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4. A COISA JULGADA FORMADA NO PROCESSO CIVIL

4.1 FUNDAMENTOS

A ideia de Direito surge da necessidade de se regular as condutas das pessoas e de se resolver os conflitos de interesses entre elas, como forma de se garantir a preservação da própria existência e estrutura da sociedade e do Estado.410

Entretanto, para atingir adequadamente seu mister, é necessário que o Direito traga consigo a certeza e a segurança411, sendo tal exigência ainda mais marcante em um Estado Constitucional.

410Em sentido análogo, ver, por todos, REALE, 2005, p. 2.

411Sobre segurança e certeza como elementos indispensáveis ao Direito cf. diversas passagens de

RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Tradução e prefácios de L. Cabral de Moncada. 4. ed., revista e acrescida dos últimos pensamentos do autor. Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v. II, pp. 7; 121-122; 135. Entretanto, o próprio Radbruch (In 1961, p. 122) sustenta que “Conforme vimos, só a ideia de segurança jurídica podia servir de fundamentação à obrigatoriedade do direito injusto. Todavia vimos também que havia, ou podia haver, casos duma tal injustiça e duma tal inadequação do direito ao seu fim que o valor da segurança jurídica os não conseguia compensar.”. Dessa forma, apesar da segurança e a certeza serem inerentes à ideia de Direito, elas

Isto porque, como visto, este modelo estatal é moldado pelo paradigma do Constitucionalismo, sendo um dos seus pilares o Estado de Direito412 e que, segundo Canotilho, possui como um dos seus subprincípios concretizadores o princípio geral da segurança jurídica.413

A ideia de segurança jurídica é desenvolvida com base em dois conceitos basilares: o da estabilidade das decisões dos poderes públicos e o da previsibilidade dos efeitos jurídicos dos atos normativos.414

Dessa forma, somente se alcança a segurança exigida pelo Estado Constitucional quando os indivíduos sabem os efeitos jurídicos dos seus comportamentos e quando existe uma possibilidade de estabilização das decisões dos poderes públicos.

Para garantir o primeiro elemento, qual seja, a previsibilidade dos efeitos jurídicos dos atos normativos, bastam mecanismos como a clareza e precisão dos atos e a proibição de retroatividade de tais atos, salvo autorização constitucional.415

Mas, para garantir a estabilidade das decisões, é necessário algo diverso, qual seja, que estas decisões não sejam objetos de indefinidas alterações futuras, sendo o instituto da coisa julgada justamente um meio para se alcançar esta condição, já que ela impede qualquer mudança pelo Estado na decisão tomada.416

não são valores absolutos. Em sentido análogo, afirma Eduardo Couture (In 2002, p. 330, tradução nossa) que “[...] a necessidade de firmeza deve ceder, em determinadas condições, ante a necessidade de que triunfe a verdade”.

412Cf. item sobre Constitucionalismo.

413CANOTILHO, 2003, p. 257 et seq. Em sentido análogo, defendendo a ideia da segurança jurídica

como um dos fundamentos do Estado de Direito, cf. BARROSO, Luis Roberto. Temas de Direito

Constitucional. São Paulo: Renovar, 2001, p. 49 et seq.

414CANOTILHO, 2003, p. 264. Vale frisar ainda que o mesmo CANOTILHO (In 2003, p. 257) chama o

primeiro desses conceitos basilares como princípio da segurança jurídica e o segundo de proteção da confiança dos cidadãos, que juntos formam o princípio geral da segurança jurídica.

415Ibid., p. 258-264.

416Sem dúvida que a coisa julgada demonstrou ser o meio mais eficaz e, talvez, nos tempos atuais, é

até mesmo necessário para se conseguir a estabilidade das decisões judiciais. Entretanto, isto não exclui, num juízo hipotético, a existência de outras formas em que tal estabilidade poderia ser garantida. Giuseppe Chiovenda (In Principii di Diritto Processuale Civile. Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene: Napoli, 1965, p. 906-907) já afirmava que existem sistemas de Direito, como o antigo norueguês, em que a sentença poderia ser impugnada indefinidamente e RESTA (apud LIEBMAN, Enrico Tullio. Ainda sobre a Sentença e sobre a coisa julgada. In ______, Eficácia e

Autoridade da Sentença e outros Escritos sobre a Coisa Julgada. Tradução de Alfredo Buzaid e

Benvindo Aires. Tradução dos textos posteriores à edição de 1945 de Ada Pellegrini Grinover. Atualizadora Ada Pellegrini Grinover. 4. ed. São Paulo: Forense, 2006, p. 167) já dizia que o instituto da coisa julgada parece desconhecido ao direito mulçumano. Ao menos que se queira sustentar que nestes exemplos de sistemas de Direito reinava a instabilidade e a insegurança e, portanto, sequer

Entretanto, nem todas as decisões normativas são conciliáveis com o instituto da coisa julgada. Isto porque, ao menos em um Estado Constitucional como o brasileiro, onde vigora a inafastabilidade da jurisdição, assegurando ao prejudicado pelo ato legislativo e administrativo a sua revisão jurisdicional e a impossibilidade de interferência das outras atividades na atividade jurisdicional, não é possível cogitar que as decisões legislativas e administrativas possam adquirir a autoridade da coisa julgada.417

Este impedimento, contudo, não existe para a sentença, mas, ao contrário, a ideia da coisa julgada, enquanto forma de alcançar a estabilidade da decisão, parece mesmo se encaixar perfeitamente à ela. É que a sentença é o ato da autoridade jurisdicional contendo um comando que exprime e afirma a concreta disciplina que deve regular, segundo as normas do sistema jurídico, o conflito de interesses submetido à apreciação do Estado-Juiz.418

de Direito se poderia falar, o que se desconhece que alguém tenha chegado a afirmar tal exagero, fato é que a própria sobrevivência desses sistemas demandou certa estabilidade das decisões jurisdicionais, o que, se não era justificado por meio da coisa julgada, já que esta era desconhecida, ao menos se alcançava por meio do reduzido número de alterações perpetradas à sentença, por outros fatores. Quais seriam estes fatores é questão que somente se poderia responder através de uma pesquisa pormenorizada sobre estes sistemas, o que foge ao objeto deste trabalho. De qualquer forma, poderia se cogitar, senão nestes sistemas, ao menos em outros hipotéticos, que a confiança nos juízes e nas suas decisões ou mesmo os altos custos para se interpor um recurso poderiam ser fatores que garantiriam a estabilidade destas decisões, independentemente da coisa julgada.

417Cf. TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua Revisão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,

2005, p. 47-48. Em sentido contrário, adotando uma visão peculiar da coisa julgada, Merkel (apud LIEBMAN, Enrico Tullio. A eficácia natural da sentença como ato do Estado. In ______, Eficácia e

Autoridade da Sentença e outros Escritos sobre a Coisa Julgada. Tradução de Alfredo Buzaid e

Benvindo Aires. Tradução dos textos posteriores à edição de 1945 de Ada Pellegrini Grinover. Atualizadora Ada Pellegrini Grinover. 4. ed. São Paulo: Forense, 2006, p. 133) defendeu que a coisa julgada se estende a todos os atos jurídicos do Estado, na medida em que toda norma é ilimitadamente válida no tempo, salvo expressa disposição contrária. Liebman (In 2006, p. 134-135) rebateu Merkel afirmando que somente a sentença está sujeita à coisa julgada, já que os atos administrativos podem ser impugnados judicialmente e a Administração pode revogá-los e alterar seus efeitos, e os atos legislativos são naturalmente mutáveis, com o objetivo de se adaptar às variáveis necessidades da vida social e à mutável apreciação do Poder Legislativo. Esta tese da impossibilidade dos atos legislativos e administrativos adquirirem a coisa julgada é consolidada no direito brasileiro (cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. Notas ao § 7º. In: LIEBMAN, Enrico. Tullio. Eficácia

e Autoridade da Sentença e outros Escritos sobre a Coisa Julgada. Tradução de Alfredo Buzaid

e Benvindo Aires. Tradução dos textos posteriores à edição de 1945 de Ada Pellegrini Grinover. Atualizadora Ada Pellegrini Grinover. 4. ed. São Paulo: Forense, 2006, p. 148-150).

418Tal definição de sentença foi extraída com base em LIEBMAN, Enrico Tullio. Efeitos da Sentença e

Coisa Julgada. In: _____, Eficácia e Autoridade da Sentença e outros Escritos sobre a Coisa

Julgada. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos posteriores à edição de

1945 de Ada Pellegrini Grinover. Atualizadora Ada Pellegrini Grinover. 4. ed. São Paulo: Forense, 2006, p. 283. Sobre sentença como uma afirmação da vontade da lei que garante a alguém um bem da vida no caso concreto, cf. CHIOVENDA, 1965, p. 134-891 passim.

Assim, ao contrário da maioria dos atos normativos estatais, que possuem a função primordial de regular condutas de forma abstrata e geral, a sentença exerce um papel principal de resolver conflitos de interesses concretos, extraindo do sistema jurídico a solução normativa ao caso dado à sua apreciação.

Nesse diapasão, a sentença cumpre a função de extirpar a incerteza jurídica provocada pelo litígio, que é um mal à sociedade, que se sente afetada pelo risco de não prevalecerem no convívio social as normas estatuídas pela ordem jurídica como garantia de preservação do relacionamento civilizado.419

Portanto, mais do que qualquer outro ato normativo, a sentença necessita de estabilidade para atender adequadamente o seu mister420, motivo pelo qual a coisa julgada é instituto que com ela se coaduna.

Isto porque a coisa julgada permite à sentença adquirir a estabilidade por ela tanto almejada, já que impossibilita, por um lado, a reforma da sentença no bojo do processo na qual ela foi prolatada421 e, por outro, não permite ao Estado-Juiz dar solução diversa ao caso decidido na sentença, mesmo que em outro processo, evitando-se, assim, também um conflito prático entre decisões.422

419Cf. THEODORO JÚNIOR, Humberto; FARIA, Juliana Cordeiro de. A coisa julgada inconstitucional

e os instrumentos processuais para seu controle. In NASCIMENTO, Carlos Valder do Nascimento (coordenador). Coisa Julgada Inconstitucional. 3. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003, p. 91.

420Nesse sentido, João Carlos Barbosa Moreira (In Considerações sobre a chamada “relativização” da

coisa julgada material. In ____. Temas de Direito Processual: nona série. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 244) chega a afirmar que “A atividade do órgão jurisdicional, entretanto, seria vã- e não atingiria o fim a que visa- se o resultado conseguido ficasse indefinidamente à mercê de discussões e impugnações”.

421Assim, Pontes de Miranda (In Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. São Paulo:

forense, 1959. t. IV, p. 97) afirma que a coisa julgada serve para por fim às “[...] descargas aos estímulos combativos”. Também no sentido da coisa julgada como obstáculo à perpetuação dos litígios e garantia da estabilidade das relações, cf. MONTEIRO, João. Programma de um Curso de

Theoria do Processo Civil e Commercial. 5 ed. São Paulo: Typographia Academica, 1936, p. 736-

737; AMERICANO, Jorge. Da Acção Rescisória. São Paulo: Casa Vanorden, 1922, p. 7.

422Cf., LIEBMAN, Enrico Tullio. A autoridade da coisa julgada. In: ______, Eficácia e Autoridade da

Sentença e outros Escritos sobre a Coisa Julgada. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires.

Tradução dos textos posteriores à edição de 1945 de Ada Pellegrini Grinover. Atualizadora Ada Pellegrini Grinover. 4. ed. São Paulo: Forense, 2006, p. 50-51.

Destarte, a coisa julgada se apresenta como um mecanismo peculiar à sentença423, que assenta sua estabilidade definitiva424 e permite a resolução e regulação definitiva dos conflitos, na medida em que torna imutável a norma jurídica concreta a ser aplicada ao caso425, garantindo, portanto, o primado do princípio geral da segurança jurídica inerente ao Estado de Direito.426 E, como o Estado de Direito é um dos pilares do Constitucionalismo, o instituto da coisa julgada acaba por ser também um pressuposto de normatividade deste.

423Cumpre observar, entretanto, que o fato da coisa julgada ser peculiar à sentença não significa

chegar ao extremo da afirmação de Couture (In 2002, p. 335-336, tradução nossa) de que “Sem coisa julgada não há jurisdição”. Na verdade, o que se quer dizer é que somente com a decisão jurisdicional a coisa julgada é compatível, ao menos num Estado de Direito nos moldes antes referidos, onde vigora o princípio da inafastabilidade da jurisdição. Neste sentido, cf., novamente TALAMINI, 2005, p. 47-50. Por fim, vale lembrar a ressalva feita pelo mesmo Talamini (In 2005, p. 46) e também por, dentre outros, Ovídio A. Baptista da Silva (In Curso de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, v. 1, p. 485), no sentido de que, por ser compatível apenas com a atividade jurisdicional, mas não essencial a esta, não é todo ato jurisdicional que deve ter aptidão para adquirir a coisa julgada, mas apenas aqueles que a lei atribui tal autoridade.

424Cf., por todos, MOREIRA, José Carlos Barbosa. Questões prejudiciais e coisa julgada. Rio de

Janeiro: Borsoi, 1967, p. 61; CANOTILHO, 2003, p. 264-265; DINAMARCO, Cândido Rangel.

Instituições de Direito Processual Civil. 4. ed. rev., atual. e com remissões ao Código Civil de

2002. São Paulo: 2004b. v. III, p. 296-297.

425Em sentido análogo, cf. MARQUES, José Frederico. Manual de Direito Processual Civil.

Atualizado por Ovídio Rocha Barrosa Sandoval. Prefácio de Domingos Franciulli. 9. ed. atual., Campinas: Millennium, 2003, p. 517; DIDIER JÚNIOR, Fredie; BRAGA, Paulo Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. 4. ed. Bahia: Editora JusPODIVM, 2009, v. 2, p. 408.

426Sobre coisa julgada como atributo de garantia da segurança jurídica e, consequentemente, do

Estado de Direito, cf., por todos, MARINONI, Luiz Guilherme. O princípio da segurança dos atos jurisdicionais (a questão da relativização da coisa julgada material). Revista Jurídica, Porto Alegre, ano 52, n. 317, p. 16, mar. 2004; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O

dogma da Coisa Julgada: hipóteses de relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 21-

22; NERY JÚNIOR, Nelson. Coisa Julgada e o Estado Democrático de Direito. Revista da Ajuris, Porto Alegre, ano XXXI, n. 96, p. 233 et seq., dez. 2004. Em sentido contrário, defendendo que a ideia de coisa julgada como corolário da segurança jurídica é uma falácia, já que fatores sociais (como fome e exclusão social), por exemplo, não permitem a estabilidade social, mesmo que se tenha a coisa julgada, cf. NASCIMENTO, Carlos Valder do; PEREIRA JÚNIOR, Lourival. Natureza da coisa julgada: uma abordagem filosófica. In NASCIMENTO, Carlos Valder do; DELGADO, José Augusto (coord.). Coisa julgada inconstitucional. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006, p. 58. Contra este argumento e em defesa da coisa julgada como garantidora da segurança do Direito, pode-se afirmar que, certamente, a coisa julgada não resolverá todos os problemas que levam à desestabilidade da sociedade, mas ela cumpre perfeitamente o fim a que se destina, qual seja, o de evitar que a desestabilização da sociedade decorra da incerteza do Direito a ser aplicado ao caso concreto.