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3 CORPOS, PARTOS, MATERNIDADES E FEMINISMOS

3.7 A cesárea

3.7.1 A cesárea e a eficácia simbólica

Neste espaço gostaria de discutir sobre um dos aspectos ligados a experiência de gravidez e parto que caminham paralelamente ao meu campo de estudo. Abordo aqui alguns pontos sobre o processo de convencimento em relação à necessidade de uma cesariana, quando as mulheres afirmam que gostariam de ter um parto normal. Meu objetivo aqui é problematizar o itinerário destas mulheres para uma cesárea, à luz das questões relativas à eficácia simbólica tematizada por Claude Lévi-Strauss (2012), bem como questões relativas a agência e poder, com base em Sherry Ortner (2006). Antes, gostaria de lembrar que a eficácia simbólica de Lévi-Strauss (2012) foi abordada por Carneiro (2011) no que se refere ao lugar

das/os obstetras nos grupos de discussão pela humanização do parto. Aqui, os contornos serão outros, já que analisei especificamente a eficácia simbólica na cesárea.

Lembrando que, como explorado no capítulo 1 desta tese, cerca de 52% (cinquenta e dois por cento) dos nascimentos no Brasil tem ocorrido por via cirúrgica, a despeito de aproximadamente 70% (setenta por cento) das mulheres iniciarem suas gravidezes desejando um parto normal, pode-se deduzir, como algumas pesquisadoras do tema – tais como Simone Diniz e Heloísa Salgado – já sugeriram, que algo está acontecendo no decorrer da gestação para que a maioria dos nascimentos acabe ocorrendo por cesáreas (pelo menos inicialmente indesejadas). Dito isto como forma de, resumidamente, retomar a caracterização do contexto obstétrico atual, partirei para a possível relação a ser estabelecida entre este cenário e o episódio de parto narrado por Lévi-Strauss (2012) no texto A

eficácia simbólica.

Ele conta que entre os índios Cuna, na ocasião de um parto difícil, o xamã é convocado para, por meio de um canto, ajudar. Ele chama a atenção que a intervenção do xamã se dá na falta de êxito. Sua tarefa é recuperar o purba (alma da parturiente) perdido, empreendendo um torneio contra os abusos de Muu (potência responsável pela formação do feto) e suas filhas, entidades que se apoderaram do

purba da mãe. Quando Muu é vencida, o purba é libertado e o parto se dá. Muu, na

verdade, representa o útero e a vagina da mulher grávida sobre os quais o xamã deve empreender um combate vitorioso. Neste canto são evocadas imagens que remetem à superação de obstáculos, batalhas difíceis e tortuosas com espíritos maléficos, monstros sobrenaturais, manipulação de órgãos, dentre outras.

Tudo se passa como se o oficiante tratasse de conduzir uma doente, cuja atenção ao real está indubitavelmente diminuída – e a sensibilidade exacerbada – pelo sofrimento, a reviver de maneira muito precisa e intensa uma situação inicial, e a perceber dela os menores detalhes. Com efeito, esta situação introduz uma série de acontecimentos da qual o corpo e os órgãos internos da doente constituirão o teatro suposto. Vai-se, pois, passar da realidade mais banal ao mito, do universo físico ao universo fisiológico, do mundo exterior ao corpo interior. (LEVI-STRAUSS, 2012, p. 275)

Assim, estamos diante de ideias de que a mulher, seu útero e vagina, são habitados por seres do mal, por monstros maléficos, provocadores de dores e doenças, que precisam de uma intervenção externa para serem controlados, detidos, sanados. Só assim o parto ocorre. Lévi-Strauss (2012) refere também “que

a mitologia do xamã não corresponde a uma realidade objetiva, não tem importância: a doente acredita nela e é membro de uma sociedade que acredita” (p. 281).

A carga simbólica de tais atos torna-os próprios para constituírem uma linguagem: certamente, o médico dialoga com seu doente, não pela palavra, mas por meio de operações concretas, verdadeiros ritos que atravessam a tela da consciência sem encontrar obstáculo, para levar sua mensagem diretamente ao inconsciente. (LEVI-STRAUSS, 2003, p. 285).

Assim, pode-se dizer que a eficácia simbólica se constitui num processo de sugestão (no linguajar psicanalista, já que, apesar de retomar elementos da psicanálise em seu texto, Lévi-Strauss não se refere a este termo, a referência é minha), no qual, por meio do discurso, pode-se convencer outrem, induzir-lhe a caminhos e sensações físicas e psíquicas, através da construção de imagens e outros elementos de apelo afetivo.

Pois bem, dito isto, posso esclarecer onde considero que o xamã pode ser equiparado a alguns obstetras de nossa atualidade, que parecem agir, no decorrer do acompanhamento à gravidez e parto, no sentido de sugestionar/convencer/ fazer com que a mulher acredite que não poderá/será capaz de parir. A imagem do bebê enforcado pelo próprio cordão umbilical é um dos exemplos mais forte e, no entanto, mais banais desse processo. Nele cria-se uma imagem aterrorizante ao estilo da possessão de Muu, sobre a qual o xamã ou o nosso médico obstetra precisa atuar. São imagens que resolvi classificar em três categorias:

1. Bebês monstruosos – nesta categoria estão os bebês que saem dos padrões considerados ideias para o acontecimento de um parto normal. Atribui-se características inapropriadas ao feto, para justificar a realização de uma cesárea. São bebês grandes demais, pequenos demais, envelhecidos, em posições ruins e etc.

...aí tentei essa médica, que quando Filho1 começou a subir um pouquinho na curva de crescimento, que Filho1 era um bebê grande, tava lá na curvinha 95 assim o percentil, ela começou a ficar assustada e aí, com 30 semanas mais ou menos, ela disse ‘olhe Camila, do jeito que tá encaminhando o parto normal tá um caminho inviável, ele já tá com mais de 3 quilos com 30 semanas, no final tende a engordar ainda mais, seu marido é um homem grande, você é pequena, assim, eu acho que a gente não devia tentar, porque vai machucar você, vai machucar ele, tal, não sei que’, aí eu comecei a ficar triste, ela não falou assim na boa comigo, ela falou de um jeito bem ríspido, dizendo que eu tava sendo irresponsável, que tava jogando a responsabilidade nela, que ela não podia arcar com a

"bebê danoninho" surgiu com aquela velha história de que o bebê teria prazo de validade dentro da barriga da mãe, geralmente até a 40 semanas, senão ele explode, azeda, mofa, dá bicho de goiaba, sei lá. (campo virtual, 2013)

2. Úteros e vaginas maléficos – esta categoria está atrelada à visão do útero e de todo sistema reprodutor da mulher como algo misterioso e impuro que pode possuir poderes perigosos. Como exemplos, há o uso de algumas imagens que reforçam a ideia da impossibilidade de uma parto normal, como a da cabeça derradeira de bebês pélvicos (especialmente em primíparas), da conformação uterina (por exemplo o útero bicorno), de uma cesárea prévia e da detecção de alguma infecção (por exemplo a urinária).

Só agora entendi qdo o povo falava do canal-de-parto-bicho-papão... Muitos profissionais que prestam assistência ao parto têm medo que o bebê fique muito tempo ali. Não é por maldade, é medo mesmo que algo dê errado, que o bebê fique sem oxigênio, sei lá. E pude confirmar que quanto menos intervenção, melhor. (campo virtual, 2012)

O 'terror' do parto pelvico em primipara eh justamente porque existe o fantasma da 'cabeca derradeira'. Por isso que nem todo mundo acompanha parto pelvico em primípara. (campo virtual, 2011)

Sobre o fato da minha primeira filha ter nascido prematura, ela perguntou: "Mas que pressa era essa que vc tinha dela nascer logo?" Gente, eu fiquei sem palavras na hora, claro que eu jamais desejaria que minha bebê nascesse antes da hora. Na verdade eu sempre pensei que ela tinha nascido prematura por conta de alguma infecção urinária silenciosa, mas em momento algum pensei q eu é q poderia estar causando isso; (campo virtual, 2011)

3. Mulheres fracas, imperfeitas/defeituosas e incapazes de dar à luz – esta classe se coaduna à visão do corpo da mulher como imperfeito, fraco e potencialmente danoso, por isso carente de intervenções que o restabeleça e o faça funcionar melhor. A justificativa da bacia estreita é clássica, junto com características como ser magra, ser gorda, ser baixa, bem como a presença de alguma doença como diabetes, hipertensão etc.

Meninas,

Muito obrigada pelo carinho.

Ainda quero deixar vários detalhes das minhas percepções sobre esse parto.. entre eles:

Eu já fui, certa vez, "diagnosticada" com uma pelve ruim, ou melhor, péssima! Vejam bem, isso martelou na minha cabeça durante os 10 meses em que eu não fiquei grávida, e em alguns meses da minha nova gravidez. Falaram, inclusive, para eu rezar para fazer bebê pequeno. Bom, eu não tenho nada contra quem me falou isso pq eu acredito mesmo que ela acredita nisso, mas pra mim não foi fácil digerir. Mandei vários emails para

Moderadora questionando sobre isso. Questionei inclusive Melania, através da GOBE, e ela me respondeu que Desproporção Céfalo-Pélvica verdadeira é um evento RARO, e me deu tipo um exemplo de um bebê com hidrocefalia e uma mãe raquítica. Li, então, sobre as amarras psicológicas... li Melania comentando que quando um TP [trabalho de parto] trava, ela procura investigar se não é psicológico.. li Ric comentando que "o parto acontece entre as orelhas", e soube depois que isso é original de Ina Mai (é assim q escreve?). Enfim, fui atrás de desamarrar uma amarra que TALVEZ eu possa ter formado ao ouvir tal heresia. Ora bolas, se eu acreditava mesmo que a mulher entregue consegue parir, pq justo eu seria uma exceção?

Resultado da ópera: eu pari um bebê maior, e ela saiu tão rapinho que a cabeça nem ficou estilo "alien". Saiu com a cabecinha redondíssima.

Durante o TP, durante as contrações que eu ainda pensava com essa cabeça (pq quando todos chegaram eu já tava com minha outra personalidade rsrsrs), eu mentalizava: "te abre, colo do útero", "te abre, colo do útero", "vem Filha, pode vir, mamãe está esperando você".. entre outras. A hora que fui tomar banho (depois do passeio e das ligações) foi fundamental para essa "conversa direta".

(campo virtual, 2011)

Assim, a cesárea aparece como o ritual possível para sanar a “impossibilidade” de nascimento por via vaginal e o obstetra como o xamã responsável pela efetivação do ritual/cesárea. Desta forma, pode-se perceber que num processo de imposição de saberes e verdades, ocorre uma relação de poder, desigualdade e disparidade que vai atuar na reconfiguração da agência da mulher. Por agência, de acordo com Ortner (2006), entende-se a capacidade existente em todos os seres humanos de agir, tendo em vista elementos ligados à intencionalidades (ou, para esta autora, o ato de perseguir projetos) e ao poder (que tem a ver com a capacidade de agir em contextos de relações de desigualdade, assimetria e forças sociais). Estas dimensões são separadas apenas por motivos didáticos, mas caminham sempre juntas.

Neste sentido, no caso das mulheres que vivem uma cesárea indesejada considero que não podemos falar simplesmente em passividade, opondo-a a atividade, mas sim em uma renúncia da agência, como aponta Ortner (2006). Mas esta autora também aponta um caminho, quando fala da agência de resistência, que poderia ser exemplificada, dentro do tema deste trabalho, pelas mulheres que buscam informações, participam de grupos de discussão pela humanização do parto e do nascimento, escolhem com rigor a equipe que a acompanhará etc como caminhos para terem o parto que desejam. Se para Ortner, a resistência caracteriza a agência para proteger projetos ou o direito de ter projetos, a participação nestes grupos e a busca ativa por informações se constitui numa alternativa para proteger o parto desejado ou, em última análise, o direito de tê-lo. É, pois, de acordo com esta

autora, a resistência que nos oferece o empoderamento para perseguir objetivos e, portanto, a possibilidade de mudanças. Com isto, posso reforçar o argumento de que a busca por um parto humanizado auxilia na reconfiguração de jogos de poder e, por conseguinte, fomenta processos de subjetivação. Por este motivo, considero pertinente abordar na sequencia alguns pontos relativos à humanização do parto.