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A RASGADURA DA REPRESENTAÇÃO OU A INFECÇÃO NO LUGAR VAZIO

O movimento de se abrir para a dupla representação, desarticulando a relação entre palavras e coisas, sucede-se numa amarração discursiva que se assemelha à da relação entre sonho e sonhador, só que, nesse caso da pintura, o sujeito está à frente. Didi-Huberman (2013) cita que para o bom-senso assemelhar consiste em “unidade formal e ideal de dois objetos, de duas pessoas ou de dois substratos materiais separados; o trabalho do sonho, ao contrário, dá a Freud a ocasião de insistir no vetor de contato, material e não formal (Berührung), que engendra na imagem onírica os processos ou as vias da semelhança” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 198, grifos do original).

Com Freud (2001), a semelhança não depende mais de certa equivalência formal, ao menos ancorada na razão; há um desprendimento da forma, que se dará por processo:

Uma figuração em ato que vem, aos poucos ou de repente, fazer se tocarem dois elementos até então separados [ou seja, cuja forma não se assemelha ou que não se articulariam] (ou separados segundo uma ordem do discurso). Daí então, a semelhança não é mais uma característica inteligível, mas um movimento surdo que se propaga e inventa o contato imperioso de uma infecção, de uma colisão ou então de um disparo (apud DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 198).

O trabalho dos sonhos “rasgará por dentro a serenidade” que conciliaria as formas ou que lhes daria uma ordem discursiva que relacionaria formas diferentes numa composição da realidade. Com base no trabalho dos sonhos em Freud, Didi-Huberman (2013) mostra que devemos, também, pensar o ponto pelo qual interessa ao campo da estética a interação entre

espectador e imagem, ou seja, rasgando a noção de representação responsável por articular a realidade e, assim, inserir o sujeito nesse lugar vazio, infeccioso, mas penetrante, de um estranho objeto que não cessa de apontar.

A imagem de quatro moedas de cinco centavos, seguida da frase que afirma a diferença em relação ao texto, funciona nessa rasgadura da serenidade entre palavras e coisas, ou entre imagens e as coisas a que elas se assemelham. Rompe-se o indiciamento entre a linguagem e os existentes. Permanece, nesse espaço aberto, o estranho objeto. A vertigem que assola jornalistas e comentadores vem desse rompimento.

Na capa de O Globo, de 7 de junho de 2013, a manchete “Agência de risco põe Brasil em viés de baixa”, referindo-se ao pouco crescimento econômico do país, vem logo abaixo do nome do jornal, na parte superior, mas ao centro da página uma foto invade todo o olhar – ela mostra uma rua bloqueada com objetos pegando fogo e dois manifestantes, em destaque, levando uma caixa ao meio do bloqueio. A manchete abaixo da foto (Figura 11) simplesmente informa sobre os protestos: “Protesto contra passagens de ônibus em quatro capitais”.

A expressão sobre o estranho objeto apareceria de forma explícita mais tarde, na matéria de 24 de janeiro de 2016, com o título “Crimes cometidos em protestos não renderam condenações em SP” (DANTAS, 2016). Para ilustrar o texto na versão online, a mesma imagem reaparece. Na legenda: “Sem punição. Manifestantes incendeiam objetos para bloquear avenida em protestos de junho de 2013, em São Paulo; protesto foi mobilizado pelo MPL”. O retorno da imagem funciona como repetição desse estranho objeto, que reaparece como gesto violento, rasgando a matéria de sua condição informativa para deixar vazar os sentidos produzidos pelo estranho objeto. Para voltar a Foucault (1999, p. 5), “nós espectadores, estamos em excesso”. Poderíamos dizer que, nós, espectadores dos jornais, estamos excedendo-nos nos excessos do veículo, pelo qual o jornalista compõe uma posição discursiva.

Figura 11 – A rasgadura da imagem

Fonte: foto da capa de O Globo, de 7 de junho de 2013

O vazio, ou o Real, permanecerá nesse face a face como causador da rasgadura da representação e por meio dele o sujeito se constituirá nesse excesso, nessa diferença para mais, nessa diferença que rompe com a semelhança.

5.7 FURO

É no encontro do olhar do pintor com o do espectador que a esquize faz o mundo da representação ruir, instaurando o enigma: quem o pintor representado estaria pintando? Nesse a mais, Foucault (1999) articula a dupla representação. Mas, se em vez de problematizar pelo espectador na posição do casal real, a questão girasse em torno da força que mobiliza o sujeito?

Não por acaso, observa Quinet (2004) em Um olhar a mais: ver e ser visto na

psicanálise, que a noção de perspectiva na pintura coincide com o tempo de Descartes, cujo cogito inventa o sujeito moderno. A perspectiva que conduz a visão e ordena os objetos da

representação se encontra com o ponto infinito (o olhar do pintor para fora da tela) e deixa em falta o sujeito, já que algo ficaria de fora do campo visível. A visão do espectador já não se sustenta mais no ponto de vista do quadro, fazendo emergir o olhar nesse a mais em curso. Esse ponto de dobra do olho para o olhar é o furo.

O furo na pintura apontaria, como na tese freudiana do objeto, para um objeto perdido. É nesse ponto que Lacan (1997b) desenvolve sua teoria do objeto como causa de desejo. O que causa desejo sem encontrar seu par de realização, o objeto parcial, o psicanalista nomeia de

objeto a. Não estamos falando propriamente dos olhos de Velázquez na tela, mas de um olhar que nos toma de assalto, o objeto a na sua modalidade escópica funcionando como um estranho em nós mesmos.

Quando Guimarães (2010) diz, ao observar a dimensão topológica da leitura de Foucault sobre o quadro Isto não é um cachimbo, que “é a inevitabilidade que nos faz relacionar o texto ao desenho” (2010, p. 21), poderíamos acrescentar, seguindo Lacan (1997b), que o inevitável é a presença do objeto a que se estende nos objetos parciais, como numa pintura, e nos olha causando desejo.

O furo demonstra um ponto de vista fora do sujeito, mas que o integra, sem o qual não existiria. Quinet (2004) afirmou sobre o furo de Brunelleschi (1377-1446) que, em síntese, tal furo se refere a um protótipo que tem a função de demonstrar um campo de visão de uma perspectiva artificial5 por um mesmo ponto. O método

com uma pequena tábua quadrada sobre a qual pintou uma representação do exterior do Batistério de San Giovanni, em Florença. Quando terminou o quadro, Brunelleschi fez um furo bem na altura da linha do horizonte, coincidindo com seu ponto de vista. Em seguida, pediu a um observador que colocasse o olho no furo atrás do quadro e que, enquanto segurava o quadro com uma das mãos, segurasse um espelho com a outra, de tal forma que este refletisse a pintura ao ser colocado exatamente onde ele havia retratado o Batistério de San Giovanni. O espectador tinha a impressão de ver a cena real ao olhar para o através do espelho (QUINET, 2004, p. 143-144).

Para Quinet (2004), fica evidente que Brunelleschi não precisaria de todo esse aparato para demonstrar o efeito da perspectiva artificial, mas sim fazer “coincidir a pintura de um objeto com sua visão” (QUINET, 2004, p. 144).

A distância entre o espelho e a pintura constitui o espaço necessário para a projeção do quadro. Esse ponto de projeção é o da fuga, no qual convergem as linhas da perspectiva. Temos nesse encaminhamento o ponto de vista do espectador e o ponto principal do quadro, conduzido, num primeiro momento, pela perspectiva. “Ele introduz o olho do pintor e, da mesma feita, o do espectador no quadro” (QUINET, 2004, p. 144).

Quinet (2004) introduz, assim, o debate sobre a perspectiva artificial para chegar à discussão que Lacan (1997b) faz no seminário 11, especificamente na parte “Do olhar como objeto a minúsculo”. Se a perspectiva com Brunelleschi começou a ter destaque no século XV, no XVI passou a ter centralidade.

5 No século XV, período de Brunelleschi, a perspectiva geométrica era interpretada como um efeito da realidade:

“É tida por artificial para distinguir-se da perspectiva naturalis, que corresponde à teoria da visão direta que se confundia com a ótica” (QUINET, 2004, p. 144).

Para Lacan (2008, p. 93), “a relação do sujeito com o órgão [olho] está no coração de nossa experiência”. Tomaremos, sobretudo, essa relação em destaque para sustentar o sujeito do desejo na sua modalidade escópica, funcionando como baliza para pensar as imagens nas revoltas de junho. Sobre o desejo na modalidade escópica, Lacan (2008, p. 95) pergunta: “Mas qual é ele, o desejo que se pega, que se fixa no quadro? – mas que, também, o motiva a impulsionar o artista a pôr algo, e o quê, na obra?”.

A perspectiva conduz a visão, porém esta é apreendida por um fio condutor. Esse domínio da perspectiva, Lacan (2008) chama de geometral e é dado pela luz. É a luz que se propaga em linha reta, que nos dá o fio, nos dá a projeção da linha reta, que constitui a perspectiva. Situando-se em oposição a uma tradição filosófica – de Platão a Kant – que coloca essa relação da aparência do ser (a perspectiva artificial conserva a aparência da perspectiva natural) – já que a projeção de um fio não é dada por ele mesmo, mas pelo jogo de luz –, Lacan (2008) diz que o essencial está em outro lugar.

Não está na linha reta, está no ponto luminoso – ponto em irradiação, jorro, fogo, fonte borboteante de reflexos. A luz se propaga sem dúvida em linha reta, mas ela refrata, se difunde, inunda, preenche – não esqueçamos essa taça que é nosso olho – ela também transborda, ela necessita, em torno da taça ocular, toda uma série de órgãos, de aparelhos, de defesa. Não é simplesmente à distância que a íris reage, mas também à luz, e ela tem que proteger o que se passa no fundo da taça, que poderia, em certa conjuntura, ser lesada – e nossa pálpebra, também ela, diante de uma luz demasiada, é chamada a piscar primeiro, senão a se fechar numa careta bem conhecida (LACAN, 2008, p. 95).

Para explicar o ponto luminoso, Lacan (2008) conta uma história pessoal, de quando tinha cerca de 20 anos e estava num barquinho com pescadores de um pequeno porto na Bretanha. No momento de puxar a rede, Joãozinho mostra para Lacan alguma coisa que boiava na superfície das ondas. Era uma latinha de sardinha: “Ela respelhava ao sol. E Joãozinho me diz – Tá vendo aquela lata? Tá vendo? Pois ela não tá te vendo não!” (LACAN, 2008, p. 97).

A observação que Lacan faz desse episódio é o nó que queremos trabalhar: “Se tem sentido Joãozinho me dizer que a lata não me via, é porque, num certo sentido, de fato ela me olhava. Ela me olha, quer dizer, ela tem algo a ver comigo, no nível do ponto luminoso onde está tudo que me olha, e aqui não se trata de nenhuma metáfora” (LACAN, 2008, p. 97).

Com esse exemplo, o psicanalista sustenta o fato de que a imagem do que se vê se constitui em mancha no olho enquanto órgão, que é para ele o quadro. O sujeito, assim, “é a mancha no quadro. [...] Sem dúvida, no fundo do meu olho, o quadro se pinta. O quadro, certamente, está em meu olho. Mas eu, eu estou no quadro” (LACAN, 2008, p. 97-98).

O ponto de fuga é dado por essa mediação entre o ponto luminoso do espaço óptico geometral (a perspectiva na pintura) e o ponto luminoso do olhar nesse anteparo. Para elucidar a questão, Lacan (2008) cita o quadro Os embaixadores, de Holbein, de 1533. Na pintura, um objeto estranho – a anamorfose de um crânio – funciona como esquize entre a visão e o olhar. Nas representações dos embaixadores Jean de Dinteville e George de Selve, assim como dos objetos de saber da época – globo terrestre, esquadro, compasso, relógio solar etc. –, a visão é tomada por uma coisa (anamorfose de um crânio) que se desvencilha da função mimética de todo o restante do quadro.

Quinet (2004, p. 149) comenta que o olhar como:

objeto a surge através da anamorfose da caveira como manifestação de seu poder de aniquilamento do sujeito, que fica medusado diante dela e remetido a sua própria castração, figurada por sua mortalidade. A caveira é o olhar do quadro olhando para o espectador Este, de observador torna-se visto. É o quadro quem o olha.