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O desejo para Lacan (2016) é elaborado em duas vias: uma com base em Freud, fundada no wunsch24 (desejo) inconsciente – que impulsiona o sujeito a uma busca indeterminável de

objetos que lhe satisfaçam –, e outra no begierde, extraída de Hegel, que comporta a noção de reconhecimento.

A teoria do desejo na sua inspiração hegeliana foi influenciada por Alexandre Kojève. No inverno de 1933–1934, um ano após ter defendido sua tese sobre as relações da paranoia com a personalidade, Lacan foi levado pelo seu amigo George Bataille ao seminário de Kojève25, denominado de Introdução à leitura de Hegel (KOJÈVE, 2002), título também da obra do filósofo de origem russa.

Na leitura de Kojève da obra Fenomenologia do espírito, de Hegel, o que sobressai é o par do mestre e do escravo. Miller (1999) considera difícil mensurar até que ponto o ensino de Lacan se modificou ao longo de sua vida, porém para ele essa dualidade do senhor/escravo permanece: “Ele utiliza, por exemplo, a referência ao mestre e ao escravo antes do Relatório de Roma e quando constrói os quatro discursos, em 1970, entre os quais está o discurso do mestre, com o lugar do mestre e do escravo, lugar que pode ser ocupado por diferentes significantes que permutam” (MILLER, 1999, p. 39). Para que o mestre possa ser reconhecido em sua posição, precisa, primeiramente, reconhecer o escravo. É uma relação equívoca, “porque pode ser lido de duas formas: ‘você me representa o esquema, mas, de qualquer forma, é outro’; e a

24 Freud utiliza os termos wunsch e lust – o primeiro significa desejo, e o segundo traduz-se como apetite e prazer.

O desejo inconsciente recalcado é, ao mesmo tempo, realização de desejo. Entre as formas de realização do desejo está a reprodução onírica. Por isso, sua teoria dos sonhos vem como realização dos desejos reprimidos.

segunda, ‘você me apresenta um esquema que funciona igualmente, para nós dois’” (MILLER, 1999, p. 39).

Para Dunker (2011), dessa relação intersubjetiva entre senhor e escravo são elaborados alguns pressupostos, como a associação entre ação e negação: “Negação da natureza pelo trabalho, negação da coisa pela linguagem e negação do objeto pelo desejo” (DUNKER, 2011, p. 506). Se o desejo não se realiza no objeto, ele é necessariamente vazio. Outro pressuposto é que o desejo será sempre desejo de outro desejo. “Ele não pode ser realizado num objeto, mas apenas em outro ato. É o ato de reconhecimento. [...] Há, então três momentos: a constituição do sujeito, pela negação do sentimento de si; a formação do desejo como negação e reconhecimento do outro; e a constituição do objeto, pelo trabalho do saber” (DUNKER, 2011, p. 506).

É dessa leitura de Hegel, como mostra Dunker (2011, p. 507), que “desejar um desejo inaugura uma historicidade, a história dos desejos desejados”. Esse é o desejo do Outro, em Lacan (2008)26. O desejo movimenta-se para reconhecer o desejo, e essa busca dá-se pela linguagem. Em Hegel (2007), a consciência de si mesmo aparece, pela primeira vez, quando se pronuncia eu. A consciência, assim, desenvolve-se não pela busca de um conhecimento, mas como ato de desejo, separando o sujeito do objeto desejado. O desejo, nessa concepção, movimenta-se com o intuito de satisfazer-se.

O eu como consciência de si depende do desejo de se separar do objeto desejado. Ter consciência de si mesmo permite ao sujeito orientar seu desejo em

direção a um outro “eu” desejante, que possa reconhecê-lo e, portanto, que não lhe retorne o vazio, tal como ocorre quando o desejo está orientado para destruir. Dessa maneira, o desejo humano, contrariamente ao do animal, encaminha-se a desejar o desejo do outro, através do qual o sujeito e seu desejo poderão ser estimados em todo o valor (MARÍN-DÒMINE, 2015, p. 105).

Nessa via, temos a inserção de Lacan (2016) da noção de demanda, à qual o desejo está vinculado. Ou seja, enquanto a necessidade se refere à dimensão biológica, a satisfação diz respeito à necessidade corporal, e a demanda é atravessada pela linguagem, esta última dependendo do reconhecimento do Outro. Essa conversão da necessidade em demanda se inicia no projeto de subjetivação do infante, quando este com seus imperativos orgânicos é interpretado e adquire valor de signo para o adulto.

26 Em Estrutura e constituição da clínica psicanalítica (2011), Dunker dedica um profícuo texto para falar da

Nessa rápida passagem, a necessidade é convertida em demanda pelo outro, que, no registro simbólico, passa a ser o Outro da linguagem. Como a demanda nunca pode ser satisfeita, já que é da ordem do inconsciente, o desejo emerge na falta. O sujeito deseja, assim, reconhecimento da falta que se tornou demanda pelo Outro. Se a demanda nunca pode ser satisfeita, o desejo passa a ser também impulso.

A interação de Lacan (1997b) no retorno a Freud e na sua articulação com a filosofia o faz rejeitar a linguagem como instrumento de comunicação, mostrando que o indivíduo não é consciente de seu próprio discurso. Como observa Marín-Dòmine (2015, p. 107), “nesse ponto ele toma como base as observações de Freud a partir do estudo dos sonhos e dos lapsos em que se demonstra que a linguagem é o Outro que fala através do sujeito”.

Temos nessa via aberta da linguagem e do desejo a afirmação de Lacan (1998, p. 634) de que “o desejo do homem é o desejo do outro”. Como observa Garcia-Rosa (1985, p. 146), “nessa primeira fase de constituição do desejo, que é a fase do imaginário, o desejo ainda não se reconhece como desejo, é no outro ou pelo outro que esse reconhecimento vai-se fazer numa relação dual especular que o aliena nesse outro”.

Nessa direção de Lacan (1992) – de Hegel e Freud, além da fase estruturalista pela via de Saussure –, a realização do desejo está vinculada à representação significante, na qual o próprio sujeito se constitui como seu primeiro objeto do desejo, ou seja, do seu reconhecimento. Para retomar o desejo em Hegel (2007), como pura negatividade – ponto da crítica de Deleuze e Guattari (2010) –, Safatle (2008) acentua da leitura de Kojève, como já mostramos, que “o desejo humano não deseja objetos, ele deseja desejos, ele só se satisfaz ao encontrar outra negatividade” (SAFATLE, 2008, grifo do original). O autor, assim, mostra como a falta é o modo de ser do sujeito. Ele traz esse ponto do desejo como falta e que está no centro do debate de Deleuze e Guattari:

Seu alvo não era a pretensa metafísica da negatividade presente no conceito lacaniano de desejo. Pois a maneira com que a psicanálise procura socializar o desejo produziria um desejo marcado pela negatividade, pela perda, pela falta. No entanto, “nada falta ao desejo”, dirão os dois [Deleuze/Guattari], “ele não está em falta em relação ao seu objeto. Na verdade, é o sujeito que está em falta com o seu desejo, ou é ao desejo que falta sujeito fixo; só há sujeito fixo graças à repressão” (SAFATLE, 2008).

Safatle (2008) observa que, a princípio, Lacan teria sido posicionado no lado oposto aos seus dois críticos (Deleuze e Guattari), mas a radicalidade com que o psicanalista opera sua lógica revela algo bem diferente:

Esse ponto é importante por nos lembrar que, ao falar do desejo como pura negatividade, Lacan tinha em mente essa potência de indeterminação, essa presença, em todo sujeito, daquilo que não se submete integralmente à determinação identitária da unidade sintética de um Eu, que não se submete à forma positiva de um objeto finito. Ou seja, a falta própria ao desejo é, na verdade, o modo de descrição de uma potência de indeterminação e de despersonalização que habita todo sujeito e que Lacan chamará em certo momento de infinitude (SAFATLE, 2008).

O desejo em Deleuze e Guattari (2010) aparece com a noção de máquina desejante no primeiro trabalho em parceria, O anti-édipo, de 1972. A obra é, sobretudo, uma crítica à leitura psicanalítica que atrela o desejo à falta, porém também como um modo de aprisioná-lo. Michel Foucault (2002) demonstra bem esse movimento com base na crítica dos autores ao Édipo: “Deleuze e Guattari tentaram mostrar que o triângulo edipiano, pai-mãe-filho, não revela uma verdade atemporal. Eles tentaram mostrar que esse famoso triângulo edipiano constitui, para os analistas que o manipulam no interior da cura, uma certa maneira de conter o desejo” (FOUCAULT, 2002, p. 29).

O ponto de partida para a afirmação do desejo é a produção como processo cujo princípio imanente é o desejo. O que mobiliza a produção é o desejo que “não para de efetuar o acoplamento de fluxos contínuos e de objetos parciais essencialmente fragmentários e fragmentados” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 17). Os autores iniciam o anti-édipo com exemplos: “O seio é uma máquina que produz leite, e a boca, uma máquina que acopla a ela. A boca do anoréxico hesita entre uma máquina de comer, uma máquina anal, uma máquina de falar, uma máquina de respirar (crise de asma)” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 11). Nessa via, o conceito de máquina desejante une a dimensão humana, natural e maquínica (não natural). “Há tão somente máquinas em toda parte, e sem qualquer metáfora: máquina de máquinas, com seus acoplamentos, suas conexões” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 11). Ao conceber toda produção como maquínica, temos o que Silva (2000, p. 17) observa:

Deleuze e Guattari rejeitam qualquer distinção entre sujeito e objeto, entre cultura e natureza, entre interioridade e exterioridade. Diferentemente da subjetividade da “teoria do sujeito”, as máquinas de Deleuze e Guattari não são caracterizadas pelo que são, mas pelo que fazem. [...] Tal como Nietzsche, não se deve ir atrás do “fazedor”, mas apenas do “fazer” e do “feito”. Nenhum ponto fixo, nenhuma substância, nenhuma essência, nenhuma origem, nenhum centro. Apenas linhas, fluxos, intensidades, energia, conexões, combinações.

Para Deleuze (2001, p. 18), o “desejo não comporta qualquer falta. Ele não é um dado natural. Está constantemente unido a um agenciamento que funciona”. O desejo como potência que cria por meio de um conjunto, de um agenciamento. O que se torna rico para pensar os protestos de junho de 2013 é o fato de que, em Deleuze e Guattari (2010), não se deseja um

objeto específico que nunca pode ser realizado, mas um conjunto do qual aquele objeto faz parte.

O inconsciente para Deleuze (2001) é uma fábrica, e o desejo, sua produção. Essa afirmação ganha força ao entender que, para o autor, não se deseja um objeto, no entanto um conjunto. Como descreve Larrauri (2009, p. 78-79):

Falamos abstratamente quando dizemos que desejamos este ou aquele objeto, porque nosso desejo é sempre concreto, sempre é o desejo de um conjunto geográfico, espacial, temporal, territorial concreto. [...] O desejo é sempre desejo de um conjunto, então é o próprio sujeito do desejo que agencia os elementos, que os coloca uns ao lado dos outros, que os monta.

Assim, quando o desejo do sujeito é mobilizado nos protestos de junho de 2013, esse sujeito deseja não somente sair às ruas e participar com a multidão, mas também deseja os lugares que pode percorrer, as pessoas que pode encontrar, as vozes que pode ouvir, os cartazes que pode levantar e que pode ler, os gritos que pode emitir. Trata-se de um mundo que deseja, um mundo agenciado em seus elementos pelo sujeito do desejo.