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Com Lacan (1992), observamos que, para sustentar a hipótese de uma rebelião do desejo, seria preciso sustentar uma posição subjetiva menor em relação à posição do grande Outro. Não estaríamos, nesse sentido, em concordância com o devir menor, conceito elaborado por Deleuze e Guattarri (1977) ao analisar as obras de Franz Kafka? “Vale dizer que ‘menor’ não qualifica mais certas literaturas, mas as condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que chamamos de grande (ou estabelecida)” (DELEUZE; GUATTARRI, 1977, p. 28).

No devir-revolucionário, a letra K na obra O processo não designa mais um narrador ou uma personagem (e poderíamos dar mais um giro na análise de Deleuze e Guattari, 1977, e

dizer que também não designa o autor, levando em consideração as aproximações feitas entre a literatura e a vida de Kafka). Do K, surgem dois agenciamentos: um maquínico e outro coletivo de enunciação. Assim, para os autores, o desejo vem sempre de um encontro dos corpos (maquínico) ou dos incorporais (agenciamento coletivo de enunciação). “O desejo não é forma, mas processus, processo” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 14).

Precisamos aqui triangular a questão com Lacan (1998). Se o sujeito advém na posição intervalar na cadeia significante, não sendo mais do que um efeito de sentido, o que está em relevância é, também, o processo. O sujeito como um processo estaria situado na mesma posição da letra K, cuja plasticidade se ajusta nos encontros maquínicos (ou corporais) e nas enunciações (ou incorporais).

No que se refere à estruturação, Deleuze e Guattari (1977, p. 30) são precisos: “A boca, a língua e os dentes encontram sua territorialidade primitiva nos alimentos. Consagrando-se à articulação dos sons, a boca, a língua e os dentes se desterritorializam”. A disjunção entre comer e falar é também a disjunção entre conteúdo e expressão.

Na literatura de Kafka, é elaborada uma cartografia das disjunções a fim de produzir um mapa das intensidades como produção do desejo. A disjunção desterritorializa, mas produz uma nova cartografia, como o gesto de comer para o de falar sem que um exclua o outro.

Na literatura, podemos pensar no devir-animal, em tornar-se animal. Em A metamorfose (1993), de Kafka, um caixeiro viajante renuncia à demanda de sustentar a família e pagar as dívidas, mas acorda certa manhã metamorfoseado num inseto monstruoso. O tornar-se animal é o objeto da novela. “Dizemos que, para Kafka, a essência animal é a saída, a linha de fuga ainda que no mesmo lugar ou na jaula. Uma saída, e não a liberdade. Uma linha de fuga vida, e não um ataque” (DELEUZE; GUATTARRI, 1977, p. 53).

Caberia questionar, para trazer o debate de volta para os protestos: tornar-se vândalo para o discurso dominante não teria uma mesma operação? Não está em questão acreditar que essa digressão fosse um processo de liberdade – com isso, não se corre o risco de considerar o futuro (o que se esperaria como resultado de um ato revolucionário) uma condição messiânica, de que a saída pressuporia uma redenção.

Se o tornar-se animal é apresentado de primeira mão como objeto da novela, o que se apresenta como perspicaz e potência para a análise desta tese é o modo como os conceitos criados por Deleuze e Guattari (1977) vão articular esse objeto. Entre eles, o desejo, no qual

é preciso renunciar mais do que nunca à ideia de uma transcendência da lei. Se as instâncias últimas são inacessíveis e não se deixam representar [referindo-se a O

mas em função de uma contiguidade do desejo que faz com que o que ocorre esteja sempre no escritório ao lado: a contiguidade dos escritórios, a segmentaridade do poder substitui a hierarquia das instâncias e a eminência do soberano (já o castelo se revelava ser um monte de casebres segmentários e contíguos, à maneira da burocracia dos Habsburgos e do mosaico das nações no império austríaco). Se todo mundo pertence à justiça, se todo mundo é seu auxiliar, do padre às mocinhas, não é em virtude da transcendência da lei, mas da imanência do desejo. E é exatamente nessa descoberta que desembocam rapidamente a investigação ou a experimentação de K: ao passo que o tio o apressa a levar a sério seu processo, portanto, a procurar um advogado para passar por todos os desfiladeiros da transcendência, K percebe que também ele não deve deixar-se representar, que ele não tem necessidade de representante, não devendo ninguém interpor-se, indo de cômodo em cômodo, seguindo seu desejo (DELEUZE, GUATTARI, 1977, p. 75-76, grifo do original).

Se, como dizem os autores, “todo mundo pertence à justiça” (DELEUZE; GUATTARRI, 1977, p. 75-76), não é porque há justiça em estado puro (transcendental), mas imanente à máquina desejante, dependendo ela mesma (a justiça) da crença dos sujeitos em sua existência. Com isso, estabelecemos, por vias cruzadas, o encontro do desejo como produção ao Outro de Lacan (2008) como imanente ao desejo.

Mas, se a justiça assume aos olhos das máquinas desejantes lugar de transcendência, K construirá bifurcações nesse jogo de assujeitamento no processo. Para Deleuze e Guattari (1977, p. 75-76), ele não se deixa “representar, que ele não tem necessidade de representante, não devendo ninguém interpor-se entre ele e seu desejo. Ele só encontrará a justiça mexendo-se, indo de cômodo em cômodo, seguindo seu desejo”.

Nesse sentido, o desejo que interessa aos autores não é o assujeitamento ao desejo do Outro, como se fosse uma resposta a uma demanda do inconsciente, mas sim como um ato produtivo, “contíguo”, cujo movimento se delineia em ato. O desejo como produção se dá no contíguo: “O contíguo não se opõe ao contínuo [processo], ao contrário: é sua construção local [por isso, imanente], prolongável infinitamente, e, portanto, também, sua desmontagem – sempre o escritório ao lado, o cômodo contíguo” (DELEUZE, GUATTARI, 1977, p. 76).

É nessa imanência do desejo que se manifesta, para recuperar um termo da introdução, um “plano de imanência”. Com K, esse plano era produzido no processo de percorrer cômodo a cômodo, mobilizado pelo seu desejo, a fim de encontrar justiça na desmontagem do processo a que estava sendo submetido pela “máquina abstrata”, que funciona no registro da transcendência (como se houvesse justiça extra-humana). O plano de imanência segue o movimento do desejo, que é sempre produção. Isso traz implicações, já que o desejo não se acomoda com um produto, com o realizado, mas sim na ação que se dá num contíguo. Há sempre mais um... Por isso, em K a justiça está sempre no cômodo ao lado, como se existisse fora e dentro de si.

Esse movimento traz-nos imediatamente à cena dos protestos de junho, à medida que ele se configura, desde o início, múltiplo – considerando o ponto de vista de Chauí (2013), de que desde o início já não existia um grupo coeso que se mobilizava em torno de uma bandeira de luta. O que se apresenta como desafio para as diferentes análises que buscam construir uma imagem do que aconteceu é a força do gesto contíguo (há sempre um motivo a mais que mobiliza a saída para as ruas, como se a justiça estivesse sempre no cômodo ao lado), que coloca em xeque a máquina abstrata (no qual se dá o discurso dominante).

O desejo, produtivo, é desejo de um conjunto (multiplicidade). Não só Kafka foi objeto de interesse de Deleuze e Guattari, mas, também, Proust:

Referindo-se aos romances de Marcel Proust, Deleuze afirma que, por exemplo, não se deseja apenas uma mulher, mas essa mulher e todas as paisagens, todos os encontros, todos os livros, todas as cidades que se realizam nela, que estão enrolados nela: amá-la é desejar desenrolar, desfazer o rodo (LARRAURI, 2009, p. 78).

Não seria o amor que envolve o pensamento de esquerda – o que implicaria toda a multiplicidade de literaturas, hábitos, fetiches de revolução, organização em movimentos populares, luta contra aqueles que detêm os modos de produção etc. – o que causa vertigem na máquina abstrata – como se desse pane nos valores a priori responsáveis pela manutenção do sistema? Vertigem que também pode ser percebida no próprio campo do jornalismo, quando o curso dos acontecimentos de junho de 2013, sob o efeito dos coletivos que se formavam pela internet, deu origem a novas narrativas.