• Nenhum resultado encontrado

3 CORPOS, PARTOS, MATERNIDADES E FEMINISMOS

3.3 O parto transformador

3.3.1 Parto como rito de passagem

Diante de todas as revisões e transformações afirmadas pelas mulheres que participaram desta pesquisa a partir de suas experiências de parto, ele pode ser tomado como um rito de passagem, como será argumentado nesta parte da tese. O parto, independente do tipo, é visto pelas mulheres que participaram desta pesquisa como um importante evento que demarca a transição da condição de grávida para a de mãe. O parto sinalizaria, assim como apontado por Arnold Van Gennep (2011) em relação a diversas cerimônias em diferentes sociedades, a mudança de um

status a outro. Este processo traz a ideia de renovação, que provém da superação

de etapas de separação, transição e incorporação. Trata-se de um mecanismo parecido com aquele a ser abordado no capítulo 5, em relação às alterações que ocorrem no mundo natural, em uma espiral harmônica, do qual também os humanos fazem parte. No parto, passa-se por uma separação entre o corpo da mãe e do bebê, que demarca a transição da etapa gravídica e exige a incorporação da condição de mãe. É neste processo que a vida se renova, as relações se renovam e renova-se a maneira como a mulher se percebe, daí a ideia do parto como rito de passagem.

Neste sentido, o parto humanizado poderia proporcionar uma transição mais suave, na qual a separação não é abrupta, fato que facilitaria a etapa de incorporação, na medida em que, tendo suas vontades atendidas, a mulher poderia ascender a seu novo status de modo ativo, consciente e assumindo as rédeas da situação. No parto, a mulher estaria num estado de liminaridade, vivendo sentimentos comumente vistos como paradoxais, ambíguos, junto com os quais são experimentadas sensações de perigo e segurança, é tanto que há relatos de sensação de morte iminente (como será explorado no capítulo 5). Tal sensação está de acordo com a discussão sobre morte e vida atreladas a uma etapa que se encerra. Esta, demasiado importante para a mulher, e também para a família, quando a parturiente ocupa o lugar de uma espécie de mensageira e, ao mesmo tempo, instrumento para que a transição se realize.

Laís – E qual a importância do parto pra mulher?

Carmem – Pra mulher em geral né? É aquilo. Eu acho que a gente... eu consigo falar pelas minhas experiências, né, então, assim, imagino pelo que eu vivi, é... muito essa questão da passagem né, dos ciclos. Então, você fecha um ciclo ali, você fecha todo aquele processo da gravidez com o trabalho de parto, termine ele por um parto vaginal, ou por uma cesárea, mas passar pelo processo, né, eu acho que é muito importante, assim, porque querendo ou não, talvez seja o lado mais forte da nossa individualidade né, enquanto feminino, né, existem outras características da mulher, mas talvez a mais forte seja essa, a de poder gerar e parir. Então, acho que é muito interessante, muito importante e aí tem essa questão hoje, né, essa vida da gente, tudo muito planejado, muito, aparentemente muito controlado, aí vem uma gravidez e um parto que joga tudo pro alto, né, tira você desse controle, dessa razão, joga no universo de total falta de controle e total inesperado.

...eu vejo o parto como uma passagem muito grande na vida da mulher, pra essa etapa que vem depois. Né? Pra etapa da maternidade. A maternidade ela realmente muda demais a vida da gente e eu percebo o parto como esse ritual de passagem pra essa experiência da maternidade. Então, independente de como seja o tipo de parto, mas essa coisa do eu vou deixar de estar grávida e essa criança vai nascer, e essa passagem, eu vejo isso como um rito mesmo, né, a preparação mesmo de ir pra esse outro estágio. (Rosa)

...eu acho que o parto deveria ser encarado como nossa forma maior de conexão com nosso corpo assim, porque é naquele momento que a gente tem que tá em perfeita sintonia do que você pensa do que sente e o que você faz no seu corpo. Mas aí, muita gente não encara como isso, encara como ato de ter filhos, né, o desfecho da gravidez. E eu acho que o parto é muito mais que isso, ele envolve, ele tem que envolver toda família também, porque a mulher tem essa função também de repassar o que o parto é pras outras pessoas, porque o marido não sabe, mas ele pode tentar ter uma ideia do que é o parto, então, a gente tem que explicar, fazer as pessoas se envolverem, eu acho que era pra ele ser uma ferramenta pra mostrar o que é a vida, porque a vida é isso, a vida é um começo e ela precisa de um desfecho, e um desfecho é o parto, é uma coisa que é dolorida, que às vezes incomoda, mas que pode ser no final tudo bem, que pode ser no final ter uma intercorrência, mas a vida é assim, ela, a vida ela é mutável, ela é mutante, o parto é assim, ele é um mecanismo que sai mudando, vai acrescentando, tirando, e no final, surge uma vida, porque assim, se você for comparar, uma analogia com as coisas que acontecem no nosso dia a dia, se tudo na vida fosse igual a um parto era perfeito assim, se todos percalços que a gente passasse no final aparecesse algo grandioso como o ser humano, era maravilhoso. Então, dar a vida, fazer vida, é fantástico, e o parto é isso, ele traz a vida. E aí, as pessoas não tão dando muita importância pro parto, eu acho que a gente mulher tem que resgatar um pouco isso aí, esse sentimento de expandir que o parto é. (Camila)

Entre as minhas interlocutoras evangélicas é possível, mais uma vez, notar alguma conotação religiosa em suas reflexões sobre o parto. Essas mulheres parecem recorrer a histórias bíblicas ou afins para tornar inteligível os acontecimentos do parto e atribuir sentidos positivos a eles. Estou inclinada a interpretar este recurso narrativo como um modo de explicar pela via religiosa o contato com o divino, presente também (para além do religioso) em outras mulheres

que participaram da pesquisa, como um processo de purificação que pode ser lido como um rito de passagem. A presença de elementos que são costumeiramente considerados impuros em nossa sociedade, tais como suor, secreções, sangue e outros fluidos corporais, bem como gritos e gemidos, ganham outros significados atrelados à noção de desdobrar-se para o surgimento de outro.

Tem vários fatores, mas o que mais eu poderia dizer é que a mulher passa por aquele processo de maternização, entende? Quando ela é passiva, quando ela marca algo que ela não participa e vira como ir na loja e pegar um negócio. É, eu não tô dizendo que ela vai ser, que ela vai ser menos mãe, não. Até porque eu fiz uma cesárea. A questão não é a cirurgia, cesárea, mas é a escolha por algo que eu não vou participar. Né? Quando na verdade ela é a protagonista. Né? Ela vai ser mãe, ela vai tirar uma criança de dentro de si, ela vai cuidar daquela criança. Então, esse processo de tomar posse da terra, né, assim, que você vai lutar por ela, você vai planejar ela né, no meu caso não foi nem planejado, mas você vai passar por um processo, a gravidez em si é um processo de nove meses, né, é um processo em que ela foi crescendo, o corpo foi se transformando e foi gerando uma vida ali dentro né, o processo final dele, de você se desdobrar e botar pra fora aquilo ali que tá na hora né, que tá na hora de vocês se conhecerem né, do encontro, todo esse processo, ele precisa de uma participação ativa, pra que a mulher se sinta plena, se sinta segura, então, acho que a questão da segurança, do sentimento de posse, da maternidade, ‘eu sou mãe’, é muito especial, é muito diferente, minha opinião é que ela se sente mais plena, mais poderosa praquilo. É como se ela recebesse um dom. Na hora que ela sofre, que passa por aquele momento de transformação, de morte assim, de, tipo, ‘agora eu tô, meu corpo tá morrendo pra que outro nasça’, que a sensação que a gente tem é que a gente vai ter um troço né, pelo menos eu, tem mulher que não tem dor né, mas assim, é um processo de muita concentração, um processo que se não tiver dor é um processo fisiológico que é ela e ele, né, e a partir dali, hormônio, coração, corpo, sangue, suor, dor, tudo aquilo vai transformar ela na mãe. Né? E o processo outro acontece? Acontece. Mas aí, os sofrimentos vão ser outros. Né? Que é o processo de adaptação por algo que não foi vivido antes, que pode... que é de repente, foi de repente, né. Também é muito sofrido, mas ele vai acontecer, né, eu sei que ele vai acontecer, mas é muito especial como ele acontece por uma escolha dela. Né? Ela diz, vou escolher e é muito gostoso, ela virar mãe naquele processo. Eu acho que o parir é um processo em que ela vira aquela mãe, que, como Jesus na cruz, eu comparo muito assim, que ele vai, ele passa por aquele processo, ele morre pra depois ressuscitar e ser Deus né, a mesma coisa... eu não tô dizendo que a mulher é Deus. Mas assim, ela passa por um processo em que ela sofre, ela se concentra, porque depois ela ressurge, tipo, pronto, aqui é meu filho. (Mariana)

A vivência ativa e consciente desta passagem, segundo as mulheres, é que gera a possibilidade de ressignificar-se. Estar ciente e aberta para a experiência de parto, com todos os elementos que ela contém, é que deixa possibilidades para o desdobrar-se e para renascer, de uma nova forma, junto com a/o filha/o que nasce. É, inclusive, esta abertura que gera nas mulheres a sensação de melhoramento e orgulho que será explorada a seguir.