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A COISA JULGADA FORMAL E A COISA JULGADA MATERIAL

4. A COISA JULGADA FORMADA NO PROCESSO CIVIL

4.3 A COISA JULGADA FORMAL E A COISA JULGADA MATERIAL

É bastante comum se distinguir a coisa julgada em formal e material (substancial). Entretanto, a forma como esta distinção é feita não chega a ser uníssona dentre os juristas que se ocupam da matéria.

Certamente que a tese mais compartilhada é a elaborada por Chiovenda491, segundo a qual a coisa julgada material mira a questão da imutabilidade fora do processo, como obrigatoriedade no futuro juízo, e a coisa julgada formal se refere à indiscutibilidade da sentença dentro do processo, ocasionada pela preclusão492 de impugnação recursal à sentença.493

Ademais, sustentou Chiovenda que a coisa julgada material somente seria capaz de atingir a sentença que reconhece ou desconhece um bem da vida a uma das partes, ou seja, a sentença que julgar o mérito da demanda, posto que somente a ela tem interesse a imutabilidade fora do processo.494

Já Carnelutti495 desenvolveu teoria peculiar, já que, apesar de concordar que a coisa julgada formal age dentro do processo e a material fora, sustenta que somente a primeira se refere à imutabilidade da sentença, enquanto que a segunda está ligada à imperatividade da sentença.

491Cf. CHIOVENDA, 1965, p. 910-914; CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual.

Tradução de Paolo Capitano, com anotações de Enrico Tullio Liebman. 3. ed. Campinas: Bookseller, 2002, v. 1, p. 452.

492Entretanto, vale frisar que o próprio Chiovenda (In 1965, p. 911) já ressaltou que não se deve

confundir coisa julgada e preclusão, já que esta é instituto geral no processo, que tem aplicação em muitos casos diversos da coisa julgada, além de que a preclusão de uma questão nem sempre dá lugar à formação de coisa julgada. No mesmo sentido, cf. TALAMINI, 2006, p. 132-134, o qual ainda esclarece que existe um ponto de encontro entre o instituto da preclusão e o da coisa julgada, consistente no fato de ser a preclusão da faculdade de recorrer do ato apto a pôr fim ao processo que implicará o trânsito em julgado, o qual, por sua vez, acarretará a coisa julgada formal e, conforme o caso, a material também, motivo pelo qual a preclusão opera apenas de modo indireto na formação da coisa julgada.

493A título exemplificativo, como adeptos desta distinção, cf., na doutrina estrangeira, COUTURE,

2002, p. 339-341; GOLDSCHMIDT, James. Direito Processual Civil. Traduzido por Lisa Pary Scarpa. Campinas: Bookseller, 2003, t. 1, p. 448; na doutrina pátria, MARQUES, 2003, p. 519-520; SANTOS, 2003, p. 47-48. MARINONI e ARENHART (In 2008, p. 642-643) parecem, a princípio, seguir esta tese, ao identificar coisa julgada formal como a indiscutibilidade da sentença dentro do processo e a coisa julgada material como a indiscutibilidade fora do processo, mas, diversamente de Chiovenda, eles chegam ao extremo de afirmar que a coisa julgada formal não é sequer coisa julgada, mas sim espécie de preclusão.

494Cf. CHIOVENDA, 1965, p. 912. No mesmo sentido no direito brasileiro, por todos, cf. DINAMARCO,

2004b, p. 301.

Esta tese foi atacada por Liebman que afirmou, com base na diferença por ele estabelecida entre eficácia natural da sentença e autoridade da coisa julgada, que a eficácia da sentença (imperatividade) não poderia ser vista como sinônimo de coisa julgada, além do que entender que somente a coisa julgada formal tem ligação com a imutabilidade significa concluir que seria possível a existência da coisa julgada material antes mesmo da sentença ser imutável, o que é totalmente contraditório com a própria finalidade do instituto da coisa julgada.496

Apesar de reconhecer a sua aceitação na doutrina497, Liebman também apresentou críticas à teoria de Chiovenda, consubstanciada, na verdade, mais em uma crítica geral à distinção entre coisa julgada formal e material, já que ele entendia que a diferença está no comando contido na sentença e nos seus efeitos e não na coisa julgada, que permanece a mesma.498

Dessa forma, o fato, por exemplo, de uma sentença que acolhe uma preliminar relativa à ausência de um pressuposto processual poder se tornar imutável apenas dentro do processo no qual foi proferida e outra sentença que julgar o mérito da demanda poder se tornar imutável também fora do processo no qual foi proferida não decorre da diferença entre a coisa julgada formada em um e no outro caso, mas sim pelo fato do comando sentencial no primeiro caso somente ter importância no âmbito daquele mesmo processo, enquanto que no segundo caso seu comando também possui relevância para outros processos.499

Entretanto, também a tese de Liebman não fica a salvo de críticas. É que, apesar de se reconhecer que o comando sentencial varia conforme se resolva ou não o mérito da demanda, não é correta a ideia de que tal comando tem importância meramente dentro do processo no qual foi proferido quando ele se limita a extinguir o processo, sem resolução de mérito.

Uma sentença que, por exemplo, acolhe uma incompetência absoluta do juízo pode sim ter interesse também fora do processo no qual foi proferida, bastando apenas que se veja o conteúdo do comando de tal sentença não como simplesmente

496Sobre as críticas de LIEBMAN à teoria de CARNELUTTI, cf. LIEBMAN, 2006, p. 49 et seq. 497Ibid, p. 55.

498Ibid, p. 56. Em sentido análogo, cf. TALAMINI, 2006, p. 132. 499Ibid., p. 55-56.

declarando que determinado juízo é incompetente para julgar aquele determinado processo, mas sim como que a incompetência é para julgar aquela lide, seja neste, seja em outro processo.500

E mais ainda se pode dizer das sentenças que extinguem o processo, sem resolução de mérito, acolhendo a falta de uma das condições da ação, como por exemplo, a da ilegitimidade ativa da parte, cujo interesse fora do processo no qual foi proferida pode estar presente na impossibilidade de se decidir em outro processo pela legitimidade da parte, já que esta se refere não ao processo, mas à ação, que é sempre a mesma, independente de em quantos processos ela é exercida.501

Dessa forma, a ideia que vem desde Chiovenda e que Liebman também acaba aceitando, no sentido de que existe uma ligação entre coisa julgada material e comando sentencial que resolve o mérito da demanda é, no máximo, de natureza legal502, mas não necessária no plano teórico, na medida em que não existe empecilho lógico para se imaginar um sistema jurídico em que seja possível ao conteúdo do comando de uma sentença que extingue o processo, sem resolução de mérito, mas que possua interesse também para fora daquela relação processual, possa adquirir a coisa julgada material.

Assim, a distinção entre coisa julgada formal e material não passa pela análise do comando da sentença, mas sim pelo âmbito de incidência da imutabilidade do conteúdo do comando sentencial, não importando qual seja este.503

O instituto da coisa julgada se manifesta de duas formas para dar à sentença a condição de estabilidade a ela necessária, com o fito de cumprir adequadamente a sua função de eliminar a incerteza jurídica provocada pelos conflitos. Por um lado,

500Neste sentido, José Carlos Barbosa Moreira (In 1967, p. 122) cita doutrina alemã que entende que

a decisão que acolhe a incompetência do juízo é apta a adquirir a coisa julgada material, com a ressalva de que a sua autoridade, neste caso, atingiria apenas a questão resolvida, somente impedindo a repropositura da demanda na medida em que subsista o defeito em que o pronunciamento foi fundado. Ademais, Barbosa Moreira (In 1967, p. 122-123) também cita o exemplo italiano, onde renomados juristas daquele país, até mesmo por expressa previsão legal, consideram decisões sobre conflito de competência como aptas a produzir coisa julgada material.

501Neste sentido, com base no CPC de 1939, mas com raciocínio que certamente vale para o atual,

cf. MOREIRA, 1967, p. 118-121.

502Nesse sentido, Barbosa Moreira (In 1971, p. 142-143) defende que a discriminação dos casos em

que existe apenas coisa julgada formal ou também a material resulta do que dispõe o direito positivo, que possui critérios que comportam “[...] certa dose de discricionariedade, conforme atestam as discrepâncias observáveis na matéria entre os vários ordenamentos”.

ela garante tal estabilidade à sentença ao torná-la imutável dentro do processo no qual foi proferida e, por outro, ao impedir que haja outra sentença em outro processo tratando da mesma lide dispondo de forma contrária a ela.

A imutabilidade inerente à coisa julgada pode incidir em quatro âmbitos diversos: a) restrita ao processo em que foi proferida a sentença; b) restrita a outros processos apenas; c) restrita ao processo em que foi proferida a sentença e mais alguns outros processos; d) englobando tanto o processo em que a sentença foi proferida quanto qualquer outro processo.

No caso, a segunda situação, qual seja, a da imutabilidade da sentença se dá apenas com relação a outros processos, apesar de teoricamente possível a sua existência, não tem muita utilidade prática, posto que é pouco provável que a legislação preveja uma situação em que a sentença seja imutável fora do processo, quando ainda permaneça mutável dentro deste, motivo pelo qual tal situação costuma passar desapercebida pelos juristas e, assim, sequer se costuma nomeá-la. Algo similar ocorre com a terceira situação, qual seja, a da imutabilidade da sentença se restringir ao processo em que foi proferida a sentença e mais alguns outros processos, posto que, apesar de ser perfeitamente viável em alguns casos, como o de se vincular a sentença anteriormente proferida apenas ao mesmo juízo em que ela foi prolatada, a existência desta hipótese não é comum nas legislações, motivo pela qual ela também não é tratada e definida pela doutrina.

O mesmo não se pode dizer das outras duas situações, havendo aí sim que se falar de coisa julgada formal, no primeiro caso, e de coisa julgada material, no outro caso. A primeira é a imutabilidade do conteúdo do comando da sentença, mas restrita ao processo na qual esta última foi proferida. Já a coisa julgada material significa tal imutabilidade acrescida de uma peculiaridade diversa da existente na coisa julgada formal, qual seja, a da imutabilidade não ser apenas dentro, mas também atingir fora do processo no qual foi proferida a sentença504, impedindo que se julgue de forma contrária não só no mesmo processo, mas também em outro que envolva a mesma

504Nesse sentido da coisa julgada material, cf., por todos, MOREIRA, José Carlos Barbosa. A eficácia

preclusiva da coisa julgada material no Sistema do Processo Civil Brasileiro. In ______. Temas de

lide, mesmo que o juiz do segundo processo se convença da injustiça da decisão precedente.

Nesse sentido, a diferença entre coisa julgada formal e material é quanto à extensão da imutabilidade, posto que a coisa julgada formal se refere à imutabilidade no âmbito do próprio processo em que a sentença foi proferida e a coisa julgada material se refere à imutabilidade tanto dentro quanto fora deste processo.505

Esta afirmação, entretanto, não significa chegar ao extremo de deixar completamente à irrestrita liberdade do legislador estabelecer quando haverá coisa julgada material e quando existirá apenas a formal, posto que, apesar de ser uma escolha com caráter político, ela deve ser moldada por razões jurídicas e, notadamente, por parâmetros constitucionais.506

Assim, é necessário que as decisões que julgam o mérito da demanda possam ser suscetíveis de gerar coisa julgada material, já que, do contrário, não haveria a pacificação do litígio e, portanto, a coisa julgada não atingiria a sua finalidade última de garantir a estabilidade da sentença e, consequentemente, a segurança jurídica. Porém, razões constitucionais levam ao impedimento de que toda e qualquer decisão que julgar o mérito possa adquirir a coisa julgada material, já que somente aquelas em que houve o contraditório é que serão aptas a adquirir tal espécie de imutabilidade, o que exclui, por exemplo, uma decisão dada sem a oitiva da parte contrária.507

Isto porque, notadamente no Estado Constitucional Democrático e Pluralista, somente é constitucionalmente deferível a coisa julgada material às decisões em que houve participação das partes, através de contraditório, na sua formação.

505Dessa forma, a coisa julgada material é um plus no que tange ao âmbito de imutabilidade com

relação à coisa julgada formal, motivo pelo qual aquela pressupõe esta. Neste sentido, cf. MIRANDA, 1997, p. 99-100; CHIOVENDA, 1965, p. 911; COUTURE, 2003, p. 341; GOLDSCHMIDT, 2003, p. 448; RODRIGUES, 2003, p. 340.

506Em sentido análogo, cf. TALAMINI, 2005, p. 53.

507Ibid., p. 53. Em sentido análogo, por vários, cf. BUENO, Cássio Scarpinella. Curso Sistematizado

de Direito Processual Civil: procedimento comum: ordinário e sumário. São Paulo: Saraiva, 2007, v.

Além disso, a decisão deverá ter sido precedida de uma cognição exauriente sob o aspecto vertical508, sob pena de tornar imutável uma decisão baseada em juízo superficial e, portanto, provisório, violando até mesmo a cláusula do devido processo legal.509

Dessa forma, apesar de se reconhecer certa liberdade ao legislador para escolher os casos em que haverá coisa julgada material ou apenas a formal, esta liberdade deve ser exercida dentro do quadrante do Constitucionalismo e da própria finalidade do instituto da coisa julgada, o que impõe, como regra, que as sentenças que julguem o mérito da demanda e que foram feitas com base em uma cognição exauriente510 sejam aptas a adquirir a coisa julgada material.

Para encerrar, cumpre registrar que, como somente através da coisa julgada material o conteúdo do comando sentencial pode adquirir efetivamente uma imutabilidade no seu aspecto mais amplo, já que não poderá ser modificado nem dentro nem fora do processo no qual foi proferido, é sobre ela que se tratará no decorrer deste trabalho quando se referir simplesmente ao vocábulo “coisa julgada”.

508Neste sentido, cf. TALAMINI, 2005, p. 54-58 passim. Sobre a diferença entre cognição horizontal e

vertical, entendendo aquela como ligada à extensão cognoscível do conflito, à amplitude do objeto da cognição, e esta como ligada à profundidade da investigação do juiz sobre determinada matéria, ou seja, refere-se à intensidade da própria cognição, cf. WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo

civil. 3 ed., rev. e atual. São Paulo: Perfil, 2005, p. 127 et seq.

509TALAMINI, 2005, p. 54. Sobre o direito à cognição adequada à natureza da controvérsia como

parte do conceito de devido processo legal, cf. WATANABE, 2005, p. 142-143.

510Cognição exauriente não implica que todas as questões relativas à lide devem ser efetivamente

4.4 A FORÇA VINCULATIVA POSITIVA E NEGATIVA DA COISA