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3.2 A INCONSTITUCIONALIDADE

3.2.2 Objetos sujeitos ao juízo de Constitucionalidade

Foi visto que a inconstitucionalidade é uma relação que envolve o cumprimento ou não de certa norma jurídica, no caso a norma constitucional, por parte de um comportamento (ato ou fato jurídico). Entretanto, tal ideia merece ser um pouco mais delimitada, tendo em vista que não são todos os comportamentos com relevância jurídica que devem ser analisados sob o prisma da constitucionalidade/inconstitucionalidade.

Na verdade, a tese da inconstitucionalidade foi desenvolvida levando-se em conta, notadamente, os comportamentos do Poder Público, no exercício de sua autoridade própria, sujeitos a regras de Direito Público.231

Dessa forma, ficariam excluídos os comportamento dos particulares, mesmo que diretamente contrários à Constituição, e também os comportamentos do próprio Poder Público quando submetidos ao regime jurídico de Direito Privado.232

229Assim, ver o magistério de Ignácio de Otto (apud ATIENZA; MANERO. In LAPORTA, 2003, p. 112);

No mesmo sentido, ver TOMÁS Y VALIENTE, 1996, p. 39.

230MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 1005-1006. Entretanto, vale ressaltar que, num primeiro

momento, esta é a noção de inconstitucionalidade apregoada apenas pelo Constitucionalismo estadunidense, já que na Inglaterra, ao menos entre os séculos XVIII e XIX, a inconstitucionalidade era visto como mero juízo de valor subjetivo, não significando infração da legalidade e nulidade, e na França do Estado Constitucional Liberal ela era visto como mero termo de censura. Nesse sentido, ver DICEY apud BARBOSA, Rui. Atos Inconstitucionais. 2. ed. Atualização de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russell, 2004, p. 39.

231Cf. BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 3. ed.

Isto porque seria diferente a função da Constituição perante o Poder Público e perante os particulares, motivo pelo qual diferente também devem ser os meios de garantia das normas e dos valores constitucionais.233

Assim, os comportamentos dos particulares e do Poder Público quando submetidos ao regime jurídico de Direito Privado também deveriam ser sancionados, mas por via diversa do controle de constitucionalidade, motivo pelo qual se diz que as conseqüências jurídicas deles não se reconduzem a problemas de inconstitucionalidade.234

Posteriormente, entretanto, notadamente a partir da teoria da eficácia externa dos direitos fundamentais235, começou-se a falar que também os atos dos particulares deveriam sim ser analisados sob o enfoque da tese da inconstitucionalidade, já que o respeito à Constituição compete a todos.236

Porém, apesar de se reconhecer que é possível que um comportamento de um particular viole, até mesmo diretamente, uma norma constitucional, fato é que toda a construção teórica acerca do controle de constitucionalidade e as previsões normativas, inclusive no Brasil237, sobre as hipóteses de seu cabimento descartam os atos dos particulares como possíveis objetos de controle de constitucionalidade, sendo controlados e sancionados por mecanismos diversos.

Destarte, somente interessam a este trabalho, como objetos sujeitos ao juízo de inconstitucionalidade, os comportamentos do Poder Público.238

232Cf. MIRANDA, 1996b, p. 313. 233Ibid., p. 313.

234Cf. CANOTILHO, 2003, p. 944; BARROSO, 2008, p. 11.

235Esta teoria, desenvolvida na Alemanha, defende que as normas constitucionais consagradoras de

direitos, liberdades e garantias fundamentais devem ser obrigatoriamente observadas e cumpridas pelas pessoas privadas quando estabelecem relações jurídicas com outros sujeitos jurídicos privados. Para uma análise mais apurada da teoria, ver, por todos, CANOTILHO, 2003, p. 1285 et seq.

236Defendendo esta nova concepção, cf. BULOS, 2009, p. 90-91; MENDES; COELHO; BRANCO,

2008, p. 1006; BERNARDES, Juliano Taveira. Controle Abstrato de Constitucionalidade: elementos materiais e princípios processuais. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 24.

237Vale ressaltar, entretanto, que se defende no direito brasileiro (cf., por todos, BARROSO, 2008, p.

284-285) a possibilidade da realização do controle de constitucionalidade, por meio de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, dos atos realizados por entes privados investidos de autoridade pública, como alguns atos de uma concessionária de serviço público, por exemplo. Porém, tal possibilidade somente decorreria pelo fato destes atos se equipararem aos atos públicos, possuindo, portanto, natureza pública.

238Porém, vale a pena observar alguns exemplos trazidos por Canotilho (In 2003, p. 945) em que

Em tese, a inconstitucionalidade pode afetar tanto um ato normativo, gerador de norma, que depois, como que se desprendendo do ato, pode ser autonomamente considerada como inconstitucional ou não, ou até mesmo um comportamento que não se identifique com um ato normativo, podendo tal comportamento ser geral ou individual, concreto ou abstrato.239

Dessa forma, não apenas uma norma jurídica pode ser objeto do controle de constitucionalidade, como também um comportamento omissivo violador de uma norma constitucional por parte do Poder Público, conforme melhor será analisado quando do estudo da inconstitucionalidade por omissão.

Entretanto, não é qualquer norma jurídica e qualquer comportamento omissivo que pode ser objeto do juízo de constitucionalidade. No caso dos comportamentos omissivos, somente pode ser considerado inconstitucional aqueles que decorrerem de um não cumprimento de um dever posto diretamente por uma norma da Constituição. Já no que diz respeito às normas jurídicas, tem-se que a inconstitucionalidade somente se refere àquelas normas hierarquicamente inferiores à Constituição, já que ela é uma relação entre dois graus de ordem jurídica.240

É majoritária a tese que defende uma ideia mais restrita de inconstitucionalidade, no sentido de que tal vício somente se refere aos atos diretamente inconstitucionais, sob pena de perda de utilidade do conceito de inconstitucionalidade241, motivo pelo qual o critério no caso de atos submetidos diretamente à Constituição seria a constitucionalidade e no dos atos só mediatamente subordinados seria a sua legalidade.242

Entretanto, sendo a inconstitucionalidade apenas a relação de contrariedade entre uma norma da Constituição e outra que lhe é subordinada- e todas as outras normas do sistema o são- não há que se realizar a restrição acima proposta.

como no caso da nota anterior, acabam produzindo efeitos jurídico-públicos, o que representa uma “quebra do monopólio da criação normativa” e levaria, em última análise, à necessidade de um controle de constitucionalidade de tais normas.

239Cf. MIRANDA, 1996b, p. 313-314. 240Cf. MIRANDA, 1996a, p. 19. 241Cf. TAVARES, 2009, p. 198-200.

242Cf. KELSEN, Hans. A Jurisdição Constitucional. In ______. Jurisdição Constitucional. Tradução

de Alexandre Krug, Eduardo Brandão e Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 164. Cum

Dessa forma, uma norma que viola uma lei e também uma norma da Constituição, não pode ser analisada apenas pelo prisma da legalidade, mas também pelo da constitucionalidade. Outra coisa diversa é saber se é interessante realizar o controle de constitucionalidade nos mesmos moldes do controle de legalidade, ou seja, se toda norma que viola uma lei e, consequentemente, uma norma da Constituição tem que ter o mesmo tipo de controle daquela norma que viola apenas a norma da Constituição, onde aí sim poderia ser interessante diferenciar as duas situações. Vale registrar também que não só as normas vigentes, mas também as já revogadas, podem ser objetos do juízo de constitucionalidade, posto que é possível que estas últimas devam ainda ser aplicadas a algumas situações, apesar de não mais pertencerem ao sistema, o que torna relevante a análise da constitucionalidade delas.243

Costuma-se defender, porém, que as normas contrárias a Constituição que foram promulgadas anteriormente a esta não podem ser analisadas sob o prisma da constitucionalidade, posto que a relação entre elas e a Constituição é simplesmente de revogação daquela por esta última.244

Entretanto, esta afirmação deve ser vista com ressalvas, já que apesar da contrariedade das normas promulgadas anteriormente à Constituição com as normas desta última não se resolverem pelo prisma da validade, mas sim da revogação, ligada ao aspecto mais amplo da pertença da norma ao sistema, pode ser necessário, até mesmo por uma questão de segurança jurídica, que se permita o controle de constitucionalidade daquelas normas para se decidir acerca da existência de contradição ou não delas com as normas da Constituição, mesmo porque tal contradição não é autoevidente.

Os atos de Direito Internacional, como os tratados e convenções, quando aplicados à ordem interna do país, podem perfeitamente ser objetos de juízo de inconstitucionalidade.245

243Cf. KELSEN, 2007, p. 162; CANOTILHO, 2003, p. 946-947; MORESO, 1997, p. 92-95. 244Cf., por todos, KELSEN, 2007, p. 162-163.

No caso das próprias normas constitucionais, somente as derivadas de revisão constitucional podem ser objeto de juízo de inconstitucionalidade, já que o que poderia haver no caso das originárias é a ilegitimidade da Constituição como um todo, mas nunca inconstitucionalidade da norma constitucional originária, pois seria incongruente invocar a própria Constituição para justificar a desobediência ou insurgência contra as suas normas, já que quem fornece os critérios de valor do constitucional é a própria norma constitucional.246