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4 PARIR É LIBERTADOR: PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO,

4.3 O parto como possibilidade de cuidado de si

4.3.2 Das fotos e vídeos de parto

As fotos de parto que circulam nos grupos de discussão pela humanização do parto e do nascimento cumprem, em minha interpretação, um importante papel de promover o processo de subjetivação das mulheres, na medida em que, como alternativa de escrita de si, servem para que elas analisem aquilo que consideram verdade sobre a qual pautam suas escolhas de parto. Em posse destas escolhas/verdades, as mulheres costumam listar suas expectativas, desejos, práticas, frustações, planos etc. Assim, as fotografias, além de assumirem o lugar de uma narrativa, cheia de emoção e posicionamentos éticos e políticos, são capazes de engendrar outras memórias de parto. Neste ínterim, cabe lembrar que o cuidado de si é também o cuidado do outro, na medida em que se dá em interação, sendo a narrativa destas mulheres uma demonstração de luta contra a normatividade e o controle biopolítico dos corpos, culminando na busca de novas expressões subjetivas, políticas e sociais.

Tirar e divulgar essas fotografias de parto em grupos de discussão pela humanização do parto e do nascimento, além de servir para burilar a própria existência, atua como forma de releitura do passado para expressar o desejo de renovação e de liberdade de fazer de modo diferente no presente. “A escrita de si

impõe-se como necessidade de ressignificação do passado pessoal, mas também coletivo”(RAGO, 2013, p. 57). Daí analisar a fotografia de parto como possibilidade de ressignificação dos sentidos de mulher, maternidade, família, dentre outros elementos, ao tensionar e criticar discursos moralizadores e normalizadores disseminados pelo cristianismo e pela medicina. Nos retratos de parto humanizado, são performados outros modos de produção subjetiva que escapam às formas biopolíticas. Há uma busca de assumir o controle sobre a própria vida, de tornar-se sujeito, “autor do próprio script” (RAGO, 2013, p. 52).40

Nas fotos de parto divulgadas no grupo de discussão pela humanização do parto e do nascimento, é possível observar a reconfiguração do lugar da gestante/parturiente, o questionamento da onipotência do médico, da confiabilidade das instituições envolvidas na atenção à gravidez e ao parto e, portanto, a redefinição dos lugares ocupados por cada um dos atores sociais que fazem parte desta situação. Assim, abre-se caminho para novas relações de poder que são controladas por meio das práticas de liberdade.

“Mas, para que essa prática de liberdade tome forma em um ethos que seja bom, belo, honroso, respeitável, memorável e que possa servir de exemplo, é preciso todo um trabalho de si sobre si mesmo”(FOUCAULT, 2010, p. 270). É neste sentido que a exposição destas fotografias de parto pelas parturientes parece se direcionar. Se, na Antiguidade, havia o desejo de construir uma vida exemplar que fosse reconhecida no presente e na posteridade, hoje, entre as mulheres que participam do grupo de discussão pela humanização do parto e do nascimento, há um desejo de mudar o cenário obstétrico nacional, a visão hegemônica sobre o corpo da mulher, as práticas predominantes em relação ao parto, dentre outras dimensões e, divulgar suas fotografias é uma forma de servir como exemplo, de mostrar para outras mulheres que com elas também pode ser possível.

Instaladas em novos territórios, essas mulheres e suas práticas apontam para a exposição de existências que são grafadas, ditas e esclarecidas como atitude crítica aos valores morais e às verdades instituídas, apontando tanto para um trabalho sobre si quanto para a luta em defesa da dignidade, da justiça social e da ética. Escrever-se é, portanto, um modo de transformar o vivido em experiência,

                                                                                                               

40 Sobre este tema, o vídeo intitulado Por que fotografar e filmar o parto? do grupo Além d’Olhar é bastante ilustrativo e pode ser visto no seguinte endereço: https://vimeo.com/106336215

marcando sua própria temporalidade e afirmando sua diferença na atualidade (RAGO, 2013).

...eu tenho uma experiência muito positiva, foi diferente dos planos né, Filho1 não nasceu dando pulos, mas, foi maravilhoso, assim, foi muito, vixe Maria né. Muito, muito, muito, assim, e assim, eu sou muito feliz por ter feito as fotos né, porque tem coisas dessas que eu só me lembrei, assim, por exemplo, que eu falei não sei que, só com o vídeo, sabe? Que Doula filmou bem assim, mas filmou. E... assim, eu acho que o registro é bem... claro, cada um que sabe, mas pra mim foi muito importante assim, é assim, eu amo, vixe Maria, essas fotos são para mim um tesouro, um tesouro. (Ana)

O trecho acima ilustra como as fotografias e vídeos de parto funcionam como importante memória, capaz de revelar a emoção presente no parto/nascimento e desmistificar diferentes dimensões relacionados à mulher, ao corpo, à gravidez e ao parto. Isto permite que fotos e vídeos, especialmente quando divulgados na internet, cumpram um papel de questionar normas e apresentar outras estéticas para a vivência do parto.

O retrato acima circulou, e ainda circula em muitos ambientes virtuais de discussão sobre parto, carregando uma outra narrativa para o acontecimento. Nele observa-se a emoção presente no momento do nascimento do filho. Para além dos padrões de moralidade e dos modelos de descrição médicos, não há restrições quanto à nudez da mulher, quanto ao sangue e fluídos corporais expelidos durante o parto, quanto à postura assumida pela modelo. Esta fotografia traz uma nova proposta de leitura sobre a mulher/mãe e o parto ao desestabilizar noções tais como a de assepsia, risco, beleza, afeto, dentre outras.

Nesta fotografia, a mulher assume o papel central, é ativa, expressa afetos. Seu corpo, além de reprodutor e receptáculo do bebê que acabara de nascer, exala sexualidade e encontra-se aberto a possibilidades de erotização. A mulher é percebida em sua totalidade, sem fragmentações ou submissões. As secreções corporais, o bebê, a mãe e o cordão umbilical, ligado à placenta que ainda não havia sido expelida, tencionam a concepção do todo e das partes, do dentro e fora, do limpo e do sujo, do risco e da segurança, do prazer e da dor, criando uma unidade, ou continuidade, e uma nova estética.

É importante esclarecer que as fotografias deste tipo de parto se diferenciam fortemente das corriqueiras fotos de partos normais convencionais ou cesarianas, que parecem corroborar a submissão feminina, onde o aparato tecnológico e a equipe médica ocupam o papel principal. Nelas vê-se a autonomia da mulher, ilustrada como uma alegoria que ratifica a confiança na e a centralidade da equipe médica, do ambiente hospitalar e da tecnologia. Afastando-se desta narrativa, a proposta das escritas sobre parto produzidas entre as mulheres que participaram desta pesquisa parecem se aproximar muito mais de uma continuidade entre natureza e cultura, entre corpo e mente, entre dor e prazer, e outras a serem aprofundadas no próximo capítulo.