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Ir ao encontro do desejo36 é o mesmo que enfrentar a angústia produzida pelo apagamento do sujeito na posição de objeto de gozo do Outro. Sem essa posição, mas diante de um objeto indizível, enigmático, fora da linguagem – o objeto a –, o sujeito que advém é o do desejo. Nessa via, desejo difere-se de gozo, ou seja, do gozo do Outro, que Harari (2008) nomeia como amo, aquele que governa, escraviza o sujeito.

humanos são hospedeiros de onde as máquinas retiram a energia necessária para seu funcionamento. Manter os hospedeiros vivos dependeria da força representativa do mundo virtual para que os humanos, então, alienados, não se dessem conta do Real, o que seria insuportável para eles. Nessa operação, o sujeito é precisamente o resto do sistema – da Matrix –, mas que ao mesmo tempo se converte em combustível para o funcionamento das máquinas. Estar integrado ao sistema não seria satisfazer à demanda da Matrix, cujo gozo do sujeito está nessa operação de se mover em função do desejo do Outro?

36 Será sempre um devir menor em oposição a um projeto de subjetivação maior correspondendo à demanda do

A questão que se apresenta – entre desejo e gozo – pode ser retomada da análise de Ramos (2015, p. 12), que é de saber se é possível “que o sintoma social, enquanto estofo da verdade que é, organize sua emergência nas brechas do saber hegemônico por meio de uma lógica coletiva que não seja a da psicologia das massas?”. Para Ramos (2015), é a questão que Lacan nos deixa e que os protestos de junho de 2013 nos deixam também intuir.

Para responder à questão, precisamos trabalhar na lógica de que o sintoma está no que não faz enlace, ou seja, no que produz como efeito de estar fora, subtraído, do que se produz. Compreensão que parece pertinente para pensar o sintoma no capitalismo, ou seja, o proletário. Talvez seja melhor explicitar o que está na gênese da produção – a expropriação do que se produz. Esse é o lugar do gozo, da mais-valia, mas pelo qual se constitui o proletariado. As pistas deixadas por Lacan (2005) são de fazer desse encontro com o Real, na medida em que ele mostra sua pontas naquilo que parece desumanizar completamente o sujeito na relação com o Outro, um gesto que retome o sujeito rebaixado à condição de coisa (desumanidade) para devolver a dignidade de humanidade novamente.

Vejamos o que Suzanne Hommel disse no documentário Um encontro com Lacan, de Gérard Miller e Leslie Grunberg:

Um dia, numa sessão, contei a Lacan um sonho que tive. Eu disse: “acordo todo dia às 5h” e acrescentei: “era às 5h que Gestapo vinha procurar os judeus em suas casas”. Nesse momento, Lacan se levantou como uma flecha de sua poltrona, veio em minha direção e me fez um carinho muito doce no rosto. Eu entendi: geste à peau, o gesto... Ele transformou a Gestapo em um geste à peau. Em um gesto carinhoso. Um gesto extremamente carinhoso. E essa surpresa não diminui a dor, mas fez outra coisa. A prova, agora, 40 anos depois, é que eu ainda conto esse gesto, eu ainda o tenho no rosto. É um gesto que também é um apelo à humanidade, qualquer coisa assim (apud RAMOS, 2015, p. 12).

Agora, retomemos a luta do MPL, integremos as ações dos black blocs, os incêndios aos ônibus, as vidraças de bancos e vitrines de lojas quebradas. Como analisá-los? Não caberia retomar aqui a rebelião do desejo perante a angústia, causada pelo excesso de demanda do Outro? Angústia diante do todo, do discurso capitalista, como aquele que intuímos que não podemos enfrentar. Nesse sentido, o discurso capitalista é o substituto de Deus. Deus está acima da lei. É o representante do pai primordial, que tudo pode. Vejamos o que Lacan diz sobre o Outro no registro do Real que ocuparia esse lugar de Deus: “Mas se, de repente, faltar toda e qualquer norma, isto é, tanto o que constitui a anomalia quanto o que constitui a falta, se esta de repente não faltar, é nesse momento que começará a angústia. Tentem aplicar isso a uma porção de coisa” (LACAN, 2005, p. 52).

Precisamos sair do lugar, mais evidente, de que os manifestantes se posicionaram fora da norma, o que daria razão aos discursos que os inserem na condição de vândalos (num simples jogo de dicotomias), mas, ao contrário, pensar como um gesto que vem da reação ao grande Outro, ou seja, de se rebelar contra os discursos dominantes que se apresentam acima da lei – Badiou (2013) nos chama atenção de que o mestre passa para a condição de tirano (e Harari, 2008, por sua vez, relaciona-o com o amo). Produziria, então, essa identificação do sujeito no lugar de gozo do Outro no registro do Real, que se apresenta à parte da lei (o Outro no registro do Real teria a função de instituir a norma a qualquer momento, como faria também um tirano, constituindo um permanente estado de exceção).

Se falta a norma porque o Outro/tirano tudo pode, não se submetendo à lei, o que produz no sujeito é o afeto de angústia, a falta da falta. Somos levados a articular o Outro no registro do Real (que produz angústia no sujeito) como o que causa a rebelião do desejo. No discurso capitalista, o sujeito é convidado a negar a castração pela via do objeto de consumo, sendo incitado, a todo o momento, ao consumo. Não à toa, o sujeito depara com uma infinidade de aparelhos tecnológicos, pílulas que potencializam sua energia, cirurgias para ampliar sua aparência de juventude etc. Quando o discurso capitalista impõe ao sujeito o efeito de negação da castração (a ausência da lei), levando-o a crer que tudo pode, o sujeito é submetido mais ainda ao gozo do Outro e vai sofrer de angústia.

Quando analistas chamam a atenção para a multiplicidade de reivindicações observadas nos cartazes, já que havia quase um cartaz para cada manifestante, cada um com sua demanda, o que passamos a observar é que não está na ordem do dia o discurso dominante como organizador da realidade, mas o excedente como sintoma do sujeito que, fora do laço social, é mobilizado pelo gozo do grande Outro.