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3.2 A INCONSTITUCIONALIDADE

3.2.4 Efeitos da decisão de inconstitucionalidade

O debate travado acerca da natureza do vício da inconstitucionalidade foi, basicamente, polarizado entre a corrente que entende pela nulidade do ato inconstitucional e a que entende pela anulabilidade de tal ato.

A primeira corrente possui sua maior expressão no direito constitucional estadunidense, notadamente no campo doutrinário a partir de Alexander Hamilton, por meio do “artigo n. 78”, do “Federalista”, e, posteriormente, pela aplicação da teoria em 1803 pelo Juiz John Marshall no caso Marbury versus Madison.

Segundo esta corrente, o ato normativo considerado inconstitucional é inválido e deve ser considerado nulo de pleno direito, posto que, se ele puder reger dada situação e produzir efeitos regulares e válidos, isso representaria a negativa de vigência da Constituição naquele período em relação àquela matéria.274

Dessa forma, uma decisão que dispusesse acerca da inconstitucionalidade de determinado ato normativo teria natureza declaratória e produziria efeitos ex tunc, ou seja, retiraria todos os efeitos normativos do ato desde a sua promulgação.

Entretanto, a partir da década de 60 do século passado esta tese sofreu algumas atenuações, como forma de se preservar determinadas situações consolidadas sob a égide da lei inconstitucional e, assim, evitar maiores repercussões negativas sobre a paz social e sobre a exigência de um mínimo de certeza e de estabilidade das relações e situações jurídicas.275

Portanto, apesar de se reconhecer a nulidade do ato inconstitucional, seria possível de se preservar, excepcionalmente, os efeitos normativos produzidos por tal ato em determinadas situações.

274Cf. BARROSO, 2008, p. 16-17.

A tese da nulidade do ato inconstitucional, com as ressalvas quanto à possibilidade de reconhecer efeitos ao ato em excepcionais situações, foi acolhida em diversos países, como Itália, Alemanha, Portugal e Espanha.276

No Brasil, Rui Barbosa277 foi o seu primeiro grande defensor, sendo a tese acolhida pelo Supremo Tribunal Federal, mas também com as ressalvas quanto à possibilidade de reconhecer efeitos ao ato em excepcionais situações278, o que acabou sendo positivado pelas previsões do artigo 27, da Lei n. 9.868/99279, e do artigo 11, da Lei 9.882/99.280

Do lado oposto à tese da nulidade do ato inconstitucional, tem-se a corrente que defende a anulabilidade do ato inconstitucional, cujo maior expoente foi, sem dúvida, Hans Kelsen.

Referido jurista defendeu que não existe nulidade absoluta em um sistema de direito positivo, mas somente anulabilidade com vários graus, já que o ato precisa existir legalmente para ser objeto de julgamento por uma autoridade.281

Para adequar esta noção com as suas teses de que uma lei inválida não pertence ao Direito e, portanto, é inexistente e que o fundamento de validez da lei é a Constituição, o que poderia levar à conclusão de que a lei inconstitucional é inexistente, Kelsen se vê obrigado a criar a ideia de que as normas da Constituição que autorizam a criação de normas com caráter de lei são disposições alternativas, o que significa dizer que elas possuem uma cláusula alternativa tácita autorizando o

276Cf. BARROSO, 2008, p. 16-18.

277Nesse sentido, cf. JEVEAUX, 2008, p. 151; FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de

Direito Constitucional. 33. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 35; BARROSO, 2008, p. 18.

Para a análise dos argumentos do próprio Rui Barbosa, cf. BARBOSA, 2004, p. 39-44.

278Nesse sentido, cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 122202. Relator: Ministro Francisco

Rezek. Segunda Turma. Brasília, 10 ago. 1993. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em 30.03.2010.

279“Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de

segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”.

280“Art. 11. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de argüição de

descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”.

281Cf. KELSEN, Hans. O controle judicial da constitucionalidade (Um estudo comparado das

órgão competente a criar uma lei com procedimento e regulando a matéria de forma diferente do previsto na Constituição.282

Assim, as leis inconstitucionais seriam, na verdade, leis conformes com a Constituição, mas que podem deixar de ter efeito mediante um procedimento especial. Conseqüência disso é que as normas inconstitucionais são anuláveis, sendo que a decisão de inconstitucionalidade é, na verdade, constitutiva.283

Entretanto, Kelsen reconhece que é possível que a anulação possua efeito retroativo, mas a segurança jurídica leva à inexistência, ao menos em regra, deste efeito, somente ele existindo quando o ordenamento expressamente autorizar.284 Tal tese foi acolhida na Áustria285, sendo que a Constituição deste país, com a reforma de 1929, mitigou o efeito ex nunc, ao permitir que a decisão que reconheceu a inconstitucionalidade também atinja determinado caso concreto, quando a análise da constitucionalidade for decorrente de provocação perante a Corte Constitucional por parte de uma Corte Superior austríaca que esteja julgando tal caso concreto.286 Vale registrar também que esta ideia da anulabilidade da lei inconstitucional e do caráter constitutivo negativo da decisão que reconhece a inconstitucionalidade teve também alguma acolhida na doutrina brasileira287 e, com a edição das Leis n. 9868/99 e 9882/99, chegou-se até a falar em uma formal aproximação do Brasil à tese de Kelsen.288

Entretanto, apesar das relevantes contribuições dadas ao estudo da teoria da inconstitucionalidade por parte destas duas teses, notadamente quanto aos efeitos da decisão de inconstitucionalidade sobre o ato normativo, fato é que elas possuem algumas premissas teóricas que não se compatibilizam com as complexidades do caso concreto.

Assim, não é possível acolher a ideia de que o ato inconstitucional é nulo de pleno direito, quando se verifica que, em diversas situações, é mais interessante que se

282KELSEN, 1998b, p. 295 et seq. 283Ibid, p. 300 et seq.

284Cf. KELSEN, 2007, p. 143-146; KELSEN, 2007, p. 308-309. 285Nesse sentido, cf. BARROSO, 2008, p. 16-18.

286Cf. CAPPELLETTI, 1999, p. 120-121.

287Cf. referências em BARROSO, 2008, p. 19-20. 288Cf. FERREIRA FILHO, 2007, p. 36.

atribua alguns efeitos ao ato inconstitucional, ao invés de declarar que ele nunca foi capaz de produzir efeitos.

A tentativa da tese da nulidade em resolver esta falha afirmando que é possível que em determinadas situações excepcionais o ato inconstitucional produza efeito é a própria negação da sua premissa, ou seja, que o ato inconstitucional é nulo e, consequentemente, a declaração de inconstitucionalidade deve ter efeito ex tunc. Por outro lado, não se pode conceber a ideia de Kelsen de que as normas da Constituição que autorizam a criação de normas com caráter de lei são disposições alternativas, já que isto significa a aniquilação da estrutura hierárquica do sistema jurídico e leva à conclusão de que a possibilidade da Constituição controlar a legalidade seja uma quimera.289

Porém, também não se deve abdicar da ideia de que a Constituição é que dá validade às demais normas do sistema, já que esta noção está na base do próprio Constitucionalismo.

Dessa forma, deve-se buscar uma explicação alternativa que seja capaz de superar estas deficiências apresentadas pelas teorias da anulabilidade e da nulidade do ato inconstitucional.290

Tal explicação pode ser encontrada, sem dúvida, com base na diferença estabelecida por Eugênio Bulygin entre pertença e aplicabilidade da norma. Para Bulygin, a ideia de que para um observador (jurista ou juiz) situado em um tempo dado somente são aplicáveis as normas pertencentes ao sistema correspondente a este tempo é equivocada ou ao menos exagerada, posto que com muita freqüência

289MORESO, 1997, p. 69.

290Regina Maria Macedo Nery Ferrari (In Efeitos da Declaração de Inconstitucionalidade. 5. ed.

rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 289-296), ciente dos defeitos das teorias da nulidade e da anulabilidade da norma inconstitucional, procurou apresentar uma explicação alternativa para o fenômeno do efeito da declaração da inconstitucionalidade na norma infraconstitucional, baseando-se na ideia de que não há que se falar nem em nulidade, nem em anulabilidade da norma inconstitucional, mas sim simplesmente em sua invalidade, sendo que a natureza da decisão de inconstitucionalidade é constitutiva negativa, já que retira a incerteza acerca da existência ou não da inconstitucionalidade da norma e cria uma situação norma de certeza, o que não significaria, necessariamente, a impossibilidade de tal decisão gerar efeitos ex tunc em alguns casos. Entretanto, a solução aqui proposta, ao menos no plano teórico, será diversa, como se verá a seguir, mesmo porque baseada em referenciais teóricos não adotados por aquela autora.

resultam aplicáveis normas que não mais pertencem ao sistema deste tempo, mas sim que pertencem a algum sistema anterior, que já foi revogado.291

Aplicando esta ideia à noção da inconstitucionalidade, tem-se que um ato inconstitucional é inválido e, portanto, não pertence a determinado sistema, motivo pelo qual a decisão que reconhece tal inconstitucionalidade é, neste sentido, declaratória e apenas reconhece algo que já existia, não constituindo e nem desconstituindo nada.292

Porém, na medida em que geralmente o controle de constitucionalidade é realizado repressivamente, ou seja, depois de promulgada a norma infraconstitucional, pode ser que esta última tenha sido aplicada em determinadas situações e que, consequentemente, retirar tal aplicação àqueles casos represente afronta à outra norma constitucional que aconselhe a manutenção daquela aplicação.

Assim, no plano da aplicabilidade, o confronto não se dá entre a norma infraconstitucional e uma norma da Constituição, mas sim, em última análise, entre duas normas constitucionais. Destarte, para resolver tal conflito não cabe o critério da legalidade, já que se trata de conflito entre normas constitucionais e que, portanto, se situam no mesmo plano hierárquico e não são válidas ou inválidas, mas sim aceitas ou não.293

Portanto, a única saída que resta é a de verificar, através de um juízo de ponderação294, qual das normas em conflito, naquele caso específico, deve prevalecer como forma de se preservar a eficácia sistêmica, no sentido de apresentação de resultados favoráveis ao fim do sistema295, qual seja, a implementação e preservação do Constitucionalismo e de seus pilares, já que é este

291Cf. BULYGIN; MENDONCA, 2005, p. 70. 292Cf. MORESO, 1997, p. 92.

293Isto leva até mesmo à demonstração da imprecisão do termo “controle de constitucionalidade”

quando se estiver falando da questão relativa à aplicabilidade da norma infraconstitucional, motivo pelo qual seria melhor se falar em “controle da eficácia sistêmica”. De qualquer forma, por já ter sido bastante difundida, aceita-se aqui a preservação daquela primeira nomenclatura.

294O que, certamente, aumenta a responsabilidade e a carga argumentativa do órgão julgador. 295A ideia de eficácia sistêmica como produção de resultados almejados pelo sistema e de eficácia

sistêmica reversa como produção de resultados indesejados pelo sistema foi desenvolvida e apresentada ao público por Angel Rafael Marino Castellanos, orientador deste trabalho, em palestra proferida no dia 07.10.2009 com o título “As exigências de validade das decisões judiciais estrangeiras”, no 1º Congresso de Direito Processual Civil, realizado em Vitória-ES.

último que fundamenta o sistema jurídico em um Estado Constitucional e conduz à aceitação da Constituição e das suas normas como normas supremas do sistema. Consequência disto é que a decisão reconhecendo a inconstitucionalidade de uma norma infraconstitucional, sob o prisma da aplicabilidade desta norma, é constitutiva, já cria uma nova situação a respeito da aplicabilidade ou não desta norma a determinados casos.

Nesse diapasão, a decisão sobre a inconstitucionalidade do ato declara a invalidez deste, ou seja, a sua não pertença de pleno direito, desde o início, ao sistema, mas constitui a sua inaplicabilidade a determinadas situações ou a todas, dependendo do resultado encontrado pela ponderação realizada ao caso concreto.

Por fim, cumpre registrar que, como visto anteriormente quando do estudo dos objetos sujeitos ao juízo de constitucionalidade, também é possível que a inconstitucionalidade seja verificada em um ato já revogado, mas que ainda produz efeitos, motivo pelo qual a conclusão que se alcança, ao contrário do que pareceria à primeira vista, é que o efeito necessário gerado pela decisão de inconstitucionalidade diz respeito não à retirada de pertença da norma ao sistema, mas à sua inaplicabilidade, cuja extensão dependerá do que decidir o órgão julgador.296