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Žižek (2015) traz para a discussão, em Problemas no paraíso, a tese de Badiou em diálogo com Roudinesco sobre a passagem do mestre para o tirano. O filósofo e a psicanalista

apontam para os nossos tempos, que “realmente solapam o mestre clássico, as redes horizontais alimentam novas formas de dominação muito mais fortes do que esse mesmo mestre” (apud ŽIŽEK, 2015, p. 211). Diante dessa cena contemporânea, a tese de Badiou é de que um sujeito precisa de um mestre, nesse caso, de um novo mestre, como no pressuposto de Lacan: “É ao que vocês aspiram como revolucionário, a um mestre. Vocês o terão” (LACAN, 1992, p. 218). Mas, em Badiou, o mestre tem a função de “elevar acima do ‘animal humano’ e praticar a fidelidade a um Evento-Verdade”34 (ŽIŽEK, 2015, p. 210).

Em entrevista de Eric Aeschimann com Badiou e Roudinesco, a psicanalista, ao ponderar sobre a posição de mestre (como algo produtivo como foi apresentado por Harari ao se referir ao S.s.S) ocupada pelo analista, traz um ponto que pode ser convertido para o campo social: “A posição do mestre permite a transferência: o psicanalista ‘supostamente sabe’ o que o analisando vai descobrir. Sem esse conhecimento atribuído ao psicanalista, a busca da origem do sofrimento é quase impossível” (apud ŽIŽEK, 2015, p. 211). Esse percurso da autoridade atribuída pelo analisando até a sua destituição constitui o discurso do analista enquanto agente que instiga o outro a agir. O analista aqui assume a posição do S.s.S como percurso necessário para que o analisando, na travessia de seu fantasma, destitua o analista de sua posição.

Badiou então dá as cartas da relação:

O mestre é aquele que ajuda o indivíduo a se tornar sujeito. Ou seja, admitindo-se que o sujeito surge na tensão entre o indivíduo e a universalidade, então é obvio que o indivíduo necessita de uma mediação, e, portanto, de uma autoridade, a fim de progredir nesse caminho. A crise do mestre é uma consequência lógica da crise do sujeito, e a psicanálise não escapou a ela. É preciso renovar a posição do mestre; não é verdade que se possa avançar sem isso, mesmo e especialmente na perspectiva da emancipação (apud ŽIŽEK, 2015, p. 211).

34 Em Badiou (1994), a noção de evento situa-se para além daquilo que existe. Em “Verdade e sujeito”, dirá que,

para iniciar um “processo de verdade, é preciso que algo aconteça. Pois, o que há, a situação do saber tal como está, só nos proporciona a repetição. Para que uma verdade afirme sua novidade, deve haver um suplemento. Esse suplemento é entregue ao acaso. Ele é imprevisível, incalculável. Ele está além daquilo que é. Eu o chamo de um

evento” (BADIOU, 1994, p. 44, grifos do original). Badiou leva-nos à tese de que a verdade deve ser entendida

como um evento do pensar. Assim, o que o filósofo opera como evento é de forma semelhante a noção de acontecimento como temos trabalhado, principalmente, na teoria de Deleuze. O evento é imprevisível e incalculável e pelo qual se inicia uma verdade, o que torna, também, por meio desse processo, possível um sujeito. Se o sujeito é possível por meio do evento, abre-se um processo de acesso à verdade. Não poderíamos dizer de acesso ao real? A resposta é dada pelo próprio Badiou, em À la recherche du réel perdu, de que o real é, no jargão dele, a verdade: “Le processos d´accès ou réel – que j´appelle dans mon jargon philosophique une procédure de vérité – est toujours em train de détruire une formalisation partielle, parce qu´il fait advenir l´impossibilité particulière et ponctuelle de cette formalisation” (BADIOU, 2015, p. 33). O que aparece como real em Badiou (2015) é a própria impossibilidade de abertura por uma formalização. Entre os exemplos, o capitalismo que abre como impossível para sua formalização a abolição da propriedade privada. Por isso, o comunismo constitui-se como o real do capitalismo: “Le communisme est em ce sens le nom du seul processos existant de mise au jour effective du réel du capitalismes” (BADIOU, 2015, p. 33).

Em outra passagem, Badiou traz o debate do mestre para a partilha da democracia, desconstruindo a ideia de que ele estaria mais relacionado às figuras de regimes políticos autoritários:

Estou convencido de que é preciso restabelecer a função capital dos líderes no processo comunista, qualquer que seja o estágio. Dois episódios cruciais em que a liderança foi insuficiente foram a Comuna de Paris (nenhum líder notável, com exceção de Dombrowski no domínio estritamente militar) e a Grande Revolução Cultural Proletária (Mao estava muito velho e cansado, e o “grupo da [Grande Revolução Cultural Proletária] GRCP”, infectada pelo ultraesquerdismo). Essa foi uma dura lição. Essa função capital dos líderes não é compatível com o ambiente “democrático” predominante, motivo pelo qual estou engajado numa dura luta contra esse ambiente (afinal de contas, deve-se começar pela ideologia). Quando lido com pessoas cujo jargão é lacaniano, digo “uma figura de Mestre”. Quando são militantes, digo “ditadura” (no sentido de Carl Schmitt). Quando são trabalhadores, digo “líder de massa”, e assim por diante. E assim logo me entendem (apud ŽIŽEK, 2015, p. 211).

Žižek (2015) questiona se a única saída para o mestre (que Harari chama de amo) é a figura do totalitário. É levado a defender que se pode “formar um coletivo que não seja unido por uma figura do Mestre” (ŽIŽEK, 2015, p. 212). Só assim é possível pensar em uma política comunista. Seguindo a sugestão de Badiou, Žižek (2015, p. 212) comenta: “Para acordar efetivamente os indivíduos de seu dogmático ‘sono democrático’, de sua confiança cega em forma institucionalizada de democracia representativa, os apelos à auto-organização direta não são suficientes: faz-se necessária uma nova figura de Mestre”.

Essa nova figura depende de uma mudança de estrutura. Žižek cita o famoso verso de Arthur Rimbaud “Uma razão”:

Um toque de seus dedos no tambor detona todos os sons e inicia uma nova harmonia, Um passo seu é o levante de todos os homens e sua marcha.

Sua cabeça se vira: o novo amor!

Sua cabeça se volta – o novo amor! (apud ŽIŽEK, 2015, p. 212).

O filósofo esloveno segue na direção de que não há nada de fascista nesse verso. O paradoxo da dinâmica política consiste em que é preciso um mestre para tirar o sujeito da inércia em que se encontra. Em outras palavras, os significantes que amarram o laço social em torno, por exemplo, da democracia liberal produzem como efeito uma promessa impossível de ser realizada – como o pequeno brinquedo no interior do Kinder –, mas essa fantasia já não estaria mais sendo suficiente para manter o discurso dominante. Žižek (2015) não traz para a cena a fala de Lacan, mas é preciso retomá-la no contexto de abertura deste capítulo, de que as estruturas descem à rua.

Quando a fantasia já não é mais suficiente, faz-se preciso alterar todo o campo simbólico. Ou seja, fazer descer a estrutura às ruas para que uma nova fantasia seja colocada e, então, os laços sociais que sustentem a realidade voltem a se alinhar.