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A coisa julgada nas relações jurídicas continuativas

4. A COISA JULGADA FORMADA NO PROCESSO CIVIL

4.5 OS LIMITES OBJETIVOS DA COISA JULGADA

4.5.2 A coisa julgada nas relações jurídicas continuativas

O artigo 471, do CPC, prescreve que:

Art. 471. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo:

I - se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito; caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença;

II - nos demais casos prescritos em lei. Por sua vez, o artigo 15, da Lei n. 5478/68, proclama que:

Art. 15. A decisão judicial sobre alimentos não transita em julgado e pode a qualquer tempo ser revista, em face da modificação da situação financeira dos interessados.

Um olhar apressado a tais dispositivos poderia levar a conclusões no sentido de que se estaria diante de uma espécie de atenuação ou mesmo relativização da coisa julgada no caso das relações jurídicas continuativas.

A raciocínios desta natureza chegaram alguns juristas, justificando para tanto, por exemplo, que o maior poder discricionário dado ao juiz para regular as relações jurídicas continuativas, tendo em vista que o legislador não teria formulado em sua

plenitude a regra de direito material572, ou mesmo uma necessidade de equidade573, levariam à possibilidade de mutabilidade do julgado nestes casos específicos de relações jurídicas.574

Cumpre, entretanto, afastar tais conclusões. A relação jurídica continuativa é aquela “[...] cuja hipótese de incidência concerne a fatos ou situações que perduram no tempo, de modo que suas posições jurídicas internas (direitos, deveres, ônus...) podem ser modificadas ou redimensionadas no curso da relação, conforme varie o panorama fático ou jurídico”.575

Assim, estas relações têm como características que as diferenciam de outras o fato de serem de longa duração e possuírem um caráter dinâmico.576 Por isso, elas permanecem sofrendo mutações, vivendo no tempo com conteúdo ou medida determinados por elementos essencialmente variáveis, mesmo depois de proferida a sentença.577

Dessa forma, havendo a mudança desses elementos, sem dúvida que é viável à parte requerer uma nova regulação da relação, mas isto não significa que a sentença anterior não fez coisa julgada, mas sim que se está diante de uma nova causa de pedir e, até mesmo, um novo pedido, ou seja, outra lide.578

A verdade é que o estudo dos limites objetivos realizado acima acabou por demonstrar que, de certa forma, todas as sentenças têm implícita uma espécie de cláusula rebus sic stantibus, no sentido de que valem apenas enquanto

572Esta é a posição de Carnelutti, com base na distinção que ele formula entre processo dispositivo e

declarativo, em que neste o juiz se limitaria a identificar e aplicar a norma jurídica e naquele existiria uma margem mais ampla de arbítrio judicial, face à incompletude ou mesmo ausência de critério legal orientador da decisão. Neste sentido, cf. CARNELUTTI, 1997, p. 65-68. Citando e criticando esta posição de CARNELUTTI, cf. FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. A coisa julgada nas ações de alimentos.

Revista da Ajuris, Porto Alegre, n. 52, jul. 1991, p. 16-18; LIEBMAN, 2006, p. 27.

573Esta tese foi defendida por alguns juristas alemães, inclusive, Konrad Hellwig, conforme se verifica

em MIRANDA, 1997, p. 149-150.

574Sobre outras teorias que tentaram justificar seja a ausência de coisa julgada nestas situações, seja

a existência apenas de coisa julgada formal, seja mesmo o tratamento diferenciado que deveria receber a coisa julgada nestas situações, cf. FABRÍCIO, 1991, p. 16-22; MIRANDA, 1997, p. 148-152.

575Cf. TALAMINI, 2006, p. 91. 576Cf. FABRÍCIO, 1991, p. 24-25.

577Cf. LIEBMAN, 2006, p. 28; TALAMINI, 2006, p. 89-90.

578Cf. RODRIGUES, 2003, p. 346-347; TALAMINI, 2006, p. 90-91; DIDIER JÚNIOR; BRAGA;

permanecem aquelas condições com base nas quais ela foi proferida579, ou seja, mudando os fatos, resta alterada também a causa de pedir, surgindo uma nova lide, a qual não poderá se opor à alegação de coisa julgada, já que esta se refere apenas à resposta normativa dada pela sentença a uma lide determinada.580

Portanto, não há diferença de tratamento a ser dado à coisa julgada nas hipóteses de relações jurídicas continuativas, já que também as sentenças que julgarem tais situações são aptas a fazer coisa julgada, como qualquer outra que resolva uma lide, sendo que o que ocorre de diferente nestas situações é que, pelo fato dessas relações perdurarem no tempo e possuírem um caráter dinâmico, elas permitem a ocorrência de novas causa de pedir e, portanto, a existência de outras lides no seu curso, o que de forma alguma leva a uma contradição com a coisa julgada formada anteriormente.581

Nesse diapasão, é plenamente criticável a redação de ambos os dispositivos acima citados, posto que acabam por dar uma falsa impressão de que se estaria numa situação de tratamento diverso da coisa julgada, como faz crer o artigo 471, do CPC, ou, pior ainda, até mesmo de exclusão da possibilidade de ocorrência de coisa

579Segundo Talamini (In 2006, p. 88-89), por fatos novos que não estariam abarcados pela coisa

julgada devem-se entender aqueles posteriores à conclusão dos autos antes da decisão da fase recursal ordinária, conforme se pode extrair de uma interpretação do artigo 462 c/c artigo 517, ambos do CPC, que dispõem que: “Art. 462. Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento da lide, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a sentença; Art. 517. As questões de fato, não propostas no juízo inferior, poderão ser suscitadas na apelação, se a parte provar que deixou de fazê-lo por motivo de força maior”.

580Cf. LIEBMAN, 2006, p. 27-28. É por esse motivo que se entende aqui que a questão passa pela

análise mesmo dos limites objetivos da coisa julgada e não de um suposto terceiro limite desta, qual seja, o limite temporal, no sentido da coisa julgada ser limitada ao tempo dos fatos, sendo que a decisão jurisdicional regula a relação jurídica somente nos limites da situação substancial posta sub judice não para todo o sempre, nos limites temporais da causa petendi, portanto. Para esta conceituação de limites temporais, cf. PORTO, 2006, p. 81-82. Pelo próprio conceito dado aos limites temporais se vê que se trata, na verdade, da própria análise dos elementos objetivos da coisa julgada, no sentido de que esta está limitada ao pedido e à causa de pedir. Portanto, não há motivo de se criar uma terceira categoria de limites que, na verdade, já estaria englobada numa outra, constituindo os limites temporais da coisa julgada um pseudo-problema, como afirma José Carlos Barbosa Moreira (In 1971, p. 144), já que a coisa julgada, compreendida em seus limites objetivos, não se subordina a limite temporal algum. Também criticando a ideia de limites temporais da coisa julgada, cf. TALAMINI, 2006, p. 87; TESHEINER, 2001, p. 163. Em sentido contrário, defendendo que se trata de uma categoria diversa mesmo de limites, ao lado dos objetivos e subjetivos, cf. FABRÍCIO, 1991, p. 30.

julgada nas sentenças sobre ações de alimentos, como leva a crer o artigo 15, da Lei 5478/68.582

Também criticável é nomear as demandas que procuram uma nova regulação para estas relações, diante das mudanças fáticas ocorridas, de ação revisional ou ação de modificação, já que, ao menos do ponto de vista da sentença anterior, o que pode ocorrer é a necessidade de uma nova regulação jurisdicional da relação de direito material, mas não uma revisão ou alteração do julgado, já que o que muda é o próprio direito material e não a sentença, que permanece a mesma sempre, mas se referindo a outra lide.583

Dessa forma, antes de serem situações que levariam a um tratamento especial do instituto da coisa julgada, as hipóteses retratadas estão também inseridas dentro da análise geral que se faz de tal instituto, notadamente sob o aspecto dos seus limites objetivos.