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Análise: caminhos para a leitura das informações

2 EU NO CAMPO: PERCURSO EPISTEMO-METODOLÓGICO

2.5 Análise: caminhos para a leitura das informações

Decerto que a análise não é iniciada apenas quando se considera que a inserção no campo deve ser findada. Acredito na existência de um processo dinâmico e contínuo entre o levantamento de informações e as análises que, no caso desta pesquisa, abrange, para além do contato com as mulheres que participaram do grupo de discussão pela humanização do parto e do nascimento pesquisado, tudo aquilo que circunda o tema, desde aparições na mídia, manifestações, projetos de lei e resoluções, conversas em diferentes situações e lugares, enfim, toda sorte de circunstâncias em que me deparei, de forma direta ou indireta, com o tema aqui tratado. Sendo assim, saliento uma vez mais que as informações construídas e análises são empreendidas em relação, em espaços de interpretação negociados.

Para Gaskell (2002), a tarefa da análise passa pela busca de sentidos e compreensões que ultrapassam o explícito e organizado na intenção de detectar contradições, tensões, conflitos e regularidades que fazem parte das informações construídas em campo, que costumam ser heterogêneas e não unânimes (MARQUES; VILLELA, 2005). Logo, a análise deve levar em conta que os signos não falam por si sós e nem são sempre coerentes, pois sempre passam por e são interpretações. Ao pesquisador resta a possibilidade de uma interpretação de segunda mão ou mais adiante desta (GEERTZ, 2008).

Isto posto, resolvi lançar mão da análise do discurso para lidar com as informações construídas com os e-mails, o caderno de notas/diário de campo e as entrevistas. Segundo Lupicinio Iñiguez (2005a), para além de sua importância como método, a análise do discurso é uma perspectiva que serve para analisar os processos sociais. De acordo com este pressuposto, a linguagem é uma ação e, neste sentido, ela não representa a realidade, mas a produz. Para Foucault (2007b) o discurso é uma prática social que tem condições de produção definidas, nas quais se pode identificar um campo de regularidade com diversas posições de subjetividade. O discurso não manifesta estritamente um sujeito que pensa, conhece e diz, mas um conjunto que o dispersa e expressa sua descontinuidade. Sendo assim, ao empreender uma análise do discurso estive atenta a contradições e tensões, para destrincha-las, de modo a compreender os jogos de poder presentes na formulação das ideias aqui discutidas.

Minha escolha pela análise do discurso se deve a sua pertinência quanto ao entendimento dos modos de construção e manutenção de verdades e saberes, de modo a restituir ao discurso seu caráter de acontecimento. Neste caso, reconheço que tanto o discurso da obstetrícia hegemônica, quanto o das mulheres que buscam um parto humanizado que tentam, frequentemente, se opor e questionar o primeiro, tendo-o, portanto, como um dos principais interlocutores, são produções situadas, já que

o discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos; e, quando tudo pode, enfim, tomar a forma de discurso, quando tudo pode ser dito e o discurso pode ser dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as coisas, tendo manifestado e intercambiado seu sentido, pode voltar à interioridade silenciosa da consciência de si. (FOUCAULT, 2007b, p. 49)

Iñiguez (2005b) atesta que o termo discurso não é unívoco. Ao contrário, caracteriza-se por polissemia condizente com a variedade de tradições, autores e práticas que o abordam. Ou seja, existem tantas definições para discurso quantos fatores dispostos a o abarcar. De acordo com o autor referido, as concepções mais comuns nas ciências sociais e humanas são:

a) Discurso como enunciado ou conjunto de enunciados efetivamente falados por um/a falante.

b) Discurso como conjunto de enunciados que constroem um objeto. c) Discurso como conjunto de enunciados falados em um contexto de

interação – nesta concepção ressalta-se o poder de ação do discurso sobre outra ou outras pessoas, o tipo de contexto (sujeito que fala, momento e espaço, história, etc.).

d) Discurso como conjunto de enunciados em um contexto conversacional (e, portanto, normativo).

e) Discurso como conjunto de restrições que explicam a produção de um conjunto de enunciados a partir de uma posição social ou ideológica específica.

f) Discurso como conjunto de enunciados em que é possível definir as condições de sua produção (IÑIGUEZ, 2005b, p. 123).

Dentre algumas proximidades com as definições expostas acima, Foucault (2007b) acredita que a produção dos discursos, em qualquer sociedade, é controlada, organizada, selecionada e redistribuída com base no seu atributo de maquinar poderes, perigos e dominar acontecimentos. Assim, levando-se em conta o discurso obstétrico hegemônico e o discurso do movimento de humanização do parto e do nascimento como fontes de domínio e produção de verdades sobre os acontecimentos, por meio do convencimento sobre perigos, prazeres, possibilidades, corpos e outros temas, vislumbra-se como se dá, nestes casos, os jogos de poder. Foucault (2007b) destaca, então, a estreita ligação entre discurso e poder,

relacionando-os com a vontade de verdade que conduz as formas pelas quais o saber é aplicado, valorizado e distribuído em uma determinada sociedade. Para o autor, esta vontade de verdade mascara a própria verdade e seus desdobramentos, tais como quem a produziu, para que fins e quem é beneficiado. Neste sentido, os discursos possuem condições de funcionamento e os indivíduos que os pronunciam devem obedecer a regras e protegê-los para que outros não tenham acesso.

Segundo Iñiguez (2005a), o discurso para Foucault é mais do que a fala ou o conjunto de enunciados, constituindo-se numa prática social, com condições de produção próprias. O contexto de produção do discurso é denominado pelo autor de formação discursiva, tendo em vista o conjunto de relações e padrões que o articula. Desta forma, compreende-se que as práticas discursivas estão submetidas a regras situadas no espaço e no tempo, estabelecidas por grupos que delineiam as possibilidades de enunciação. Sendo assim, os discursos se articulam a outras práticas, também localizadas. Tendo os discursos como articuladores do conjunto de condições que permitem as práticas, há a defesa de que transformações nos discursos acompanham mudanças nas práticas. Desta forma, por exemplo, enquanto os discursos sobre os risco de um parto natural e os benéficos de uma cesariana forem mantidos, estarão dadas as condições para a manutenção das taxas alarmantes de partos programados em nosso país, bem como estarão dadas as condições de formulação dos discursos de resistência que buscam se contrapor ao hegemônico. Dito isto, vale mencionar ainda que transformações em discursos e práticas não obedecem a um mesmo ritmo.

De acordo com Teun Adrianus Van Dijk (2008), o discurso diz respeito a uma prática social pautada numa interação situada, podendo ser considerado um tipo de comunicação numa situação social, cultural, histórica ou política. Neste sentido, o controle do discurso e de sua produção pode ser percebido como uma importante forma de controle social. A definição de quem, para quem e em quais situações se fala, bem como de quem tem acesso a determinados discursos trata-se de uma maneira de exercer o controle e, por conseguinte, demarcar a distribuição do poder. Nesta articulação entre discurso, poder e saber, deve-se salientar que os discursos não são verdadeiros nem falsos, mas, através deles são produzidos efeitos de verdade, verdades estas calcadas nas relações de poder. Para Foucault (2007b), cada época tem a sua maneira de reunir a linguagem em função de seu corpus. Existem, portanto, procedimentos de linguagem que definem as visibilidades de um

processo. Assim, palavras, textos, frases e proposições possuem uma condição histórica (DELEUZE, 2005). Bem como as formas de parir também possuem.

Enquanto Van Dijk (2008) aborda os Estudos Críticos do Discurso como possibilidade de denúncia dos abusos de poder e consequente transformação social, Foucault convida à problematização como forma de imbuir de um caráter transformador e libertador a produção de conhecimento (IÑIGUEZ, 2005a). Tal problematização debruça-se sobre as práticas discursivas e não discursivas para questionar as noções de verdadeiro e falso e entender como e por que algumas noções assumiram o posto de evidências inquestionáveis. Nesta perspectiva, ambos estudiosos podem contribuir para a compreensão e problematização do saber obstétrico enquanto formação discursiva em seu caráter de verdade absoluta e, por conseguinte, abrir possibilidades para outras práticas, fundadas em outros discursos.

A proposta não é reforçar e corroborar uma dicotomia entre os saberes da forma hegemônica de atenção ao parto e do movimento de humanização, localizando o primeiro como vilão/algoz e o segundo como vítima. Ao contrário, é reconhecer e refletir sobre as posições e implicações de ambos, bem como sobre as possibilidades de diálogo, no processo de formação discursiva sobre a gravidez e o parto em nossa sociedade, atentando para a multiplicidade de discursos que permeia as práticas, expectativas e escolhas, tanto das mulheres (e familiares), quanto dos profissionais (estas, de forma subliminar).

Para tanto, seguindo a sugestão de Joan Scott (1999), mantive o foco nas experiências das mulheres como forma de abrir novas possibilidades ao romper silêncios e desafiar noções dominantes. A experiência é pensada de modo historicizado, para não reproduzir mecanismos repressores e permitir a investigação dos processos de construção de subjetividades. Só assim dá-se a devida importância (e inconstância) aos discursos para a construção de experiências e posicionamentos de indivíduos, que podem ser conflitantes, intercambiáveis e geradores de múltiplos sentidos.

Dito isto, em posse do material produzido, composto por anotações de campo, arquivos em word com os e-mails do campo virtual e arquivo de áudio das entrevistas, a organização das informações construídas durante a pesquisa de campo seguiu os seguintes passos:

2) leituras flutuantes das entrevistas, das anotações de campo e dos arquivos com os e-mails já organizados30. Isto foi feito com a intenção de captar os principais eixos abordados e possíveis categorias;

3) identificação dos eixos temáticos;

4) elaboração de um quadro de análise para cada uma das entrevistadas31;

5) marcação de trechos dos arquivos com os e-mails e das anotações de campo seguindo os eixos temáticos identificados;

6) categorização.

Os eixos temáticos foram desenvolvidos pautados nos objetivos da pesquisa e em outras informações que, para além dos objetivos, saltaram como relevantes durante a pesquisa de campo. Foram eles:

1) corpo; 2) parto; 3) maternidade e feminismo; 4) humanização; 5) poder; 6) cuidado de si; 7) natureza e cultura;

Os quadros de análise foram construídos com base nos eixos temáticos, para que então pudessem ser definidas as categorias. Estes quadros foram formulados com inspiração livre nos mapas de associação de ideias de Mary Jane Spink e Helena Lima (2004), sobre o qual fiz algumas adaptações. Para cada uma das mulheres entrevistadas, elaborei um quadro. Neles incluí trechos das entrevistas ligados aos temas e, em seguida, atribuí categorias a cada um dos trechos, dentro de seus eixos temáticos, como pode ser visualizado na figura que segue.

                                                                                                               

30 Para mais informações ver o item 2.2 desta tese. 31 Ver modelo de quadro de análise no Apêndice E.

Figura 03: Diagrama da sistematização das informações.

Saliento que os eixos temáticos e as categorias não são excludentes. A opção por separá-las e organizá-las dessa forma é só uma tentativa de sistematizar as informações de uma maneira mais didática e de fácil compreensão para a/o leitor/a. Por isso, chamo a atenção para o fato de que um item está intimamente ligado ao outro e o encadeamento deles pretende facilitar a compreensão do todo. Dito isto, é necessário esclarecer que pode acontecer de serem retomados aspectos já tratados anteriormente no decorrer do texto, mas tentei evitar tal situação para que a leitura não se torne enfadonha. Contudo, não se pode perder de vista que os eixos temáticos e categorias estão interligados e, por conseguinte, a compreensão de um permitirá a compreensão do outro. Por fim, gostaria de destacar que o que denomino como categoria não está sujeito a um processo classificatório e hermético. Ao invés disso, seus limites fluidos dialogam com as outras categorias e eixos temáticos, o que denota um trânsito entre os sentidos produzidos. Para exemplificar, posso citar a estreita relação entre o eixo maternidade e feminismo e o eixo poder,

bem como entre a discussão sobre risco, segurança e medicalização, sobre natureza, cultura e cuidado de si, e assim por diante. Todos estes eixos apresentam categorias que podem, perfeitamente, complementar e aprofundar pontos analisados nos outros. A figura a seguir ilustra como se deu a organização das análises a partir das categorias.