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3 CORPOS, PARTOS, MATERNIDADES E FEMINISMOS

3.1 O corpo que dá à luz

Neste item abordo os sentidos atribuídos ao corpo que dá à luz, a partir das experiências de gravidez e parturição das mulheres que participaram desta pesquisa. Para elas, o corpo assume uma série de sentidos onde cabem contradições, instabilidades e incongruências. O corpo é local de transformação e contemplação, é guia e estratégia, é espaço de poder e saber. O corpo grávido pode assumir contorno de uma entidade que é transcendente e imanente, canal de conexão consigo e com o todo maior em uma linha que define segurança, criatividade e outros padrões para lidar com a gravidez, o parto e os eventos a ele subsequentes e experienciado como uma dimensão subjetiva e como objeto. Este aspecto pode ser equiparado ao modo como Francisco Ortega (2008) descreve a “ambivalência ontológica da visceralidade” (p. 80), quando refere-se aos órgãos internos como um poder que atravessa o indivíduo, vivificando-o em uma relação onde cabe pertencimento a ambos envolvidos (os órgãos pertencem ao indivíduo e o indivíduo pertence aos órgãos), de modo que os órgãos assumem o patamar de um

outro em mim e exigem um constante exercício de transformar o estranho em familiar. Para o autor, o interior do corpo provoca angústia por ser algo que não se pode controlar, que escapa à apreensão do indivíduo, mas o habita. Na gravidez e parto, estes processos também podem ser identificados, e até exacerbados, e a maneira encontrada pelas mulheres de lidar com eles é estabelecendo uma continuidade entre entregar-se e buscar ativamente informações para decidir e planejar caminhos.

...inicialmente, assim, eu acho que demora um pouco pra cair a ficha. Né? E é uma coisa assim.. muito nova né, que você sonhou a vida inteira, mas estar no estado gravídico é muito especial, é muito diferente. Pra mim teve essa nuance de, das limitações, mas eu acho que na verdade toda gravidez tem. Eu acho que senti um pouco mais, e hoje em dia eu acho que me queixava mais do que... como eu posso dizer? Eu tive uma experiência negativa e que eu não devia ter... ter sentido como tão negativa, porque eu sentia muita dor, eu tinha essas limitações, eu tive que deixar completamente os meus projetos de vida por isso sabe, assim, para estar grávida, né. Não era nem para cuidar do bebê, era para, por estar grávida. Então, assim, teve uma parte negativa assim de pesar, assim, sabe? Mas também não foi uma coisa que eu fiquei, não fiquei... assim, eu tenho uma história de depressão, de transtorno ansioso, faço uso de medicação, então, assim, mas da gravidez eu não tive nenhum sintoma depressivo, e aí depois... principalmente depois que ele começa assim, a barriguinha começa a aparecer, né, e ele começa a mexer, aí, é... assim... é... é, na verdade, eu sentia que era uma viagem, assim, uma loucura, no sentido de meu Deus tem alguém dentro de mim, mexendo, sabe? Aí você começa a entender que não é só você, a sua barriga, é uma outra... um outro ser, tipo, você pode tá acordada e ele dormindo, ou vice-versa. E enfim, tem suas vontades, assim né, a posição que você fica e tudo, e foi maravilhoso assim. Eu fiquei um pouco também angustiada, principalmente no começo, não só no começo, com a questão física, sabe, assim, de engordar, como eu já tive problema de... de... de muito peso, e eu tava assim super, com o peso mais magrinha que eu tava em minha vida, então eu tava ótima, e aí pronto, como é que eu vou recuperar, não sei que, enfim, mas também acho que isso é uma preocupação inicialmente de toda mulher, mas aí depois quando você começa a se envolver com as outras coisas que são muito mais relevantes realmente, aí você... mas isso na gravidez, por exemplo, isso era um dos medos meus, assim, ‘ah se eu não conseguir voltar a forma?’, só que aí depois que ele nasce, aí você nem liga pra sua barriga, pra sua ah não sei que, depois o corpo vai se resolvendo, mas assim, né, as prioridades realmente mudam. Então, foi isso, foi muito bom, foi muito bom, além dos percalços, mas não foi uma gravidez complicada no fim das contas e... e foi maravilhoso ter podido também ter esse tempo que eu não teria né, então, como eu disse, o primeiro aprendizado foi esse assim, que, Deus sabe o que faz. A gente não pode planejar tudo, às vezes é melhor de outra forma, então assim, ter podido parar, desacelerar, curtir, planejar as coisinhas dele, o quartinho, viajar pra comprar as coisas, enfim, tudo que tinha direito, mas, enfim, foi ótimo. (Ana)

Esta fala é ilustrativa em relação a uma série de ambiguidades vividas no corpo grávido. Tais ambiguidades envolvem de modo inseparável aspectos físicos e sociais, dando lugar, ao mesmo tempo, a sentimentos de pesar e maravilhamento,

sensação de sonho realizado e interrupção de projetos, dentre outros. Esses sentimentos, experienciados desde o início da gravidez, são revisados e ressignificados após o parto, quando há o balanço de todo o processo vivido e abre- se espaço para concluir sobre aprendizados, prioridades e transformações. Há, entre minhas interlocutoras, uma tendência a avaliar de modo positivo o processo, sem desconsiderar os aspectos negativos, que são, depois de passados, ressignificados. Contudo, vale destacar que estas ambiguidades nem sempre são vividas com tranquilidade. Ao contrário, são motivo de angústia, conflitos e culpa que não podem estar dissociados dos símbolos culturalmente disponíveis em relação à gravidez e maternidade, dos conceitos normativos e instituições que investem sobre o tema e se emaranham na significação das experiências subjetivas. Posso supor até que, por mais difíceis que tenham sido as experiências, há uma obrigatoriedade de significá-la positivamente.

...eu gostei muito de estar grávida. É... apesar que, assim, fisicamente, nem sempre pra mim era tão agradável em todos os momentos, porque eu me sentia mais pesada, né, claro assim, mais sonolenta, mais devagar, apesar que eu nunca engordei muito, é... e tinha algumas coisas, algumas queixas chatinhas de gravidez, né, sei lá, incontinência urinária, umas coisas assim que me incomodavam um pouco, mas eu gostava de tá grávida. (Maria) ...pra mim também foi uma surpresa porque é... apesar de ter sido muito desejada e passado todo esse tempo, tal, eu fiquei bastante preocupada, porque minha gravidez, inicialmente foi terrível. Assim, eu me sentia muito mal, eu enjoei demais, eu vomitava, eu me sentia mal, irritada, sabe. Então, eu às vezes me pegava preocupada e bem triste pensando assim ‘poxa, eu desejei tanto, eu queria tanto e eu não tô conseguindo curtir essa gravidez, porque tô me sentindo muito mal’ e aí, isso depois foi se superando, foi passando. Vai passando os enjoos, foi melhorando, foram vindo outros desconfortos (risos). Aí, eu descobri que não é fácil de estar grávida né. Uma coisa, uma situação onde a gente fica bem mexida assim de tudo, porque não só a questão física, mas a questão mesmo emocional mesmo. Eu senti que eu mudei bastante, meu temperamento mesmo assim. Acho que eu fiquei mais agressiva, mais irritada, não tinha muita paciência com as coisas sabe, eu digo, sempre digo assim, que foi uma coisa que me marcou muito na minha gravidez foi eu me sentir estranha mesmo. Olhar pra mim e dizer, ‘peraí, quem é essa aqui? Eu não sei’. (risos)

(...)

...nossa! Era, era... pra mim foi bem conflitante né, porque era uma alegria imensa por aquilo tudo que tava acontecendo, por eu tá realmente vivendo aquilo que era uma coisa que eu desejava muito, sempre quis, engravidar, parir, amamentar, era um sonho. Sempre foi, né. E eu trabalhava com aquilo todo dia, então, eu via aquilo todo dia e a possibilidade de não ter aquilo, né, que eu tive numa época com a possibilidade de nunca passar por esses... por esse momento, isso me fez esperar demais uma gestação. Mas aí, foi também o outro lado né, não foram flores somente né, teve bastante dificuldade com relação às modificações mesmo do nosso corpo, do nosso emocional, enfim, que realmente me deixaram até meio culpada de tá sentindo o que eu tava sentindo ‘ai meu Deus que coisa’, sabe? Sem, sei lá, não sei nem explicar bem que tipo de sentimento, eu acho que era

me sentindo culpada mesmo, porque eu não tava conseguindo ficar feliz demais com aquela gravidez que eu tanto esperei porque eu tava muito mal. Eu tava muito enjoada, só fazia vomitar, então, isso era bem dúbio né, bem, bem conflitante. (Clarice)

No entanto, encontrei situações em que há uma leitura positiva até para os aspectos comumente vistos como negativos. Nestes relatos, o que parece predominar é a potência do novo que se apresenta, da transformação que vai além do corpo, e da aceitação desse novo corpo. Aqui me parece que estar à deriva de uma gravidez é renovador e o corpo, para além de uma estabilidade, é tomado como sempre passível de mudanças, e, se essas são trazidas pela gestação, são bem vindas, porque também ressignificam o ser mulher.

Eu me acho linda na gravidez. Adoro as formas, as curvas do corpo. Minha pele e meu cabelo ficam mais bonitos... (notas de campo, 2011)

...estar grávida, assim, é fantástico né. Eu acho né. Tanto é que eu tô de novo e aí eu tô deslumbrada, eu acho que é um momento de deslumbre, a gente tá sempre bonita, sempre charmosa. Eu acho que é tudo bonito que envolve a gravidez, eu me acho uma grávida linda e adoro ver cada centímetro do bucho crescer e é um bucho enorme, mas não tô nem aí. Gosto de botar ele pra fora, de ir pra praia só de biquíni pra todo mundo ficar olhando mesmo. Gosto de conversar e gosto de sentir cada evolução assim do bebê e curto mesmo esse momento da gravidez e realmente é mágico assim, pensar que a gente mulher tem condições de gerar uma vida completa que ela sai perfeitinha de dentro de você, e você depois vai ali nutrir o seu filho, e não precisa de mais nada, basta você, ele sobrevive, é muito empoderador, é muito reconfortante, parece que tudo que a gente estuda, que a gente luta, que a gente batalha, que a gente enfrenta no dia a dia, toma mais efeito ainda quando a gente se torna mãe, que a gente vê que além daquilo tudo que faz, a gente é mãe. A gente deu a vida, e tá dando vida a um ser humano, é perfeito. A gente fazer vida é muito interessante isso. É fantástico. (Camila)

Os trechos selecionados acima, especialmente o último, remontam ao segundo momento dos posicionamentos feministas em relação à maternidade, explorados anteriormente. Sobre isso, reflito que o problema não está em posicionar-se a favor da maternidade e parto como forma de poder, já que envolve, de maneira bastante contundente, uma atitude política e ética. O problema está no perigo de que este posicionamento resvale numa forma de essencialização da mulher, que pode reduzi-la e objetificá-la. Daí a importância de frisar que pude encontrar avanços e retrocessos em relação a esta discussão, expressos pelas tensões entre perceber as maternidades, partos e mulheres no plural e considerar o parto como o momento de maior poder da mulher. Se o parto se configura, para algumas mulheres, como estratégia de alcance de poder, ele não deve ser visto

como o único caminho. E, se esse poder tem suas raízes na conexão e no

continuum entre corpo, natureza e divino, o parto não é o único percurso que leva a

isso.

O parto pra mim é o apogeu da vida de uma mulher, assim, é a feminilidade máxima, assim, é lindo uma mulher parindo ela é realmente assim uma deusa, exercendo toda sua feminilidade, eu não consigo imaginar um momento mais belo. Você dar à luz uma criança, isso é uma coisa pra mim sagrada. Mas como eu falei, não é que eu ache que se por acaso for realmente necessário uma cirurgia, que isso destrói a maternidade, não acredito nisso né. Eu acho que o progresso que a ciência trouxe, quando a gente pode dispor hoje em dia da cesariana, é para situações limites. Situações onde isso é realmente necessário, em que pra mulher que realmente vivencia tudo isso, mas que no momento crítico precisa da cirurgia, isso não vai alterar a forma dela ser mãe, ela vai ser mãe. Mas, é, se a pessoa pode vivenciar isso, eu acho que é um plus, assim, o que eu acho muito triste é quando a pessoa podendo vivenciar isso abre mão por motivos fúteis. Né? Isso é assim, o que eu acho mais crítico, né. Não é? É o contrário, eu acho que a cesariana ela pode ser uma ferramenta fantástica quando bem utilizada, o problema é o abuso, então, você de repente usar é... daquilo que era pra ser uma exceção, como uma regra. E isso pode influenciar eu acho como você vai ser mãe. (Maria)

Nesta direção, vale esclarecer também que, entre as minhas interlocutoras, o que notei e analisei como uma tentativa de subversão em relação à forma hegemônica de organização das relações e os poderes nelas envolvidos não é o mesmo que uma busca por inversão. Ou seja, não identifico entre as mulheres que participaram desta pesquisa qualquer afirmação que subentenda que são superiores, mais poderosas ou melhores que os homens por conta de seu potencial de parir. Ao contrário, como será melhor analisado mais adiante, os homens, seus companheiros, costumam ser mencionados como importantes personagens para o parto e até vivenciando, junto com elas, esse acesso e continuidade com o natural divino.

Esta seria, ao meu ver, a relação estabelecida com o homem companheiro, que está ao lado, vivendo junto com ela a experiência do parto. Esta também poderia ser a relação estabelecida com a equipe humanizada, escolhida pela mulher, junto com a qual seus desejos são ouvidos e respeitados. Por outro lado, na relação com o masculino e a tecnologia onde o corpo é lido a partir da metáfora da máquina, como explorado por Emily Martin (2006), posso dizer que há sim uma busca por inversão ou, no mínimo, um afastamento. A visão do corpo como máquina dominou o desenvolvimento de ferramentas na obstetrícia que ocuparam o lugar das parteiras antigas e do potencial que o próprio corpo da mulher carrega em expulsar

o feto. Assim deu-se a necessidade de introdução do saber médico, um saber masculino, na cena do parto, e paulatinamente, as mulheres foram perdendo o controle sobre a situação. Martin (2006) refere ainda que a tecnologia do parto deixa claro relações de poder e o controle sobre os outros, como acontece no tratamento dado ao trabalho de parto, com medições, avaliações, tempos determinados, e na cesariana, quando o instrumental mais sofisticado é acionado.

Um dos aspectos que mulheres que optam por um parto humanizado parecem pleitear é que elas podem parir sem recorrer a toda essa parafernália (de ferramentas e regras), laçando mão delas apenas quando de sua vontade ou necessidade, porque elas, seus corpos, a natureza são sábios e não máquinas.

Roberta - Eu sempre quis ser mãe, desde que eu me entendo por gente, eu sempre fui apaixonada por criança, eu cheguei a fazer um programa de intercâmbio pra tomar conta de criança nos Estados Unidos, por amar realmente estar junto de criança e cuidando e tudo mais. Então, sempre que eu pensava no assunto, eu já achava um absurdo ter uma cesárea, pra mim, assim, sem necessidade obviamente, né, agendar uma cesárea sem necessidade pra mim era totalmente fora de questão.

Laís – Porque o histórico de mulheres na sua família é de cesárea né? Roberta – É, é.

Laís – E como foi assim que deu esse...

Roberta – Não sei. Assim, eu acho que na minha cabeça, desde que eu pensava na maternidade, eu pensava ‘não, a mulher foi feita pra parir, ela tem o corpo feito pra isso’, tudo que acontece durante a gestação prepara a mulher pra isso, por que cortar pra tirar a criança? Era meu pensamento, sem nunca ter lido nada sobre o assunto, sem nunca ter visto, nem sabia que existiam grupos de apoio, eu só fui saber que existia grupo de apoio no dia que eu conversei com esse meu aluno, que é o esposo de Coordenadora do grupo. Eu não tinha a menor ideia que existiam pessoas que davam suporte a mães que precisavam e queriam correr atrás de um parto natural. Então, foi realmente assim, de mim, eu acho, eu que era, até hoje pra mim, inadmissível, no meu corpo não quero. Assim, cada um que queira o melhor pra si, né, mas pra mim e pro meu filho, não quero. Eu não acho normal você ser cortada pra arrancar de dentro de você alguma criança que tem como sair por vias naturais e ser muito mais beneficioso, tanto pra mãe quanto pra criança ser dessa forma, então, não teve ninguém que chegou pra mim ‘ah, você devia fazer’, eu simplesmente não concordava com a cesárea. Nunca concordei. Sem necessidade né, cesárea desnecessária. Então, foi assim, instintivo mesmo correr atrás, e graças a Deus, Deus colocou as pessoas certas nos meus caminhos pra conseguir chegar lá.

Pode-se perceber, portanto, que as mulheres que participaram desta pesquisa, ao estabelecerem outros significados para o corpo, constroem também outras formas de se relacionar com as tecnologias, as imposições culturais, os saberes e verdades biomédicos (e outros) criando espaços para uma possível autonomia e a ocupação de outros territórios sociais. Assim, a ciência é reconhecida como sistema cultural e a imagem do corpo e do parto podem saltar como fonte de

resistência e poder, como espaço de revisão e transformação, como pode ser visto a seguir na abordagem sobre a Bioética Feminista e sobre os sentidos do parto.