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Sobre aquilo que se quer afastar: a medicalização

3 CORPOS, PARTOS, MATERNIDADES E FEMINISMOS

3.8 Algumas perspectivas de humanização do parto

3.8.1 Sobre aquilo que se quer afastar: a medicalização

Complementar às ideias de humanização, aparece, entre as mulheres participantes de minha pesquisa, o questionamento e crítica à medicalização da vida e, mais detidamente, à medicalização do parto. Os primeiros tratados e manuais de obstetrícia são de meados do século XIX e foram criados para auxiliar à nova especialidade médica que surgia, especialmente na França. Tais livros possuíam muitas ilustrações ricas em detalhes da superfície e do interior de corpos autopsiados de mulheres mortas nos últimos meses da gestação. O rigor quanto aos detalhes na composição dos desenhos demarca uma busca por descobrir os mistérios associados à reprodução e ao corpo da mulher, por meio de uma tentativa de controlar, medir, classificar e mensurar tais corpos, inclusive naquilo que poderia deslizar para a sexualidade. De acordo com Ana Paula Martins (2005) esse processo demarca uma modificação na abordagem e significação dada ao corpo feminino.

A transformação à qual me refiro e que pode ser mais bem compreendida ao se analisar os volumosos tratados de obstetrícia, articula um outro conjunto de valores sobre a feminilidade. As imagens dos corpos femininos presentes nesses livros não deviam servir como estimulantes à imaginação erótica ou inspirar virtudes; pelo contrário, foram planejadas como um efeito do real, como uma objetivação do método de observação e do conhecimento que lhe dera origem, mas também da feminilidade ou, nos termos da época, da natureza feminina, expressão muito usada para se referir à verdade incontornável sobre o destino e a definição social das mulheres. (MARTINS, 2005, p. 646)

Estes saberes estavam presentes no imaginário médico-científico do século XIX, e ainda hoje é possível identificar vários vestígios dele. Martins (2005) sublinha que ilustrações tão rebuscadas, principalmente de úteros, que intentavam destrinchar conformações anatômicas e fisiológicas dos corpos das mulheres, a despeito de fundarem um novo modelo de explicação e método de conhecimento, não alteraram os velhos valores e abordagens conservadoras sobre a feminilidade. Pelo contrário, a autora afirma que serviram para reforçar estes padrões, reiterando a necessidade de escrutinar e inspecionar os corpos das mulheres e incumbindo este poder/saber a poucos, geralmente, homens. A partir destes saberes recém-

elaborados, foram instituídas condutas de higiene para precaver possíveis patologias e as respectivas terapias.

Mary Del Priori (2004) conta que, ante de uma moralidade religiosa, os conhecimentos que embasavam as práticas dos médicos portugueses entre os séculos XVI e XVIII não acompanhavam o progresso intelectual e científico de outros países europeus. Deste modo, no Brasil colônia, o corpo das mulheres era considerado sombrio, obscuro, lugar de contendas entre Deus e o diabo. Neste contexto, e ainda na atualidade pode ser observado, o médico era responsável por formular e implantar conceitos que serviam para manter uma determinada ordem social. Com isto, o corpo da mulher foi subestimado e aquelas que detinham algum saber sobre como tratar do próprio corpo foram perseguidas.

Segundo Françoise Thébaud (2002), a medicalização do parto começou no período entre guerras, impulsionada pelos movimentos em prol da natalidade, principalmente na França. Este é o mesmo contexto de ascensão da higiene social, que trouxe a sujeição da população a um controle médico generalizado, disfarçado sob a égide da segurança e do conforto. Neste ínterim, a oferta de consultas médicas pré e pós-natais passou por um aumento, assim como houve um estímulo à proteção da instituição hospitalar maternidade, onde era possível encontrar técnicas eficazes de assistência asséptica às parturientes.

Em meados do século 20, o processo de hospitalização do parto já encontrava-se efetivado no Brasil, a despeito de nunca ter sido demonstrada qualquer evidência científica consistente sobre sua maior segurança em comparação ao parto domiciliar ou em casas de parto. Em alguns lugares, apesar das resistências das parteiras, a obstetrícia não-médica, leiga ou culta, foi tornada ilegal, bem como o parto não-hospitalizado (DINIZ, 2005, p. 629). A entrada de médicos na assistência ao parto “inaugurou, não só o esquadrinhamento do corpo feminino, como a produção de um saber anatômico e fisiológico da mulher, a partir do olhar masculino” (BRENES, 1991, p. 135).

A medicalização do parto pode ser concebida, portanto, como o processo de transferência das parturientes para as maternidades que transformou o parto em “um ato médico praticado em lugares muito medicalizados” (THÉBAUD, 2002, p. 415). Modificações sociais e políticas, bem como descobertas científicas e avanços tecnológicos tornaram o ambiente propício para a redução de partos domiciliares que eram assistidos por parteiras e, ao mesmo tempo, a elevação de internações

maternas e neonatais e de intervenções sobre estes. Contudo, ainda de acordo com Thébaud (2002), a partir da década de 1970, o processo de medicalização esbarrou num movimento de contestação do poder médico e nas reivindicações das mulheres quanto a decidirem sobre seus corpos.

É por volta do final dos anos 1980 que o movimento social pela humanização do parto e do nascimento tem início no Brasil (TORNQUIST, 2002). Seus motes eram a crítica ao modelo vigente de assistência ao parto e ao nascimento, a defesa de mudanças no acompanhamento hospitalar/medicalizado ao parto, a partir das recomendações da OMS, onde se vê o incentivo ao parto vaginal, ao aleitamento materno no pós-parto imediato, ao alojamento conjunto de mãe e filho, à presença do pai ou outro acompanhante da escolha da mulher no processo do parto, ao trabalho de enfermeiras obstetras na atenção aos partos normais, à inclusão de parteiras tradicionais no sistema de saúde, à mudança de rotinas hospitalares avaliadas como desnecessárias etc. Tornquist (2002) salienta que, à luz de uma perspectiva construcionista, a humanização prega o reconhecimento do parto como uma experiência simbólica, em que é possível notar a interdependência de fatores biológicos, psíquicos e culturais.

Sendo assim, a humanização do parto e do nascimento é avessa ao parto medicalizado, visto como tecnologizado, artificial e violento, e associa-se a práticas biomecânicas no trabalho de parto, consideradas como mais integradas à fisiologia do parto e, portanto, menos agressivas. Avaliada também por Tornquist (2002) como uma categoria polissêmica, a humanização conta com algumas correntes mais extremistas, que superam as críticas advindas da OMS e defendem que o parto hospitalizado, recheado de procedimentos não-naturais, é nocivo à mulher e ao bebê, por afastá-los de sua suposta natureza, negando-lhes o direito à vida e a boa saúde. Ademais, o movimento defende a minimização da dor do parto e sua transformação num evento mais prazeroso, por meio de técnicas de controle da dor, da relevância dada à sexualidade da mulher, da valorização do bebê, da participação paterna, da inclusão de outros profissionais na equipe de assistência e, principalmente, a valorização da fisiologia.

Isto posto, a humanização do parto aparece como alternativa de fuga ao modelo padrão de assistência ao parto e como saída para as mulheres que questionam a medicalização do evento. Entre minhas interlocutoras, a opção pelo parto humanizado caminha junto com a crítica à medicalização, muitas vezes não só

do parto, mas da vida. Então, os modos de considerar os riscos, de conceitua-los e classifica-los passa por uma revisão e assume outros sentidos a partir das próprias experiências. Achei especialmente significativo o fato de todas as minhas entrevistadas trabalhadoras da área de saúde terem se afastado do trabalho, por meio de licença médica, por um período de pelo menos uma de suas gravidezes. Todas elas mencionaram que o ambiente de trabalho, medicalizado e tecnicizado, interferia em sua busca por uma gravidez e um parto afastados, o mais possível, deste paradigma, como os trechos abaixo demonstram.

Como eu me senti no início da minha gravidez, eu tá, isso me fez realmente parar muita coisa, inclusive no meu trabalho assim, eu não tinha... não sei também se é porque eu trabalhava diretamente com isso, com gravidez, com parto, com gestante de alto risco, com complicações e não sei que, eu não sei se foi uma defesa também minha, que eu realmente não queria tá encarando determinadas coisas e aí de repente eu não conseguia mesmo, sabe, fisicamente né. Eu acho que era bem uma coisa de proteção mesmo. Eu acho. Eu acho que foi bom. (Clarice)

...mas eu realmente relaxei, entrei na coisa do estou grávida, que massa, já lá pelo terceiro ou quarto mês. Aí, já começou a história né, de preparar o espaço, de pensar no parto, de frequentar grupo, né, enfim, aí foi muito feliz, foi maravilhoso assim. Né? Foi uma época de muita plenitude. Ao mesmo tempo, nas duas experiências de gravidezes, eu tive muitas atribulações no trabalho, né, no período da gravidez. E precisei me afastar um pouquinho antes e nesse momento em que eu me afastei, assim, tipo, um mês antes do parto, de Filha2, só quinze dias antes do parto que eu já me afastei do trabalho, e que eu fiquei mais centrada na experiência de tá grávida foram momentos assim maravilhosos, são os momentos em que eu guardo na memória assim com uma... com um carinho enorme, assim, aquela saudade, ai que delícia que era aquela época! Apesar de que tinha desconfortos físicos e tal, então, eu ficava incomodada, reclamava, mas a sensação de conexão com a criança e de conexão com o todo, de conexão com uma coisa maior, fantástico. Maravilhoso! (Rosa)

Minha primeira filha eu tive quando eu era residente de obstetrícia. Então, eu tava entre o primeiro e o segundo ano de residência quando eu tive ela, e eu, isso pra mim foi bem importante porque acho que isso influenciou também o resultado. Né? Então, eu vivia nessa época dentro dos hospitais, dando muito plantão, e dentro do Imip, que é um hospital de referência, que no caso, a gente via muitos casos com desfechos ruins e negativos, então, é, eu vivia sempre vendo coisas dando errado, quer dizer, eu via coisas dando certo também, mas você acaba sendo influenciada pelas coisas que você vê dando errado. (Maria)

Para Sonia Hotimsky e Augusta Alvarenga (2002, p. 477), a cena do parto pode ser analisada como um palco de novas formas de “controle social das subjetividades, das relações de gênero e da família”. Assim, a escolha por um parto humanizado pode se constituir numa alternativa de “exercício de não passividade diante das facilidades tecnológicas e de dúvida sobre as possibilidades mágicas de

solucionar problemas reprodutivos” (SCAVONE, 2001, p. 150). Com isso, as mulheres negam a subordinação e assumem um papel ativo sobre o evento, subvertendo os padrões estabelecidos, que retroalimentam a medicalização, a visão da mulher como sempre passível de intervenções, porque fraca e imperfeita, e da maternidade como vivência de sacrifício e realização.

Neste interim, a noção de risco, compreendida como construída social e culturalmente e com variantes individuais a partir de interpretações subjetivas (LUPTON, 2005), passa a ser visto como o desrespeito às opções da mulher, à sua possibilidade de ter domínio sobre o corpo. O risco seria então, a mulher perder o controle sobre o próprio corpo a partir da apropriação do processo de gestar e parir pelos profissionais que se propõem a acompanha-la. Assim, as mulheres teriam suas autonomias tolhidas e seriam desconsideradas enquanto pessoas que pensam, sentem e agem. Assim como seus bebês também poderiam correr esse risco. O bebê costuma ser considerado por essas mulheres como portador de uma história, com potencial de decidir o momento e o modo que nascerá. Por isso, além do direito da mulher de decidir sobre o próprio corpo, sobre a maneira como desejam receber a atenção a seus partos e as informações pertinentes de modo claro e confiável, para, então, fazer suas escolhas, muitas mulheres também referem o respeito ao momento e modo como seus filhos decidiram nascer.

...o meu trabalho de parto foi diferente do das minhas irmãs e da minha mãe, foi longíssimo, foi uma coisa que assim, superando todos os obstáculos, horas e horas, apesar de ter sido sempre com progresso, foi muito lento. Então, eu cheguei ao fim, absolutamente exausta. Então, realmente, teve uma hora que eu pedi anestesia, depois eu parei de usar anestesia, coisas que eu não queria, né, depois, na hora da saída dela mesmo assim, eu pedi pra tirarem ela, que eu já não aguentava mais e ela nasceu também um pouco deprimida, então, ela precisou cortar o cordão pra dar pra pediatra, mas são coisas que eu vi que eu precisava viver. E apesar de ter doído muito, de ter muito demorado, de não ter sido exatamente o que eu imaginava, foi, sem dúvida nenhuma, uma das melhores experiências da minha vida. Foi muito bom. (Maria)

...ele nasceu bem molinho, assim, roxinho, hipotônico, eu como mé... como pediatra né, porque não era, nem sou pediatra ainda, vou ser um dia, mas assim, tendo alguma vivência disso, assim, vi que ele tava roxinho, que ele tava molinho, mas mesmo assim eu tava, eu vi que dava pra... tipo, eu não me preocupei, eu não me desesperei, eu não me estressei, eu peguei ele, botei no peito, fiquei, aí, elas foram enxugando, não sei que, aí depois, apareceu a pediatra que eu também nunca tinha visto mas ela leu o plano de parto no dia e que é a pediatra dele até hoje, maravilhosa ela, disse, posso pegar? (Ana)

Esta discussão aponta para a noção de pessoa, debatida por Mauss (2003b). Para este autor, esta é uma noção que varia de sociedade para sociedade, constituindo-se como categoria jurídica, moral e lógica, que não pode ser generalizada ou universalizada. Ela aponta para uma crescente autonomização e diz respeito à atribuição de sentimentos, pensamentos, ações e uma história particular para a pessoa, como pode ser observado em relação ao parto não só no que diz respeito à mulher, mas também aos bebês. Desta forma, ao atribuir-lhes uma história particular, carregada de peculiaridades e sentimentos e ressaltar a necessidade de respeitá-los, as mulheres estão ressaltando o entrelaçamento entre suas histórias e as histórias de suas/seus filhas/os como alternativa de processos de subjetivação, cingidos por práticas de liberdade, exercício de autonomia e problematização de hierarquias, como será explorado no capítulo a seguir.

4 PARIR É LIBERTADOR: PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO,