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A crise de representação atinge todas as instâncias da vida. No jornalismo não é diferente. A reação nos protestos de impedir jornalistas, especialmente os da Globo37, de cobrir as manifestações evidencia a crise de credibilidade da imprensa, constituída, tal qual campo disciplinar, sob a égide da liberdade, imparcialidade e independência profissional. Sob a

37 A matéria do jornal O Dia, de 18 de junho de 2013, cita vários casos de repórteres da Globo impedidos de cobrir

as manifestações e aponta, também, o discurso de Arnaldo Jabor como emblemático para essa reação negativa: “Os insultos também foram dirigidos ao comentarista global Arnaldo Jabor, que criticou o movimento, dizendo que são de classe média e que não valem nem R$ 0,20 em recente comentário no ‘Jornal da Globo’. Mais tarde, ele voltou atrás e disse que errou em comentário na rádio ‘CBN’” (ALMEIDA, 2013). Elizabeth Lorenzotti (2014), na introdução de seu livro Jornalismo no século XXI, observa: “Alguns dias depois, entendi perfeitamente, assistindo a Globo News: ‘Estamos aqui, do alto deste edifício’, diziam os repórteres sitiados em razão da fúria dos manifestantes, que expulsavam jornalistas da mídia tradicional das ruas e agrediam viaturas de emissoras de TV”.

suspeita de que os interesses econômicos motivam o pendor de suas narrativas, o jornalismo tradicional é acusado de parcial e fomentador da repressão nas manifestações.

No cenário mais amplo, enquanto os interesses econômicos se apresentam cada vez mais globais – no qual as forças dominantes constituem o Império, “o poder supremo que governa o mundo” (HARDT, NEGRI, 2004, p. 11) –, surgem também as forças de resistência (multidão), que têm a potência de produzir linhas de fuga no interior de um campo disciplinar, como no caso da Mídia Ninja com o jornalismo.

A Mídia Ninja, como acrônimo de Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação, apareceu no contexto da chamada pós-mídia38, inserida em uma nova ecologia “midialivrista”39

formada por uma multiplicidade de coletivos, redes, grupos, “perfis” etc.

A subjetivação de coletivos com base nessa nova ecologia está na ordem da multidão e se adapta bem ao termo mídia-multidão, o que, no jornalismo, passa a ser

a possibilidade de incluir o público na produção desse pós-jornalismo (que não descarta técnica e práticas que sempre existiram, como a apuração, reportagem, pesquisa, edição, etc.). Por exemplo, as informações trazidas pelas redes (cruzadas com as informações colhidas nas ruas) funcionam nas transmissões on-line da Mídia Ninja (no ao vivo do streaming), como um GPS humano, um novo circuito rede-rua. O chat da transmissão (onde todos comentam livremente) vira um lugar de atualização, contrafação, disputa, colaboração, uma real ruidocracia intensa e instigante (BENTES, 2015, p. 15).

A Mídia Ninja, ao cobrir colaborativamente as manifestações de junho de 2013, produziu uma experiência catártica de

38 O campo da comunicação moderna, estruturado com o desenvolvimento das técnicas de reprodutibilidade, entra

em cena e encontra seu auge no capitalismo pós-industrial, quando os processos de comunicação de massa passam a ser responsáveis pela produção coletiva da consciência social. Com o acesso e a popularização da internet no fim do século XX, passou a coexistir um novo paradigma no campo da comunicação, a chamada pós-mídia, que dá as condições para a formação a uma quantidade indeterminada de singularidades e processos subjetivos manifestados, sobretudo, em redes sociais, rompendo com os processos de subjetivação produzidos pelos meios de comunicação de massa. Ivana Bentes (2015, p 12) chama esse novo processo de “modelo da comunicação pós-mídia de massa”, no qual argumenta que “é a conversação e/ou a memética, ideias replicantes, memes que buscam se reproduzir e para os quais somos um dos formuladores e vetores entre outros (objetos, redes, dispositivos)”. Mesmo que Bentes (2015) explicite o potencial multiplicador e viralizante no processo que caracterizaria a pós-mídia e no qual ela mantém o termo massa, fica-se ainda com a intuição de que o termo massa não se adapta bem a essa nova realidade. Entende-se que a expressão massa vem para dar conta do grande alcance que atinge a circulação de conteúdo produzido por meio desses coletivos formados por singularidades, mas massificar pressupõe uma forma ancorada na técnica e na linguagem que almeja atravessar todas as singularidades para homogeneizar.

39 O termo midialivrista surgiu no contexto da chamada pós-mídia e interessa a nos, principalmente, pensar na

perspectiva de que o “‘midialivrista é o hacker das narrativas”, capaz de rivalizar, subverter, contrapor com diferentes estratégias produzidas pelos grandes conglomerados de comunicação (ANTOUN, MALINI, 2013, p. 12).

“estar na rua”, obtendo picos de 25 mil pessoas online. A Mídia Ninja fez emergir e deu visibilidade ao “pós-telejornalismo” de uma “pós-TV” nas redes, com manifestações virtuais que participam ativamente dos protestos/emissão discutindo, criticando, observando e intervindo ativamente nas transmissões em tempo real e se tornando referência pro potencializar a emergência de “ninjas” e “midialivristas” em todo o Brasil (ANTOUN; MALINI, 2013, p. 15).

Essa nova experiência rompe com o ethos do jornalismo moderno40, constituído no século 19, quando são dadas as condições técnicas e discursivas para a profissionalização do trabalho jornalístico. Os discursos, que emergem e que ainda predominam no campo, giram em torno de poucos enunciados: liberdade de imprensa, objetividade na apuração dos fatos, independência e autoridade nas relações de trabalho. A força desses enunciados está no centro da subjetivação do sujeito-jornalista e desencadeia, no século XX, o nó problemático que perpassa as diferentes teorias do jornalismo: a autonomia relativa do jornalista. Relativa porque o exercício da profissão, no modelo comercial, pressupõe uma rotina de produção no interior de um veículo de comunicação com implicações econômicas e políticas.

Nesta tríade – jornalista, veículo e economia/política –, o discurso jornalístico precisou sempre afirmar sua objetividade do método (conceito que remete ao positivismo de Auguste Comte) de apuração dos fatos e neutralidade (no sentido de que não há motivação pessoal ou institucional para cobrir eventos), mas encontra-se, ao contrário, cada vez mais acusado de parcialidade.

Nesse paradigma dos meios de comunicação de massa, o jornalismo ao longo de mais de um século e meio reivindicou para si o poder legítimo de representar os acontecimentos relevantes para a sociedade. É o paradigma da representação positivista. Mas, com a mídia- multidão, novas experiências deixam o campo do jornalismo em vertigem. Rompe-se com o modelo profissional para o jornalismo aberto – sem, necessariamente, a presença de jornalistas profissionais –, reinventando a própria noção de jornalismo.

O jornalismo participativo na pós-mídia instala um curto-circuito no jornalismo tradicional, marcando experiências coletivas na produção de conteúdo que rompem com o modelo representacional. Na outra ponta, temos, também, o pós-telespectador, que integra o conteúdo ao vivo. Bentes (2015, p. 15) mostra que “as transmissões ao vivo funcionam como um ‘material bruto’ que vai sendo editado, montado, coletivamente e ao vivo”. Os dois polos – do emissor e do receptor – ficam borrados.

40 Nelson Traquina (2012), em Teorias do Jornalismo, desenvolve, no capítulo 5, “O polo ideológico do campo

Idealizada por Bruno Torturra, a Mídia Ninja é um novo modo de fazer jornalismo: por meio de celulares, os repórteres transmitem pela internet imagens e vídeos dos acontecimentos. Não há edição. O material é divulgado em estado bruto em transmissões que duram horas.

Em outubro de 2014, Torturra participou do TEDGlobal, uma conferência anual que expõe ideias, inovações e ações criativas de várias partes do mundo. Nesse evento, ele descreveu o contexto de criação da Mídia Ninja:

Primeiro criamos uma página no Facebook, e depois um manifesto, e começamos a fazer cobertura nas ruas de uma forma bem simples. [...] Manifestações começaram em São Paulo. Começaram de uma maneira bem local e específica, protesto contra o aumento das passagens de ônibus, que tinha acabado de ser implantado. [...] Ação policial contra elas [as manifestações] começaram a crescer na mesma proporção. Mas um outro conflito, que eu acredito que seja o mais importante de todos, para expor meu ponto de vista, que era o conflito da narrativa. Foi uma versão de fatos contada por grandes mídias, que qualquer um que estava lá poderia também desmenti-la ao contar o que realmente estava acontecendo. E esse choque de visões e essas escolhas de narrativas, eu creio, levaram o país a um período de discussão política, onde centenas de milhares de pessoas, provavelmente mais de um milhão, foram às ruas em todo país. Mas não foi o aumento da tarifa de ônibus. Foi, sobretudo, com as exigências pessoais, suas expectativas, como razões pelas quais elas foram às ruas poderiam ser tão diversas quanto contraditórias e muito caos. Se vocês pudessem ler cartazes, me entenderiam. Foi neste momento de catarse política pelo qual o país estava passando que tinha a ver com a política, de fato, mas também tinha a ver com uma forma de organização através de uma nova forma de comunicação. Foi o ambiente onde o Mídia Ninja surgiu do anonimato para se tornar um fenômeno nacional porque nós usamos os equipamentos certos. Não usamos câmeras. Usamos basicamente isto: smartphones. E isto permitiu ser invisível no meio dos protestos, mas também permitiu algo mais: que foi mostrar como era estar nos protestos, apresentar para as pessoas de casa uma perspectiva subjetiva (TORTURRA, 2014).

Usar basicamente smartphones é captar as imagens e os sons da mesma forma como qualquer manifestante faria. Não é somente uma mudança na forma (o que pressupõe a técnica), mas uma adequação que implica a participação. Como observou Bucci (2016, p. 95), “armados de celulares e equipamentos portáveis (transportados em carrinhos de supermercados dentro das passeatas), os ninjas ocuparam um espaço até ali inacessível para a imprensa profissional”. Bucci (2016) ainda cita como exemplo o caso do estudante Bruno Ferreira Teles, do Rio de Janeiro, preso injustamente numa farsa policial. Ela foi desmontada na reportagem de Paulo Renato Soares, edição de 24 de junho de 2013, na qual o Jornal Nacional exibiu trechos de entrevistas e vídeos gravados durante a manifestação que provam que Bruno não portava mochilas ou garrafas incendiárias. “Sem o olho ninja, essa prova contundente teria sido impossível” (BUCCI, 2016, p. 96).

A perspectiva subjetiva que Torturra (2014) apresentou contrasta com o método objetivo do jornalismo profissional, no qual o pesquisador (jornalista) não deve se envolver com as

fontes (objeto de estudo), produzindo uma narrativa (na terceira pessoa), nessa perspectiva, objetiva. Na experiência ninja, ao contrário, os protagonistas são as chamadas fontes em vídeos sem edição. O que aparece como estado bruto da captação não é a produção de linhas de fuga no jornalismo? Poderíamos dizer, tal qual Deleuze e Guattari (1977) falaram de Kafka, que estamos diante de um jornalismo menor, no sentido de que ele não constitui o padrão dominante (maior), mas faz emergir uma nova linguagem e, nesse caso, uma que surge colocando em xeque o modelo representacional dos meios de comunicação de massa.