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4 PARIR É LIBERTADOR: PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO,

4.3 O parto como possibilidade de cuidado de si

4.3.1 Dos planos e relatos de parto: a escrita de si

De acordo com Foucault (2010), a escrita de si desponta, antes do cristianismo, como uma das técnicas de cuidado de si que sustenta uma forte relação com a corporação de companheiros, com a observação dos movimentos do pensamento e com a incumbência de discutir a verdade. Refere-se a uma prática de agrupar o que se ouviu, leu ou viu, com o intuito de constituir-se a si mesmo. “Escrever é, portanto, ‘se mostrar’, se expor, fazer aparecer seu próprio rosto perto do outro” (FOUCAULT, 2010, p. 156). É neste ponto que acredito ser possível estabelecer um paralelo com as práticas das mulheres que participaram desta pesquisa. Fotografar o parto, divulgar as fotos nas redes sociais, construir diários,

relatos de parto, planos de parto, além dos significados atribuídos pelas mulheres ao próprio parto, são por mim analisados como recursos de subjetivação, práticas de si, quando se busca estabelecer uma continuidade entre a própria experiência e as experiências coletivas.

Trata-se, antes, de um trabalho de construção subjetiva na experiência da escrita, em que se abre a possibilidade do devir, de ser outro do que se é, escapando às formas biopolíticas de produção do indivíduo. Assim, o eu de que se trata não é uma entidade isolada, mas um campo aberto de forças; entre o eu e o seu contexto não há propriamente diferença, mas continuidade. (RAGO, 2013, p. 52)

Nesta perspectiva, a escrita de si promove um trabalho de reinvenção da subjetividade, quando o indivíduo ganha contornos de sujeito de si mesmo, na medida em que é autor do próprio script, construído com base na relação do indivíduo consigo mesmo e não a partir de um processo confessional e coercitivo, já que a verdade que se pretende com a escrita de si é a verdade de si, e não a verdade de uma autoridade exterior, em que o eu é objetificado. A escrita de si pulsa, portanto, como uma das tecnologias de elaboração do indivíduo, perpassada por uma atividade ética, experimentada como prática de liberdade e como possibilidade de abertura para o outro, constituindo-se como um trabalho sobre o próprio eu em um contexto relacional.

Porque eu precisava entender é... na mulher que eu me transformei na época, né, e assim, é muito difícil você parar uma vida que tá com muita informação, muita rotina, muito trabalho, muita coisa pra fazer e parar pra pensar. Eu não conseguia mais me organizar, então eu decidi escrever. Né, assim, o que eu fazia, né, dia após dia eu escrevia né, hoje acordei de manhã com vontade de comer torrada, um exemplo né, a percepção do que eu fazia aos poucos me mostrou como que tava minha vida né, o que que se preenchia na minha rotina, o que que preenchia minha rotina e aí eu comecei a entender o que que era importante pra mim, o que não era importante pra mim e comecei a ficar mais organizada, entendeu? A ver coisas que não precisavam tá ali, e eu tirei, né da minha vida, disse não pra elas, coisas que eu precisava correr atrás eu corri atrás, né, e até mesmo a percepção de que meu casamento não tava bem daquele jeito, eu precisava ter um diálogo com meu marido e eu não dialogava com ele, até isso era bom pra mim entender que tava errado. Até isso entendeu, assim, realmente foi importante pra mim, me descobri como mulher ali porque até mesmo eu ia me tornar uma mãe né, então, foi muito importante pra mim escrever, mas era isso, eu fazia diários, eu fazia poesia, eu fazia música, fazia é... coisas que doíam muito e que eu sabia que não podia dizer a ninguém, eu escrevia, coisas que ninguém ouvia, eu escrevia. Pronto, foi por isso que eu comecei a escrever, pra me organizar, pra falar comigo mesma, pra entender quem eu era. E até hoje eu escrevo. (Mariana)

A escrita de si se configura como uma prática de liberdade, a partir da qual o indivíduo se constitui ativamente, calcado em uma orientação ética. Para tanto, é

necessário haver um exame crítico de como a pessoa chegou a ser o que é, mesmo convivendo com os discursos normatizadores. Escrever apenas reproduzindo-os seria um processo de sujeição. E este não é o caso, já que a decisão desta escrita expressa a disposição de colocar em questão a própria existência. Assim me parece que funciona o mecanismo de escrita do plano de parto e do relato de parto, quando os discursos hegemônicos são subvertidos e busca-se uma prática condizente com a verdade de si.

É preciso esclarecer que os planos de parto funcionam como documentos nos quais as mulheres deixam explícitas suas expectativas durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato. Este documento pode assumir diferentes características, desde as mais poéticas até as mais esquemáticas, e deve ser lido por todos os profissionais envolvidos no acompanhamento ao parto. Nele comumente são listados todos os procedimentos aos quais a parturiente deseja ou não se submeter, incluindo técnicas farmacológicas e não farmacológicas para o alívio da dor; a organização do ambiente; as pessoas que devem estar presentes; os procedimentos com o recém-nascido e assim por diante.

O plano de parto aparece como alternativa para escapar da prática obstétrica de rotina e estabelecer novas relações de poder, controladas por práticas de liberdade. Para elaborá-lo é preciso que a mulher busque informações, esteja a par das etapas fisiológicas de um trabalho de parto, das técnicas existentes e seus efeitos (positivos e negativos), suas possibilidades de aplicação e assim por diante. Para isso, a participação nos grupos de discussão presencial e virtual, a leitura de planos parto e relatos de outras mulheres, a orientação de profissionais, especialmente de doulas, aparece como imprescindível. À par disso, a mulher grávida pode julgar e selecionar aquilo que se adequa aos seus desejos e reais possibilidades. Costuma-se, inclusive, discutir o plano de parto com a equipe que acompanha a mulher durante o pré-natal. Segundo as mulheres mais experientes que participam do grupo, esta pode ser uma estratégia para avaliar se sua equipe é ou não adepta do parto humanizado, é ou não intervencionista e é ou não cesarista. Sendo assim, o plano de parto funciona também como uma ferramenta para o estabelecimento de uma espécie de pacto de confiança entre a parturiente e sua família e a equipe de profissionais, na medida em que ambos os envolvidos demarcam suas responsabilidades de escolha livre e esclarecida e de atuação profissional comprometida.

Estamos cientes de que o parto pode tomar diferentes rumos. Abaixo listamos nossas preferências em relação ao nascimento de nosso bebê, caso tudo transcorra tranqüilamente. Sempre que os planos não puderem ser seguidos, gostaríamos de ser previamente avisados e consultados a respeito das alternativas.

Certamente essa é uma lista bastante completa e detalhada. Fazer listas, organizar tudo e tentar estar preparada para imprevistos fazem parte da minha rotina, da minha personalidade. Contudo, sei que se trata de um plano ideal, controlado e que provavelmente não poderá ser plenamente seguido e executado. Ademais, é possível que eu expresse desejos diferentes durante o processo, e peço que sejam ouvidos e respeitados. Não se trata, portanto, de uma lista de ordens, mas de um ponto de partida para a conversa.

Acima de tudo, escrevi tudo isso com dois grandes objetivos: imaginar-me nas situações, pensar nos meus desejos e expectativas, e eventuais imprevistos... Mas o principal é poder esclarecer minhas preferências e delegar funções, para que eu me permita desligar da esfera prática e racional, para embarcar na maior viagem da minha vida, sem preocupações alheias a esta... (Trecho do plano de parto de Ana)

O trecho do plano de parto de Ana exposto acima, além de um exercício de escrita de si, subentende a efetivação de um pacto de confiança com a equipe, no qual direitos e responsabilidades são elucidados. Nota-se também uma espécie de roteiro construído tendo como base as práticas hegemônicas, com o intuito de subvertê-las.

Por sua vez, os relatos de parto são textos escritos após o nascimento das crianças e servem para contar como o parto ocorreu. Os relatos de parto costumam ser construídos embebidos de emoções que caminham da alegria, gratidão, humor pela vivencia do parto desejado, ou indignação, revolta e frustração pela sensação de impotência, desrespeito e parto roubado. É comum adquirirem um tom de manifesto, pelo menos na finalização do texto, uma vez que, tomadas pelo sentimento de revolta ou de poder, as mulheres tendem a buscar denunciar as violências praticadas pela assistência corriqueira ao parto e convidar as/os leitoras/os a perceberem que é possível experienciar o parto de modo positivo.

Ao confeccionarem seus planos de parto e relatos de parto, as mulheres parecem buscar ou anunciar o respeito às suas autonomias, o que denominam

protagonismo, e o reconhecimento de seus direitos de decidirem de modo informado

sobre a assistência a seus partos. Desta forma, parece-me plausível propor que há uma relação entre a prática de construir planos e relatos de parto entre as mulheres que participaram desta pesquisa e a escrita de si, enquanto técnica de cuidado de si, e, mais uma vez mencionar a sua conexão com a corporação de companheiros, com a vinculação aos movimentos do pensamento e com um papel de discutir a verdade.

Também aqui cabe lembrar a prática de reunir o que se pôde ouvir, ler ou ver, com a finalidade de constituir-se a si mesmo (FOUCAULT, 2010).

Sendo assim, é possível destacar o aspecto relacional das definições normativas da gestação e parto, de modo que aquilo que é considerado adequado para bebês, mulheres e famílias podem ser questionado pelas mulheres que buscam um parto humanizado e se encontram, por isso, em uma situação de contravenção ou linha de fuga. Neste cenário, a escrita de si se constitui em uma prática de liberdade baseada no exercício de si sobre si mesmo, a partir do qual pode-se transformar, elaborar-se e alcançar um certo modo de ser. Nas práticas de liberdade, as questões de dominação e relações de poder são levadas em consideração para definição de formas aceitáveis e satisfatórias de existência e da sociedade política (FOUCAULT, 2010). Assim como os planos e relatos de parto, as fotografias e vídeos, como mencionado acima, também podem ser analisadas como possibilidades de cuidado de si, como pode ser visto a seguir.