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3.2 A INCONSTITUCIONALIDADE

3.2.3 Espécies de Inconstitucionalidade

Com base em diferentes elementos ou critérios, é possível se falar em várias espécies de inconstitucionalidade247, repousando a utilidade dessas classificações na possibilidade de se melhor compreender quais são os comportamentos que podem ser contrários à Constituição e como essa contrariedade se manifesta.248 Nesse diapasão, apresentar-se-á as classificações mais disseminadas em sede doutrinária e de maior importância para o objeto deste trabalho, quais sejam: a) inconstitucionalidade por ação e por omissão; b) inconstitucionalidade formal e material; c) inconstitucionalidade total e parcial; d) inconstitucionalidade originária e superveniente.249

Começa-se, então, pela diferenciação da inconstitucionalidade em por ação e por omissão. As normas constitucionais -ao menos a maior parte delas- são normas cogentes, ou seja, normas que, ao contrário das dispositivas, não podem ter sua incidência afastada por vontade das partes, se apresentando de forma proibitiva e preceptiva, quer dizer, proibindo ou determinado comportamentos.250

246Ibid., p. 316-323. Em sentido contrário, cf. BACHOF, Otto. Normas constitucionais

inconstitucionais?. Coimbra: Livraria Almedina, 1994.

247Nesse sentido, por todos, ver BARROSO, 2008, p. 25-26. 248No sentido dessa utilidade, ver BULOS, 2009, p. 67.

249Para um estudo acerca de outras classificações de inconstitucionalidade, ver MIRANDA, 1996b, p.

341-342; BULOS, 2009, p. 82 et seq.; TAVARES, 2009, p. 214-219.

A violação de uma norma constitucional proibitiva não ocorre da mesma forma que a violação de uma norma constitucional preceptiva, já que no primeiro caso ela surge da prática de um ato vedado pela norma constitucional, enquanto que no outro caso ela advém da abstenção de um ato que a norma constitucional exigia.251

Nesse sentido é que se fala em inconstitucionalidade por ação, no primeiro caso, e inconstitucionalidade por omissão, no segundo caso, referindo-se àquela como positiva, no sentido de que decorre da prática de um ato jurídico que infrinja a norma constitucional, e a esta última como negativa, na medida em que resulta da inércia de qualquer órgão de poder, que deixa de praticar em certo tempo o ato exigido pela norma constitucional.252

A inconstitucionalidade por ação está ligada à própria construção da tese da inconstitucionalidade e do controle de constitucionalidade, posto que foi em torno dela que esses conceitos inicialmente se desenvolveram.

Por seu lado, a inconstitucionalidade por omissão é criação mais recente, já que somente veio a ser tratada em sede jurisprudencial a partir do final da década de 50 e início da década de 60 do século passado na Itália e na Alemanha, vindo a receber previsão constitucional, mesmo que timidamente, apenas na década de 70, a partir da sua incorporação à Constituição da então Iugoslávia de 1974 e de Portugal de 1976.253

Atualmente não mais se discute a possibilidade de sua ocorrência e é uníssona a tese de que ela somente ocorre quando se tratar de exigência constitucional de ação e não apenas de mero dever geral de legislar.254

Uma outra classificação da inconstitucionalidade separa as hipóteses em que ela ocorre como sendo material e formal. A primeira surge quando o conteúdo do ato

251Ibid., p. 31.

252Nesse sentido, cf. MIRANDA, 1996b, p. 338.

253BARROSO, 2008, p. 32-33. No que tange ao direito brasileiro, vale observar que Constituição

Federal de 1988 trouxe a previsão de dois instrumentos para enfrentar tal modalidade de inconstitucionalidade, quais sejam, o mandado de injunção (artigo 5º, LXXI) e a ação de inconstitucionalidade por omissão (artigo 103, §2º).

254Nesse sentido, por todos, cf. CANOTILHO, 2003, p. 1033; BARROSO, 2008, p. 33; BULOS, 2009,

infraconstitucional desrespeita normas constitucionais substantivas, de fundo255, ao passo que a segunda ocorre quando há desrespeito quanto às normas de forma, ou seja, quando o ato foi produzido em desacordo com as normas de competência ou de procedimento.256-257

Sob o prisma do ato infraconstitucional violador tal classificação se transmuda em inconstitucionalidade intrínseca e inconstitucionalidade extrínseca, existindo a primeira quando há contradição entre o conteúdo do ato infraconstitucional e o conteúdo da norma constitucional e a segunda quando o ato infraconstitucional se originou de forma contrária às condições constitucionais.258

Uma conseqüência interessante na prática da aplicação dessa classificação da inconstitucionalidade em material e formal é que se a incompatibilidade se der entre uma nova Constituição ou emenda à Constituição e uma norma infraconstitucional preexistente podem ocorrer duas situações: se o vício for material, a norma é

255Considera-se nesse trabalho que as hipóteses de normas infraconstitucionais criadas com desvio

ou excesso de poder legislativo são englobadas dentro da categoria da inconstitucionalidade material. Para uma análise mais apurada dessas situações, ver MIRANDA, 1996b, p. 344-347; BULOS, 2009, p. 72-74. Especificamente sobre o excesso do poder legislativo, ver CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e vinculação do legislador. Contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 257 et seq.

256TAVARES, 2009, p. 204; Marcello Caetano (In 1996, p. 345) e Jorge Miranda (In 1996b, p. 340)

preferem classificar autonomamente a hipótese de inconstitucionalidade por violação de norma de competência, chamando-a de orgânica. Já Luis Roberto Barroso (In 2008, p. 26) coloca a inconstitucionalidade orgânica como uma espécie do gênero inconstitucionalidade formal, ao lado da inconstitucionalidade formal propriamente dita. De seu turno, Nelson de Sousa Sampaio (In O

processo Legislativo. 2. ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 179 prefere dividir a

inconstitucionalidade formal em três hipóteses e subclasses: inconstitucionalidade formal propriamente dita, que ocorre quando a violação é do procedimento; inconstitucionalidade formal orgância, quando a violação é do órgão competente; inconstitucionalidade formal temporal, quando o ato é criado em tempo proibido pela norma constitucional. No mesmo sentido, ver BULOS, 2009, p. 67-69.

257Com relação a esta classificação, Hans Kelsen (In 2007, p. 132) afirma que a diferença entre

inconstitucionalidade formal e material: “[...] só é admissível com a reserva de que a inconstitucionalidade material é, em última análise, uma inconstitucionalidade formal, no sentido de que uma lei cujo conteúdo está em contradição com as prescrições da Constituição deixaria de ser inconstitucional se fosse aprovada como lei constitucional”. Acrescenta-se, entretanto, que a recíproca também seria verdadeira, ou seja, a inconstitucionalidade formal é, em última análise, material também, posto que quando uma lei é criada fora do procedimento estabelecido por uma norma constitucional, ocorre uma violação do conteúdo desta última norma. Assim, a única forma de evitar este reducionismo da presente classificação, que, ao final implicaria na própria inutilidade desta, é considerar, como apresentado por André Ramos Tavares (In 2009, p. 207), a inconstitucionalidade material como uma questão de nomoestática, ou seja, de avaliação de normas entre si, enquanto que a inconstitucionalidade formal seria um problema de nomodinâmica, ou seja, a inconstitucionalidade decorreria da incompatibilidade entre um processo real de produção de norma e um conteúdo normativo que regula tal processo.

revogada, se o vício for formal apenas, a norma é recepcionada, mas passa a se submeter ad futurum ao novo regime formal.259

Uma terceira forma de se classificar a inconstitucionalidade é aquela que parte da análise da extensão que a invalidade assume em relação à norma ou à lei.260 Aplicando ao tema da inconstitucionalidade a clássica tese das inconsistências entre normas, elaborada por Alf Ross261, esta classificação distingue a inconstitucionalidade em total e parcial.262

Tal classificação pode ser analisada sob dois prismas: através da comparação entre o conjunto de normas de um diploma infraconstitucional com o conjunto de normas que formam a Constituição ou por meio da comparação entre uma norma infraconstitucional e uma norma constitucional apenas.263

No que tange ao primeiro enfoque afirma-se que haveria inconstitucionalidade total quando existe entre a Constituição, entendida como conjunto de normas constitucionais, e o ato infraconstitucional, entendido como conjunto de normas de um diploma infraconstitucional, uma incompatibilidade do tipo total-total ou parcial- total, quer dizer, respectivamente, quando o diploma infraconstitucional e a Constituição não podem ser aplicados sem que entrem em conflito entre si ou quando o diploma infraconstitucional não pode ser aplicada sem entrar em conflito

259BARROSO, 2008, p. 29-30. 260TAVARES, 2009, p. 210.

261Para referido jurista escandinavo, a inconsistência entre normas é uma espécie de problema lógico

de interpretação que ocorre quando se imputam efeitos jurídicos incompatíveis às mesmas condições fáticas. Esta inconsistência pode ocorrer de três formas: total-total, total-parcial e parcial-parcial. A primeira ocorre quando nenhuma das normas pode ser aplicada sob nenhuma circunstância sem entrar em conflito com a outra. Já a segunda ocorre quando uma das normas não pode ser aplicada sob nenhuma circunstância sem entrar em conflito com a outra, apesar desta última ter um campo adicional de aplicação que não entra em conflito com aquela. Por fim, a inconsistência parcial-parcial ocorre quando cada norma tem um campo de aplicação que entra em conflito com a outra, mas também tem outro campo de aplicação remanescente em que não há o conflito. Para uma melhor análise dessa teoria, ver ROSS, Alf. Sobre el Derecho y la Justicia. 2. ed. Buenos Aires: Editorial Universitária de Buenos Aires, 1997, p. 164 et seq.

262Jorge Miranda (In 1996b, p. 339) propõe a utilização da distinção entre a inconstitucionalidade em

total e parcial também sob outro enfoque, qual seja, o tempo de aplicação da norma, motivo pelo qual seria total a inconstitucionalidade que a atinge durante todo o seu tempo de vigência e parcial a que atinge apenas em determinado e limitado tempo.

263Nesse sentido, ver MIRANDA, 1996b, 338; TAVARES, 2009, p. 211. Na verdade, em última

análise, mesmo a inconstitucionalidade total e parcial sob o prisma da comparação entre diploma infraconstitucional e a Constituição como um todo se resume a uma questão de inconstitucionalidade total ou parcial por meio da comparação entre uma norma infraconstitucional e uma norma constitucional apenas.

com a Constituição, mas esta tem uma área de aplicação em que não ocorre conflito com o diploma infraconstitucional.264

Já a inconstitucionalidade parcial surge quando existe uma incompatibilidade entre a Constituição e o diploma infraconstitucional do tipo parcial-parcial ou total-parcial. No primeiro caso, cada conjunto de normas tem um âmbito de aplicação em que inexiste o conflito entre eles, mas tem outro âmbito de aplicação em que tal conflito ocorre. Já na segunda hipótese, a Constituição não pode ser aplicada sem entrar em conflito com o diploma infraconstitucional, mas este tem uma área de aplicação que não conflita com a Constituição.265

Já sob o segundo prisma, qual seja, o da comparação entre uma norma como integrante de um diploma infraconstitucional e de uma norma constitucional apenas, ocorreria inconstitucionalidade total quando existe entre a norma constitucional e a norma infraconstitucional uma incompatibilidade do tipo total-total ou parcial-total, quer dizer, respectivamente, quando a norma infraconstitucional e a norma constitucional não podem ser aplicadas sem que entrem em conflito entre si ou quando a norma infraconstitucional não pode ser aplicada sem entrar em conflito com a norma constitucional, mas esta tem uma área de aplicação em que não ocorre conflito com a norma infraconstitucional.266

Já a inconstitucionalidade parcial surge quando existe uma incompatibilidade entre a norma constitucional e a norma infraconstitucional do tipo parcial-parcial ou total- parcial. No primeiro caso, cada norma tem um âmbito de aplicação em que inexiste o conflito entre elas, mas tem outro âmbito de aplicação em que tal conflito ocorre. Já na segunda hipótese, a norma constitucional não pode ser aplicada sem entrar em conflito com a norma infraconstitucional, mas esta tem uma área de aplicação que não conflita com a norma constitucional.267

Esta classificação, seja por qualquer dos dois prismas acima relatados, permite chegar a uma conclusão importante. É que havendo inconstitucionalidade total, seja do tipo total-total ou parcial-total, a norma infraconstitucional é sempre inválida.268 264TAVARES, 2009, p. 210-211. 265Ibid., p. 211. 266TAVARES, 2009, p. 210-211. 267Ibid., p. 211. 268BULOS, 2009, p. 78-79; TAVARES, 2009, p. 211.

Entretanto, havendo inconstitucionalidade parcial, a invalidade da norma infraconstitucional somente atinge uma parcela do diploma infraconstitucional ou um âmbito de aplicação da norma infraconstitucional.269

A última forma de se classificar as inconstitucionalidades é quanto ao diverso momento de edição das normas constitucionais. Assim, tem-se a inconstitucionalidade originária quando na vigência de certa norma constitucional se emite um ato ou se realiza um comportamento omissivo que a viola270, ou seja, quando a norma infraconstitucional já ingressa no mundo jurídico violando uma norma constitucional em vigor.271

Por outro lado, tem-se a inconstitucionalidade superveniente quando uma nova norma da Constituição, inserida seja por uma nova Constituição ou por uma emenda constitucional, vem dispor de forma contrária a uma norma infraconstitucional precedente.272-273

Estas são as formas em que o vício da inconstitucionalidade pode se manifestar e ser analisado. A seguir, tratar-se-à dos efeitos que a decisão reconhecendo tal vício produz em uma norma do sistema.

269BULOS, 2009, p. 79. 270MIRANDA, 1996b, p. 341. 271BARROSO, 2009, p. 40. 272MIRANDA, 1996b, p. 341.

273Cumpre registrar, entretanto, que o STF sustenta que não existe, tecnicamente, uma

inconstitucionalidade nesta hipótese, mas sim revogação da norma anterior, conforme entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido ver BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 2.501 MC. Relator: Ministro Moreira Alves. Brasília. 15.05.2002. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 12 jan. 2010. Entretanto, André Ramos Tavares (In 2009, p. 214) apresenta uma situação em que, mesmo se for seguida a orientação do STF, seria correta a utilização da expressão “inconstitucionalidade superveniente”, qual seja, a que ocorre quando uma lei que, embora constitucional passa a ser incompatível com novo entendimento conferido à norma constitucional decorrente de mudança ocorrida por via interpretativa na significação desta.