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A afirmação do fora – linha de fuga que se forma no que se refere aos dispositivos de captura do sujeito e que pode também ser relacionada com a rebelião do desejo – cria uma nova experiência com o tempo e o movimento. Leva-nos à compreensão do que constitui, em Deleuze e Guattari (2010), o movimento aberrante. Ou seja, o movimento – seguindo Bergson – são duração e relações de tempo, mas duração e relação que contrariam a circularidade do tempo. Quando Deleuze (1997b, p. 36) pensa: “As quatro fórmulas poéticas que poderiam resumir a filosofia kantiana”, título de um de seus textos em Crítica e clínica (1997b), ele parte de uma citação de Shakespeare, em Hamlet, para falar desse movimento: “O Tempo está fora dos gonzos” (apud 1997, p. 36). Os gonzos são as dobradiças que existem na porta, o que permite o movimento de abri-la e fechá-la. O tempo estaria assim subordinado ao movimento que constituiria a abertura ou a “fechadura”.

Na epígrafe do texto de Deleuze (1997b), há uma inversão da lógica: “O Tempo está fora dos gonzos”. O autor busca afirmar que, com a saída do tempo dos seus gonzos, o tempo que era subordinado ao movimento (tradição aristotélica) se inverte, e o movimento passa a se subordinar ao tempo:

O tempo já não se reporta ao movimento que ele mede, mas o movimento ao tempo que o condiciona. Por isso o movimento já não é uma determinação do objeto, porém a descrição de um espaço, espaço do qual devemos fazer abstração a fim de descobrir o tempo como condição do ato (DELEUZE, 1997b, p. 37).

Condição do ato de tudo que se move e muda. “Ele é uma forma de tudo o que muda e se move, mas é uma forma imutável e que não muda” (DELEUZE, 1997b, p. 38). O tempo não está relacionado com o eterno, porque não muda, mas com o que não é eterno, como ele afirma, com “a forma imutável da mudança e do movimento” (DELEUZE, 1997b, p. 38). A síntese melhor Deleuze (1997b) retira de outra citação, agora de Rimbaud, em forma também de epígrafe: “Eu é um outro”. E segue:

O Eu [Moi] está no tempo e não para de mudar: é um eu passivo, ou antes, receptivo, que experimenta as mudanças no tempo. Eu [Je] é um ato [eu penso] que determina ativamente minha existência (eu sou), mas só de determiná-la no tempo, como a existência de um eu [moi] passivo, receptivo e cambiante que representa para si tão somente a atividade do seu próprio pensamento (DELEUZE, 1997b, p. 38).

Estamos novamente às voltas do virtual e do atual que, aqui, ganham os contornos das duas expressões em francês, às quais não encontramos equivalente em português: moi (virtual, estrutura, síntese passiva) e je (atual, diferença, síntese ativa). Em Diferença e repetição (DELEUZE, 1988), essa diferença aparece na síntese passiva e na síntese ativa, que constituem o par de oposição, as sínteses do tempo. O que nos interessa, sobretudo, é a segunda síntese: o

passado puro. A primeira (o hábito), considerada ordinária, constitui o tempo como presente

que passa e que molda o hábito, ou seja, “o solo movente ocupado pelo presente que passa” (DELEUZE, 1988, p. 85). Deleuze (1997b, p. 85-96) dirá:

O passado não é o antigo presente, mas o elemento no qual este é visado. Do mesmo modo, a particularidade está agora no visado, isto é, no que “foi”, ao passo que o próprio passado, o “era”, é, por natureza, geral. O passado em geral é o elemento em que se visa a cada antigo presente em particular e como particular. [...] O antigo e o atual comporta necessariamente uma dimensão a mais pela qual ele re-presenta o antigo e na qual ele também representa a si próprio.

O que isso mostra? Que não há forma de representar o passado puro, no qual a representação se divide em dois gestos, de apontar para o antigo presente e, ao mesmo tempo, de constituir a si próprio. O movimento de representar constitui-se como um atual que se apresenta, ou seja, uma diferença em curso. A diferença é marcada pelo que se visa, mas o que é visado é de outra natureza, não deixando misturar-se. Por isso, passado puro opõe-se ao antigo presente, assim como o virtual se opõe ao atual.

Para desenvolver melhor a ideia, pensemos no conto de Kafka (1999) “Diante da lei”, em que um camponês passa uma vida inteira tentando entrar pela porta da lei. Somente no fim da vida, o camponês, então, pergunta: “Todos aspiram à lei – diz o homem. – Como se explica que em tantos anos ninguém além de mim pediu para entrar?” (KAFKA, 1999, p. 29). É nesse momento que vem a revelação27: “– Aqui ninguém mais poderia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a” (KAFKA, 1999, p. 29).

Ora, não estamos diante de um passado puro, irrepresentável? Não há proibição, não há lei, apenas a crença em sua existência e que faz com que o camponês não passe pela porta. No capítulo 4 de Diferença e repetição (DELEUZE, 1988), ou sobretudo no capítulo 6 de Lógica

do sentido (DELEUZE, 2006d), ou ainda no texto “Em que se pode reconhecer o

estruturalismo”, de A ilha deserta (DELEUZE, 2006c), a psicanálise, com destaque à obra de Lacan, é um ponto de ancoragem28.

No texto de Deleuze sobre Kant, aparece de forma secundária, com uma rápida referência, a articulação com o grande Outro lacaniano:

Estou separado de mim mesmo pela forma do tempo ao operar sua síntese, não só de uma parte sucessiva à outra, mas a cada instante e porque o Eu é necessariamente afetado por ele enquanto contido nessa forma. A forma do determinável faz com que o Eu determinado represente para si a determinação como um Outro.

Estamos operando a forma passiva do tempo na sua articulação com o grande Outro, no qual o Eu (Moi) está inscrito passivamente. Para retornar à fala de Safatle (2012a, p. 46) de que “existem certos momentos na história em que um acontecimento aparentemente localizado, regional, tem a força de mobilizar uma série de outros processos que se desencadeiam em diversas partes do mundo”, referindo-se aos sucessivos protestos do Oriente ao Ocidente desde 2011, poderíamos dizer que há uma multiplicidade de singularidades que marcam o nosso tempo, mas que se constituem sobre uma estrutura, no qual o sujeito está inscrito nesse tempo, enquanto o sujeito identificado com o Eu (Je) desenvolve atos que determinam efetivamente sua experiência.

27 Pela via lacaniana, podemos dizer que a revelação desconstrói o imaginário do camponês da existência da lei

universal, para todos (o que levaria a funcionar como o grande Outro), processo que reforça a observação de Salecl (2005), de que para Lacan o Outro não existe, mas, sim, a crença em sua existência, assim como o camponês passou a vida inteira tentando entrar pela porta da lei.

28 Concordamos com a leitura de João Gabriel Alvez Domingos, em “Deleuze e Lacan em três tempos”, texto

publicado na revista Exaguium, em 2009, que apresenta essas três obras nas quais Deleuze recorre à psicanálise. Domingos, ainda, acrescenta Empirismo e subjetividade.

Há um tempo puro no qual os falantes estão inscritos, cuja determinação destes constitui a multiplicidade em forma de rizoma, impedindo uma imagem dos acontecimentos, das singularidades, das atualizações em curso. Esse tempo puro, operamos enquanto estrutura, tal qual Deleuze (2006c) interpreta ao ser interrogado sobre o que é o estruturalismo:

Aquilo que é estrutural é o espaço, mas um espaço inextenso, pré-extensivo, puro

spatium constituído cada vez mais como ordem de vizinhança, em que a noção de

vizinhança tem precisamente, antes, um sentido ordinal e não uma significação na extensão. [...] Em suma, os locais num espaço puramente estrutural são primeiros relativamente às coisas e os seres reais que vêm ocupá-los; primeiros também em relação aos papéis e aos acontecimentos sempre um pouco imaginários que aparecem necessariamente quando são ocupados (DELEUZE, 2006c, p. 225).

Como Deleuze (2006c) afirma, a estrutura é um sistema de elementos e de relações diferenciais em que seus ocupantes são de outra natureza, operando por meio de papéis sociais, ou seja, imaginários, oriundos de suas crenças. A estrutura assim é irrepresentável; apenas uma dimensão topológica sobre a qual as diferenças em curso se movimentam.

Esse movimento segue na mesma noção de linguagem enquanto estrutura que ultrapassa os usos dos falantes. Se ultrapassa, há sempre algo que escapa aos falantes, mas enquanto estrutura ele está submetido às suas regras. Nesse jogo entre estrutura e fala (ou parole e

langue), que se constitui no jogo de diferença – já que o atual é de outra natureza em relação ao

virtual –, há sempre um objeto que não se inscreve, isto é, que não está na estrutura nem nas atualizações que se dão sobre ela. Esse objeto, Deleuze (1996g) chama de virtual.