamente do centro da cidade até a rua da Consolação, sendo impedidas de prosseguir em direção à avenida Paulista. A partir daí inicia-se repressão violentíssima, que se espalha por ampla região da pauliceia, tendo a PM atuado sem controle e por horas, atingindo transeuntes e jornalistas de maneira indiscriminada. Depoimentos de partícipes e observadores deram conta de policiais “enlouquecidos” e “cenas de guerra” a céu aberto (SINGER, 2013, p. 25).

A cidade de São Paulo perdeu foco somente com o início da Copa das Confederações, em 16 de junho. As praças de Brasília, Fortaleza, Salvador, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, onde aconteceram os jogos, passaram a ser alvo dos manifestantes.

No dia 19, a prefeitura do município e o governo de São Paulo revogam o aumento da tarifa. No dia seguinte, “em suposta comemoração”, a onda atinge o ponto máximo, com demonstrações em mais de 100 cidades, algumas delas gigantescas, alcançando, no conjunto, cerca de 1,5 milhões de participantes. Quatro dias depois, em resposta, a presidente Dilma Rousseff propunha a Constituinte exclusiva para a reforma política, a qual seria, de acordo com o projeto, depois submetido ao plebiscito popular (SINGER, 2013, p. 26).

Nessa transição entre os protestos focados na redução de R$ 0,20 nas passagens de ônibus e nas mobilizações contra a Copa das Confederações e as mais de 100 cidades fervilhando em manifestações, as ruas deixaram, a princípio, de ser o palco de uma bandeira de

luta para sediar a multiplicidade de demandas, como se o país tivesse sido acometido por uma rebelião de desejos.

A filósofa Marilena Chauí (2016) observa que o discurso em torno de um único conteúdo para explicar as primeiras manifestações não se sustenta. Em entrevista concedida à revista Cult de fevereiro de 2016, dá um pouco a dimensão da dissonância agravada por uma resposta violenta com traços fascistas:

Em 2013, o movimento foi algo inesperado. Pouco antes das manifestações eu estava dando um seminário na faculdade e ouvi um tambor pelos corredores. Me falaram: “é o Movimento do Passe Livre, que está convocando uma reunião”. Havia só uns 30, 40 gatos pingados. Até que eles puseram nas redes sociais e aconteceu aquela movimentação toda. Mas na primeira manifestação tinha de tudo. Era um evento com a motivação mais diversa possível. Não estou dizendo que era um movimento totalmente despolitizado, mas que tinha um pequeno conteúdo determinado pelo grupo do Passe Livre, ao qual se juntaram outras formas de descontentamento. Foi estarrecedor ver que, na segunda manifestação, quando a juventude começou a comemorar, levando bandeiras do PT, do [Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado] PSTU, do PSOL, do movimento dos sem teto, apareceram jovens embrulhados na bandeira do Brasil, atacando, espancando e ensanguentando os manifestantes de esquerda. Assim, em lugar do conflito democrático, passou-se ao combate violento e à agressão ao adversário. Mas algo curioso aconteceu: construiu- se um sentido político para toda aquela movimentação. A própria mídia que falava dos “vândalos” da primeira manifestação, depois passou a falar de “manifestantes”. Houve uma construção política de uma manifestação que não existiu realmente como construção política (CHAUÍ, 2016).

Chauí (2016) aponta uma dissonância nas análises que dividem o acontecimento junho de 2013 entre a primeira fase, na qual as manifestações estariam sob a bandeira de luta contra o aumento da tarifa do transporte urbano; e a segunda fase, quando uma série de outros temas surgiu de forma mais expressiva nas manifestações. A observação mostra que, já na primeira manifestação, após a mediação pelas redes sociais da internet, tinha-se, com o MPL, “outras formas de desconhecimento” (CHAUÍ, 2016). Entre essas formas, manifestantes enrolados na bandeira do Brasil que expulsavam militantes partidários, como se fossem legítimos defensores do país por vestirem em seus corpos o símbolo da nação. Consideremos esses manifestantes que exaltam símbolos nacionais como nacionalistas. Eles são uma das séries do acontecimento junho de 2013, ou seja, uma estrutura, e, enquanto tal, não importa quem são as personagens, elas apenas preenchem um espaço vazio a ser ocupado. Assim, personas ocupam uma posição estruturada em diferentes períodos das manifestações, como observado nos anos seguintes, até consolidar-se o golpe mascarado em processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 31 de agosto de 2016, com a cassação da presidenta.

Voltemos a Žižek (2012a, p. 65) quando diz: “De que serve nossa famosa liberdade de escolha quando a única escolha que temos é entre as regras e a violência (auto)destrutiva?”.

Essa força a mais que se manifesta em séries é a dimensão da violência que não tem corpo nem lugar, apenas estrutura que se deixa ser preenchida. Assim, independentemente da identificação dos manifestantes – do MPL, aqueles que se enrolam na bandeira do Brasil, os black blocs etc. –, esses movimentos preenchem estruturas fundadas sobre a violência como condição ética do desejo, no qual nenhuma construção conforme as regras estabelecidas e que estruturam a realidade pode satisfazer ao desejo. Por isso, todo movimento do desejo será sempre destrutivo, oposto às regras.

Mas não basta concordar com a dimensão estrutural da violência como condição do desejo. Há por parte dos manifestantes enrolados em bandeiras do Brasil um retorno daquilo que Lacan (2005) chama recalcado, ou seja, daquilo que não foi simbolizado e retorna no Real. O retorno expresso nessa série constitui um dos campos de forças do acontecimento junho de 2013, cuja expressão da violência se enquadra no que Foucault (2010) chama de vida fascista, como escreveu na apresentação de O anti-édipo, de Deleuze e Guattari. Na apresentação “Por uma vida não fascista”, Foucault (2010) exalta a grandeza da obra O anti-édipo como um livro que funciona tal qual uma máquina de guerra que não se deixa subtrair por uma ordenação fascista da vida.

Nessa via, uma posição de negação ao diferente não estaria relacionado apenas aos governos totalitários, como o nazismo, na Alemanha, ou o fascismo, na Itália, ou ainda o comunismo, na Rússia, todos como expressão de um único modo de vida. Bem diferente de uma perspectiva macro, Foucault (2010) adverte para o fascismo inscrito na maneira como nos implicamos no discurso com o outro. Ao fazer prevalecer seu ponto de vista nas microrrelações, como o único possível, acaba por caracterizar uma vida fascista. Ora, quando Chauí (2016) adverte para a violência praticada pelos manifestantes enrolados na bandeira do Brasil a fim de impedir que militantes políticos e sociais integrassem as manifestações, estamos diante de uma série cuja natureza seria o retorno do reprimido – do que não foi simbolizado – da ditadura militar enquanto sintoma do país que não foi suficientemente falado, produzindo sentidos suficientes para que seu trauma fosse saturado, ou seja, para que se produzisse o não sentido.

A dissonância não se dá somente na diferença realizada entre os manifestantes. Há um atrito no período enquadrado como a primeira fase das manifestações – nos dias 6, 7, 11 e 13 (versão contestada pela filósofa Marilena Chauí) –, cuja força estava concentrada na luta pela redução de R$ 0,20 no transporte público da capital São Paulo. Como sustentar a ausência de identificação de partidos políticos de esquerda e de movimentos sociais de grandes protestos chamados pelo MPL?