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Para Vainer (2013, p. 36), parafraseando Mao Tsé-Tung, “uma fagulha pode incendiar uma pradaria”. À primeira vista, somos levados às evidências de que a fagulha foi a mobilização contra o aumento de R$ 0,20 da tarifa de ônibus em São Paulo. Diferentemente de Cidades

Rebeldes, no qual Vainer (2013) publicou seu texto, não faltam livros20 nem matérias pontuando

a sucessão de fatos desde o dia 6 de junho – quando integrantes do MPL, entre outros ligados a partidos de esquerda, protestaram em frente à prefeitura da cidade de São Paulo – ao dia 20, numa sequência de sete atos, tendo como ingrediente a mais o dia 21 de junho, marcado pelo segundo pronunciamento da presidenta Dilma Rousseff à nação, quando assume: “As manifestações desta semana trouxeram importantes lições”21.

“A pradaria, como agora se sabe, estava seca, pronta para incendiar-se” (VAINER, 2013, p. 36). De janeiro a junho de 2013, houve protestos contra o preço das passagens do transporte público em todas as capitais do país e no Distrito Federal22. Como numa planície vasta, sem sinal de árvores ou arbustos, somente capim baixo, a vegetação mostra-se num horizonte a se perder de vista. Marcelo Pomar (2013), um dos fundadores do MPL, no livro

Vinte centavos: a luta contra o aumento, dá uma noção desse processo que antecede muito o

ano de 2013:

Já se vai uma década: Salvador, Bahia, agosto de 2003. Milhares de pessoas ocupam as principais vias da cidade durante mais de três semanas [...]. Uma luta para derrubar mais um aumento de tarifas de ônibus na capital baiana, curiosamente de vinte centavos. [...] Florianópolis, Santa Catarina, junho de 2004. Grandes mobilizações, que reúnem milhares de pessoas, ocupam, por duas semanas, as principais vias da cidade, entre elas, as estratégicas duas pontes que ligam a porção insular à continental – colocando em xeque as autoridades municipais. Conquistam o que parecia improvável: derrubar o aumento das tarifas de ônibus” (POMAR, 2013, p. 9-10). Seca, a pradaria deu as condições necessárias para os levantes populares que saíram do espectro dos R$ 0,20, fazendo florescer um resto na conta — não seria a coisa em si de que nos fala Žižek (2012b), que insiste em desafiar as análises? Na conta de Vainer (2013), esse a mais que escapa à compreensão do que envolveria tradicionalmente uma luta urbana seria

20 Entre eles, o livro Protesta Brasil: das redes sociais às manifestações de rua (FERNANDES; ROSENO, 2013). 21 Dilma Rousseff fez o pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV no dia 21 de junho de 2014. Vídeo

disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=XEj3UH69g5k>. Acesso em: 5 abr. 2017.

22 O livro Protesta Brasil (FERNANDES; ROSENO, 2013, p. 32) traz um infográfico publicado na revista Época,

nos jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo, além dos portais UOL e G1, no qual apresenta os dias e locais dos protestos.

consequência de que, “há muito tempo, multiplicavam-se, no tecido social, diferenciadas, dispersas e fragmentadas manifestações de protestos, insatisfação e resistência. Quantas reuniões, acadêmicas ou políticas, foram consagradas a analisar e/ou lamentar essa fragmentação?” (VAINER, 2013, p. 36). Mesmo assim, há algo nessa lógica da fragmentação que não se sustenta, ou, contrariamente, em um gesto involuntário acerta em cheio o que se busca trabalhar no decorrer dessas páginas, de que há algo que demanda a saída às ruas que não tem objeto parcial, isto é, objeto que de fato seja correspondente ao que é demandado, de tal maneira que a fragmentação levada ao máximo escaparia à toda territorialidade, escaparia à nomeação, à representação.

Os esforços das análises transitam, quase sempre, nessa busca de precisar o que da realidade política e econômica do país e do mundo produz essa insatisfação, identificando, assim, o que seria objeto das revoltas23. Entre as análises, Ruy Braga (2013, p. 81) diz que “a questão da efetivação e ampliação dos direitos sociais é chave para interpretarmos a maior revolta popular da história brasileira”. Rolnik (2013, p. 8) entende como o “direito de ter direito, que alimentou as lutas dos anos 1970 e 1980 e inspirou a Constituição e a emergência de novos atores no cenário político”.

Mauro Iasi (2013), por sua vez, identifica a insatisfação decorrente do

caminho escolhido pelo ciclo do PT e sua estratégia desarmou a classe trabalhadora e sacrificou sua independência pela escolha de uma governabilidade de cúpula na qual a ação política organizada da classe jamais foi convocada. [...] O acordo com a burguesia na cúpula produziu na base social uma reversão na consciência de classe e uma inflexão conservada no senso comum” (2013, p.46).

23 Um exemplo é o livro Por trás da máscara, em que o autor, Flávio Morgenstern (2015), em posição bem

diferente destes trazidos para o debate neste capítulo, descreve os acontecimentos de junho de 2013 como um fenômeno de massa na tentativa de mostrar que o que aconteceu já era um fenômeno previsível. Para o autor, “as pessoas estavam amedrontadas – ou mesmo desesperadas. Se havia diferenças entre o tal MPL e as velhas passeatas de [Central Única dos Trabalhadores] CUT, MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], PT, [Partido Comunista do Brasil] PCdoB e afins, a primeira mais visível era o grau de violência” (MORGENSTERN, 2015, p. 23). A busca incessante do autor por desqualificar movimentos e grupos políticos de esquerda diferenciando-os apenas pelo grau de violência se dá na mesma medida em que constrói a ideia de que os objetos para a insatisfação estavam bem evidentes e todos apontavam para a ineficiência do governo. O livro é carregado de juízo de valores com prejulgamentos simplistas e maquiavélicos: “Ao olhar para as bandeiras vermelhas, qualquer um reconheceria antigos símbolos ditatoriais, velhos conhecidos da arcana arte de estropiar o trânsito através de protestos, passeatas e manifestações” (MORGENSTERN, 2015, p. 21). Em outra passagem: “Se a manifestação era contra o recente aumento de vinte centavos no preço da passagem, a maioria ali daria facilmente 20 reais para escapar daquele inferno” (MORGENSTERN, 2015, p. 22). O que deveríamos nos perguntar é o que há no outro (nesse caso, os manifestantes do MPL), que não é o outro, mas que olha para o sujeito (o autor) demandando-o a se deslocar de significante a significante na busca de encontrar a coisa em si que o desestrutura tanto.

Ao final do texto, Iasi (2013, p. 46) faz um diagnóstico sem desenvolvê-lo: “Devemos apostar na rebelião do desejo”. A questão que se apresenta agora é saber como o desejo estaria articulado com esse estranho objeto que faz a multidão se movimentar sobre uma estrutura de resistência. Resistir ao quê? Melhor seria manter na indeterminação, mas, se o desconforto for demasiado, poderemos nomear ao que se resiste: ao Império (HARDT; NEGRI, 2004), à biopolítica e aos dispositivos de captura do sujeito (FOUCAULT, 2008; AGAMBEN, 2009). Jamais identificar o que se deseja. Ele é irrepresentável. “A rebelião do desejo” pode ser, assim, objetivada como afirmação do fora, da fuga, do não senso.