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4 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

4.3 A coleta da amostra

Segundo Marconi e Lakatos (2011, p. 49-55), cartas constituem dados de fontes primárias, pois são compilados pelo autor, não sendo transcritos de outras fontes. A aquisição delas, conforme as autoras, dá-se em domicílios particulares, sendo documentos cuja importância reside no fato de que são escritos na própria linguagem do autor. As cartas pessoais usadas nesta pesquisa foram escritas por cearenses ao longo do século XX, período

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em que a comunicação por cartas no Brasil atingiu seu ponto máximo com a atuação das instituições que melhoraram o sistema de distribuição de correspondências e encomendas no país (o Departamento de Correios e Telégrafos [DCT], criado em 1931, e a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos [ECT], criada em 1969) e com o crescimento da população alfabetizada.

As cartas usadas como corpus nesta pesquisa foram obtidas, como já citado acima, com a colaboração de cidadãos do município cearense de Quixadá. As buscas se concentraram em uma só cidade para facilitar a identificação de informações a respeito dos remetentes e dos destinatários. Para a composição do material a ser analisado, as cartas deveriam:

a) pertencer ao gênero “carta pessoal” (ficando, portanto, fora dessa compilação as “cartas comerciais”, as “cartas de leitor”, as “cartas de protesto”, as “cartas circulares” e aquelas que fazem parte de jogos ou correntes)29

e

b) ser escritas por pessoas do povo, ou seja, não por profissionais da linguagem ou autoridades com intenção formal ou profissional.

Como cartas pessoais, estas deveriam ser trocadas entre parentes, amigos, namorados, noivos ou cônjuges e ser escritas tanto por/para homens quanto por/para mulheres, tanto por/para jovens quanto por/para adultos.

Nessa busca, foi obtida uma quantidade bastante diversificada de correspondências: algumas de pessoas mais habituadas à leitura e, portanto, que escreviam com certa preocupação estilística, conscientes de estarem usando uma modalidade diferente da fala, como as cartas produzidas por alguns pastores ou seminaristas; outras foram escritas por pessoas de baixa escolaridade e apresentam muitas marcas da oralidade e desvios da ortografia oficial. Em todas, porém, o uso dos pronomes te/lhe não segue exatamente as prescrições da gramática normativa, mesmo nas cartas de pessoas com mais escolaridade. Por conta disso, nenhuma dessas cartas foi desconsiderada por se aproximar ou por se afastar da norma padrão . Todas as 186 cartas coletadas, por serem cartas pessoais, foram aproveitadas na constituição de nossa amostra.

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No período em que era intensa a comunicação por cartas, desenvolveu-se o hábito de escrever cartas em corrente, isto é, com cópias para diversos destinatários, com a recomendação de que novas cópias daquela carta fossem feitas e enviadas a novos destinatários, os quais deveriam enviar de volta uma das cópias para cada remetente, multiplicando assim o número de cópias de modo a não quebrar a corrente. O objetivo era puramente lúdico, apenas para verificar a aceitabilidade do destinatário no jogo bem como promover a interação entre os escritores de cartas. Algo semelhante faz-se hoje nas redes sociais como o Facebook e nos aplicativos de celulares como o WhatsApp.

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Como alerta Labov (1994, p. 11), os documentos históricos (neste caso, as cartas) sobrevivem por acaso, não por intenção, e a seleção que está disponível é o produto de uma série imprevisível de acidentes históricos. Infelizmente, por se tratar da junção de um material já produzido e o único disponível, não foi possível coletar, na mesma proporção, cartas que representassem os mais diversos segmentos da sociedade cearense nem diferentes relações sociais, bem como as sucessivas décadas do século XX. Assim, têm-se, por exemplo, mais cartas de pessoas que mantinham com seus destinatários uma relação simétrica (de igual para igual, como amigos, cunhados, primos, irmãos e cônjuges) do que de pessoas que mantinham uma relação assimétrica (de poder, como pai e filho, patrão e empregado, tio e sobrinho etc.); mais cartas escritas por homens do que por mulheres; mais cartas escritas por adultos do que por jovens; mais cartas escritas a partir da segunda metade do século XX do que nas décadas anteriores; as cartas dos anos 1940 aos anos 1960 são predominantemente de adultos para adultos, enquanto as cartas escritas a partir dos anos 1970 até o ano 2000 são principalmente de jovens para jovens. Tais características inviabilizam um equilíbrio na quantidade de itens que compõem cada célula representativa dos diversos segmentos que envolvem a amostra (década, sexo do remetente, idade do remetente, relação remetente/destinatário etc.), por isso, a maioria das características sociais teve de ser desconsiderada, restando-nos apenas os fatores período em que a carta foi escrita e gênero de autoria da carta, além de se considerar o remetente individualmente.

As correspondências foram entregues diretamente ao pesquisador e constituem material inédito em qualquer tipo de análise, não tendo sido, portanto, retiradas de seus envelopes e desdobradas para outro fim que não fosse a leitura do destinatário ou das pessoas com quem este compartilhou o assunto.

Após a coleta das cartas, que se deu através de conversas com diversos moradores da cidade de Quixadá, foram colhidas as informações sobre os autores dos documentos (de onde eram, qual a faixa etária quando escreveram as cartas, qual a relação que mantinham com o destinatário, qual o sexo e qual o nível de instrução). Os informantes desses dados foram os responsáveis pelo acervo, em geral, parentes do destinatário, como a Sra. E. B. de A., filha do Pr. J. A. de M., a qual mantém em seus arquivos cartas destinadas a seu pai, com quem morou até o falecimento dele, aos 92 anos de idade, conhecendo, portanto, detalhes das relações sociais mantidas entre ele e os remetentes das cartas. Também é o caso da Sra. M. F. S. N., que guarda correspondências trocadas entre os membros da família de seu marido e que deu as informações básicas sobre os autores dessas cartas. Os outros acervos são dos próprios

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destinatários, os quais, melhor do que ninguém, sabem informar com mais segurança os dados sobre as pessoas que escreveram para elas.

As cartas foram digitalizadas para o formato .pdf, impressas, organizadas em ordem cronológica, conforme a data utilizada pelo remetente, catalogadas com a letra C seguida de um número de três dígitos, de 001 a 186, e encadernadas para facilitar o manuseio durante a pesquisa.

Coletadas as cartas, estas foram digitalizadas de forma a conservar o máximo possível suas características naturais e manter a legibilidade dos documentos. Em seguida, as cartas digitalizadas foram arquivadas para leitura e identificação das ocorrências das formas variantes te/lhe.