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3.5 MODELOS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

3.5.4 O modelo combinado brasileiro

A superioridade dos sistemas de fiscalização de constitucionalidade jurisdicional estadunidense e kelseniano face ao sistema político francês, principalmente diante da maior imparcialidade dos órgãos que exerce o controle nos dois primeiros modelos, somada às maiorias garantias apresentadas pelo método jurisdicional, fizeram com que esses sistemas jurisdicionais fossem incorporados na maioria dos países, notadamente a partir do século XX.

Entretanto, como já demonstrado, essa superioridade não significa perfeição, já que tanto o modelo estadunidense, quanto o kelseniano também apresentam algumas deficiências, motivo pelo qual o que se assistiu, na maioria das vezes, foi a

379GARCÍA DE ENTERRÍA, 2006, p. 191. 380Ibid., p. 197.

381Expressão esta extraída de GARCIA DE ENTERRÍA, 2006, p. 187. 382Em sentido análogo, cf. CAPPELLETTI, 1999, p. 113-114.

incorporação de um desses modelos com alguma adequação com base em característica do outro, como forma de superar tais deficiências.

Assim, a Itália, com a Constituição de 1948 e a criação da Corte Suprema em 1956, e a Alemanha, com a Constituição de Bonn de 1949, por exemplo, incorporaram a ideia de uma Corte Suprema, permitindo a certos legitimados ingressarem com ação autônoma diretamente perante aquela Corte para analisar a constitucionalidade dos atos normativos, mas também autorizaram a todos os juízes o poder de submeter a questão da constitucionalidade surgida diante de um caso concreto à apreciação da Corte Suprema.383

Dessa forma, a originária, nítida e radical contraposição entre o método estadunidense do controle de constitucionalidade via incidental e o método austríaco do controle pela via principal foi se atenuando.384 Assim, os modelos austríaco e estadunidense que antes eram vistos como antagônicos passaram a ser analisados como compatíveis.385

Um exemplo clássico dessa realidade é o modelo consagrado no Brasil, notadamente com a Constituição Federal de 1988, e que, devido à pertinência com o tema central desta pesquisa, passa-se a apresentar as suas notas gerais.386

Inicialmente, vale dizer que a Constituição Federal de 1988 consagrou também um controle político de constitucionalidade dos atos normativos, exercido tanto pelo Executivo, através, por exemplo, do veto de uma lei inconstitucional pelo Presidente,

383CAPPELLETTI, 1999, p. 108-110. 384Ibid., p. 111.

385Nesse sentido, cf. TAVARES, 2005, p. 101. Na verdade, Tavares, na obra citada, chega a ir além,

defendendo a tese de que existe uma coincidência parcial de ambas as teses e não apenas a compatibilidade, já que a proteção pelo Judiciário leva a um tribunal de cúpula denominado, tecnicamente, de Tribunal Supremo e que pode se confundir, do ponto de vista funcional, com um Tribunal Constitucional, motivo pelo qual a adoção de um controle abstrato ao lado do concreto é o coroamento deste segundo modelo.

386Opta-se por uma análise apenas dos traços gerais do modelo brasileiro, pois assim não se desvia

excessivamente do tema central deste trabalho, o que aconteceria se fosse realizada uma análise pormenorizada, na medida em que esta levantaria uma grande gama de questões. Assim, dispensam-se abordagens detalhadas acerca dos instrumentos disponibilizados pela Constituição Federal de 1988 para o exercício do controle de constitucionalidade e da própria História do controle de constitucionalidade no Brasil. Dessa forma, quanto à evolução histórica do controle de constitucionalidade no Brasil, indica-se, desde logo, para uma leitura mais profunda, dentre outros, VELOSO, 2003, p. 29-35; MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle

concentrado de constitucionalidade: comentários à Lei n. 9.868, de 10-11-1999. 3 ed. São Paulo:

Saraiva, 2009, p. 42-119; PALU, 2001, 120-133; STRECK, p. 313 et seq; BASTOS, Celso Ribeiro.

como pelo Legislativo, através, por exemplo, da rejeição de um projeto de lei pela Comissão de Constituição e Justiça.387

Entretanto, é o modelo jurisdicional de controle de constitucionalidade consolidado pela Constituição de 1988 o que interessa neste momento, na medida em que ele é a regra no direito brasileiro388, possui conseqüências mais relevantes que o controle político389, mesmo porque é exercido de forma repressiva, além de que é o que maior relação possui com a presente pesquisa.

Por consagrar tanto a possibilidade do controle por via incidental e difusa (estadunidense), quanto o controle por via principal e concentrado (kelseniano), costuma-se dizer que este modelo de controle jurisdicional de constitucionalidade consagrado pela atual Constituição Federal do Brasil é eclético, misto, híbrido.390 Entretanto, prefere-se seguir aqui André Ramos Tavares, no sentido de que o modelo brasileiro não é misto, mas sim combinado.391 Isto porque o modelo brasileiro não é somente a união de elementos diferentes dos modelos kelseniano e estadunidense, mas sim a combinação deles, mesmo porque o diferente é também inconciliável se não houver tal combinação.392

Dessa forma, tem-se que a Constituição Federal de 1988 manteve tanto a possibilidade de um controle por via incidental e difuso, que vinha desde o início da República393, como a possibilidade de um controle por via principal e concentrado, implementado pela Emenda Constitucional n. 16/65.394

387Para uma análise mais detida destas e de outras hipóteses de controle político de

constitucionalidade no Brasil, cf. BARROSO, 2008, p. 67 et seq.

388Ibid., p. 67.

389Cf. PALU, 2001, p. 156.

390Cf., por todos, VELOSO, 2003, p. 34; BARROSO, 2008, p. 64. 391TAVARES, 2009, p. 228.

392Ibid., p. 229.

393Segundo Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes (In 2009, p. 44-46), a Constituição

de 1891, por força de Rui Barbosa e da forte inspiração deste no modelo americano, consolidou o modelo difuso e concreto de controle de constitucionalidade inaugurado já na Constituição Provisória de 1890. Posteriormente, a lei n. 221, de 20 de novembro de 1894, explicitou ainda mais tal modelo, ao permitir, em seu artigo 13, §10, aos juízes e tribunais da Justiça Federal deixar de aplicar “[...] aos casos ocorrentes as leis manifestamente inconstitucionais e os regulamentos manifestamente incompatíveis com as leis e com a Constituição”. Por fim, a reforma constitucional implementada em 1926 veio a reforçar tal modelo.

394A Emenda Constitucional n. 16, de 26 de novembro de 1965, introduziu o sistema de controle de

constitucionalidade concentrado no direito brasileiro, através do estabelecimento da representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada

O controle jurisdicional difuso é previsto na Constituição Federal de 1988 de forma expressa, porém oblíqua395, tanto pela disciplina do recurso extraordinário no artigo 102, III396, quanto pela regra da maioria absoluta para a declaração da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público por parte dos Tribunais, prevista no artigo 97.397

Por intermédio dele se permite, nos moldes do modelo estadunidense, que, no curso de qualquer ação, seja arguida/suscitada por qualquer das partes, pelo Ministério Público e até mesmo de ofício pelo juiz a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo, seja municipal, estadual ou federal.398

Já o controle jurisdicional concentrado e abstrato foi bastante ampliado pela Constituição de 1988, na medida em que aumentou o rol dos legitimados para provocá-lo e os instrumentos para exercê-lo.

pelo Procurador Geral da República, ou seja, uma verdadeira ação direta de inconstitucionalidade. Nesse sentido, cf., por todos, JEVEAUX, 2008, p. 133; VELOSO, 2003, p. 33-34; BASTOS, 2001, p. 413-414. Entretanto, cumpre a observação de que já sob a égide da Constituição de 1934 existia uma espécie de controle jurisdicional concentrado de constitucionalidade da lei, representado pela previsão da Ação Interventiva, que era uma ação proposta pelo Procurador Geral da República dirigida ao STF com o objetivo de submeter a esta Corte a lei federal de intervenção promulgada pelo Congresso Nacional quando este decidisse que um Estado deixou de observar os princípios constitucionais sensíveis e, portanto, decretasse a intervenção federal em tal Estado, o que era feito por meio desta lei interventiva. Assim, reconhecida a constitucionalidade dessa lei federal pelo STF, a intervenção poderia ser realizada. Ocorre que esta ação é hipótese de controle concentrado, mas, conforme nos adverte Streck (In 2003, p. 347-348), é exagero considerá-la como modalidade de controle abstrato de constitucionalidade, já que o julgamento da ação constituía pressuposto da decretação da intervenção federal. Assim, não se trata de um processo objetivo, sem partes e sem um caso concreto subjacente, significando, na verdade, uma fórmula peculiar de composição judicial de conflitos federativos. Nesse sentido, cf. também BARROSO, 2008, p. 306; MARTINS; MENDES, 2009, p. 48.

395Cf. BARROSO, 2008, p. 65, com a ressalva de que tal autor não chega a mencionar o artigo 97, da

CF/88, como exemplo dessa recepção oblíqua.

396“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição,

cabendo-lhe: [...]

III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:

a) contrariar dispositivo desta Constituição;

b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;

c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição. d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal”.

397“Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo

órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”.

398Cf. STRECK, 2002, p. 361; FERREIRA FILHO, 2007, p. 40; PALU, 2001, p. 157; BULOS, 2009, p.

Dessa forma, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) em face de lei ou ato normativo federal ou estadual teve seu rol de legitimados ampliados, passando não mais a ser apenas o Procurador-Geral da República, como era desde a Emenda Constitucional n. 16/65, para alcançar ampla gama de representantes da sociedade e do Estado.399

Além disso, por inspiração do constitucionalismo português e iugoslavo400, criou-se também a possibilidade de manejo da ADIn para os casos de inconstitucionalidade por omissão 401, ou seja, como visto anteriormente, para aquelas situações em que a inconstitucionalidade resulta da inércia de qualquer órgão do Poder, que deixa de praticar em certo tempo o ato normativo exigido pela norma constitucional.

Ademais, a Constituição Federal de 1988 inovou com a criação da figura da Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)402, que visa preservar as regras e princípios constitucionais considerados fundamentais.403

Tal medida veio a enriquecer o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade das normas, já que questões até então excluídas de análise no âmbito do controle concentrado e abstrato de constitucionalidade pelo STF, como os atos normativos anteriores à Constituição, passaram a poder ser analisados por meio desta figura.404

399Neste sentido, o artigo 103, da CF/88, dispõe que: “Podem propor a ação direta de

inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade: I - o Presidente da República;

II - a Mesa do Senado Federal;

III - a Mesa da Câmara dos Deputados;

IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal;

VI - o Procurador-Geral da República;

VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional”.

400Nesse sentido, cf. STRECK, 2003, p. 361.

401Cf. artigo 103, §2º, da CF/88, in verbis: “Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida

para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”.

402Inicialmente prevista no artigo 102, parágrafo único, da CF/88, sendo convertido em parágrafo

primeiro deste mesmo artigo pela Emenda Constitucional n. 3, de 13 de março de 1993. Entretanto, ela somente veio a ser regulamentada com a Lei n. 9882, de 3 de dezembro de 1999. Anteriormente a esta regulamentação, o Supremo Tribunal Federal entendia pela não auto-aplicabilidade da medida. Nesse último sentido, cf., por todos, BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pet-AgR 1140. Relator: Ministro Sydney Sanches. Tribunal Pleno. 02 mai. 1996. Disponível em <www.stf.jus.br>. Acesso em 30.03.2010.

403Cf. TAVARES, 2009, p. 286 et seq.; BULOS, 2009, p. 236 et seq. 404Cf., por todos, MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 1062.

Somando-se a esta inovação, a Emenda Constitucional n. 03/93, trouxe a figura da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), que permite ao STF reconhecer expressamente a constitucionalidade de ato normativo federal com a Constituição, evitando-se a incerteza jurídica e a existência de divergentes decisões sobre a constitucionalidade do ato.405

Além disso, a CF/88 ainda determinou, em seu artigo 125, §2º406, a instituição nos Estados-Membros de representação de inconstitucionalidade de lei e atos normativos estaduais e municipais em face da Constituição estadual.

Dessa forma, percebe-se que a Constituição Federal de 1988 ampliou bastante o controle jurisdicional de constitucionalidade concentrado e abstrato no Brasil.407 A ênfase passou do controle difuso e concreto para o abstrato e concentrado.408

Tal fato representa o atual movimento por uma maior objetivação do modelo brasileiro de controle de constitucionalidade, alcançando, inclusive, o próprio controle difuso e concreto, na medida em que, a partir da instituição pela Emenda Constitucional n. 45/2004 da figura da repercussão geral como pressuposto do recurso extraordinário, este último passou a ser de defesa da ordem constitucional objetiva, convertendo-se um processo tipicamente subjetivo em processo com características e elementos inegavelmente objetivos.409

405Nesse sentido, cf., por todos, BARROSO, 2008, p. 217-218; FERREIRA FILHO, 2007, p. 42. 406“Art. 125 [...] § 2º - Cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de

leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão”.

407Nesse sentido, cf. BARROSO, 2008, p. 67; JEVEAUX, 2008, p. 133-134. 408Cf. GANDRA; MENDES, 2009, p. 86-87.