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3 OS PRONOMES PESSOAIS E A TEORIA T-V

3.4 Tu/te e você/lhe através do tempo

A 2ª PESS SING, aquela a quem se dirige o falante (o remetente, no caso das cartas

pessoais), como se viu, é codificada na maioria das línguas conforme a relação entre os interlocutores. As formas usadas para denotar distanciamento ou respeito costumam variar ao longo do tempo, conforme as mudanças nas sociedades, e apresentarem um conjunto bastante diversificado de formas (SOARES, 1980, p. 56-66). Já as formas usadas na intimidade, em geral, são menos suscetíveis a mudanças ao longo do tempo, tendendo a conservar-se. É o que comprova a persistência das formas T provenientes do indo-europeu ao longo da história, não só no português, como em todas as línguas latinas e eslavas, em que os pronomes de 2ª PESS SING, inclusive os possessivos, usados na intimidade, iniciam todos com t-, e nas germânicas, em que iniciam com d-, þ- ou th- (consoantes em que se transformou o t- indo-europeu nessa família de línguas). 19

A forma portuguesa tu veio do latim tū, e este do indo-europeu *t (BEEKES, 1995; SIHLER, 1995). Ou seja, desde o indo-europeu, “ancestral hipotético (...) de todas as línguas indo-europeias antigas e modernas” (LYONS, 2011, p. 140), falada na Pré-história, nas planícies da Rússia no quarto milênio antes de Cristo, que esse pronome vem se mantendo sem modificações fonéticas drásticas até hoje em português.20

19 Nas línguas latinas: italiano – tu, ti, te, tuo, francês – tu, te, toi, ton, espanhol – tú, te, ti, tu, catalão – tu, te, teu,

romeno – tu, te, tine, tău; nas línguas eslavas: russo – ty, tebya, tebe, tvoy, polonês – ty, tobie, twój, tcheco – ty,

tě, tebe, tvůj, esloveno – tî, t e te , t i ti , tvój etc.; nas línguas germânicas: alemão – du, dich, dir, dein,

dinamarquês – du, deg, din, sueco – du, dig, din, islandês –þú, þig, þér, þín, inglês – thou, thee, thy, thine (hoje arcaicas ou dialetais).

20 O mesmo não se deu em outras línguas, em que ou a consoante sofreu alteração, como em grego (su), em

proto-germânico (*thu) e nas línguas derivadas, como o alemão (du) e o islandês (þú), ou a vogal foi modificada, como em sânscrito (twa-m), nas línguas eslavas (ty ou ti) e no francês, que, apesar da grafia tu, a

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A persistência fonética e semântica de tu, desde o indo-europeu até o português moderno, ou seja, desde a Pré-História até os dias atuais, é um caso raro na história das línguas.

Quanto à forma objetiva te, a história é um pouco diferente:

A forma átona portuguesa te provém de dois étimos latinos: o acusativo (doravante ACUS) tē e o dativo (doravante DAT) tibi (com síncope do /b/ e crase dos “ii”), com perda da tonicidade em ambos os casos, daí porque pode ser empregada tanto como OD

quanto como OI. Conforme Coutinho (1976),

A forma ti resultou da analogia com mi. Na língua popular de Portugal, há a forma tim por influência de mim. Em textos antigos, é às vezes representado por che. A palatização se dava quando ti era seguido de o, a, donde cho, cha, de que se tirou depois che. A forma arcaica átona ti deu te, o que explica o emprego desta variação pronominal como objeto indireto em português. (COUTINHO, 1976, p. 254).

Na verdade, trata-se de duas palavras diferentes, homônimos perfeitos, com entradas diferentes no dicionário Aurélio:

te1 [Do lat. te, acus. do pron. tu] Pron. pess. Designa a 2ª pess. do sing. dos dois gêneros, tomada como objeto direto e equivalente a a ti: “E, abrindo as asas para o eterno abrigo, / Divino Amor, escuta que eu te chamo, / Divino Amor, espera que eu te sigo (José Albano, Rimas, p. 238); “E te amo como se ama um passarinho morto (Manuel Bandeira, Estrela da vida inteira, p. 36) (...)

te2 [Dativo do pron. tu; da forma sintética ti (< lat. tibi, *tihi), tornada átona e confundida com o acus.] Pron. pess. 1. Designa a 2ª pess. do sing. dos dois gêneros, tomada como objeto indireto e equivalente a a ti: Obedeço-te. [...] 2. Em ti: Alguém te insultou, te bateu? 3. Para ti: Vou adquirir-te um exemplar daquele romance; Compraram-te umas lembranças de aniversário.(...). (FERREIRA, 2010, p. 2013)

Todavia, por uma questão de praticidade, consideraremos te (OD, do lat. tē) e te (OI, do lat. tibi) como uma única palavra, pois é assim a postura adotada pelas gramáticas em geral e pela maioria dos dicionários da língua portuguesa (ABL, 2008, p. 1224; AULETE, 2011, p. 1317; BUENO, 2009, p. 712; HOUAISS, 2010, p. 746; SACCONI, 2012, p. 1939).

A forma latina tē (fonte do teOD) por sua vez, vem do indo-europeu *tege21, com síncope do /g/ e crase dos “ee”; já a forma tibi (que é a fonte do teOI) vem do indo-europeu

*tébhi22(SIHLER, 1995).

pronúncia da letra “u” é a da vogal anterior fechada arredondada /y/. No inglês, houve tanto a mudança

consonantal quanto a vocálica: thou [ðaʊ].

21 Fonte do armênio duk’ e do proto-germânico *theke (que deu origem ao gót. þuk, ao escand. þik, ao al. ant.

dih, al. mod. dich, dinam./nor. deg, sueco dig, frísio ant. thi, ingl. ant. þe, ingl. mod. thee [hoje arcaico]), do albanês të, e do grego se (< te) (BEEKES, 1995).

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Nas línguas indo-europeias antigas, a terminação verbal por si só indicava a pessoa gramatical, dispensando a aparição do pronome sujeito na frase, de modo que os pronomes na função de sujeito eram menos frequentes do que na função de objeto. A alta frequência de uso, segundo Bybee (2003), ocasiona a redução fonética. Heine (1993, p. 106) diz que “uma vez que um lexema é convencionalizado como um marcador gramatical, tende a sofrer erosão, isto é, a substância fonológica é susceptível de ser reduzida de algum modo e de tornar-se mais dependente do material fonético circundante”23. Eis por que te, diferentemente de tu, sofreu tantas transformações fonéticas ao longo do tempo, tornando-se um clítico (*tébhi > tibi > tii > ti > te).

Quanto à forma lhe, usada como oblíquo de você (ou de tu), remonta ao latim ĭlli, passando por *eli, no latim vulgar, li no português arcaico, lhi e, finalmente, lhe. Como explica Coutinho (1976),

Na linguagem popular de Portugal, ainda se ouve pronunciar li. Em regra, o l se molha sempre que é seguido de semivogal e vogal (cf. filiu > filho). A palatização, que a princípio só se dava em tal circunstância, generalizou-se depois. No português arcaico, aparece o lhe empregado invariavelmente. Esta invariabilidade ainda permanece na língua atual quando se lhe segue o pronome o, a. Assim, lho, lha, tanto podem representar lhe + o, lhe + a, como lhes + o, lhes + a. (COUTINHO, 1976, p. 255).

No latim, ĭlli era o dativo do demonstrativo ĭlle, que significava “aquele”. Como naquela língua não havia um pronome para a 3ª PESS SING a não ser na forma reflexiva (sui, sibi, se), que, mesmo assim, não possuía nominativo (ALMEIDA, 2000, p. 162), os demonstrativos costumavam ocupar essa lacuna. Inicialmente, is (“este”), ea (“esta”) e id

(“isto”) passaram a se empregar como substitutos da 3ª PESS SING; depois, no latim vulgar,

segundo Coutinho (1976), o demonstrativo ĭlle (“aquele”), ĭlla (“aquela”) e ĭllud (“aquilo”) passaram a ser usados tanto como artigo24, quanto como pronome pessoal. Da forma acusativa de ĭlle surgiram os art. portugueses ĭllum > ĭllu > elo > lo > o25eĭllam > ĭlla > ella > la > a.

22 Fonte do eslavo antigo te ě (que deu em russo, em servo-croata, tobie em polonês etc.) e tave em

lituano. (BEEKES, 1995)

23 No original: “Once a lexeme is conventionalized as a grammatical marker, it tends to undergo erosion; that is,

the phonological substance is likely to be reduced in some way and to become more dependent on surrounding phonetic material”

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A passagem de um demonstrativo significando “aquele” para um artigo não se deu apenas em português e nas

demais línguas românicas (fr. le, ital. il, esp. el, rom. –ul), mas também nas línguas germânicas: do proto- germânico *that “aquele”, surgiu o artigo em inglês (þe > the e that antes de vogais no inglês medieval), em alemão (der, das), em sueco (de, det) etc. (BEEKES, 1995).

25 Na fase arcaica do português, havia outra forma do artigo definido: el, também derivada de ĭllu (ĭllu > ello >

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Da forma nominativa, surgiram os pronomes de 3ª PESS do caso reto: ĭlle > elle > ele e ĭlla > ella > ela. Da forma dativa, como se expôs acima, surgiu lhe.

Tendo sido originado do dativo, lhe tinha apenas a função de OI ou CN, como ainda pregam as gramáticas normativas (CUNHA, 1986, p. 154, 299; TERRA, 1999, p. 121).

Lhe adquiriu o traço [+2ª PESS] ao substituir, na função de OI, as formas de

tratamento que, em geral, são constituídas de expressões formadas por vosso(a) acompanhado de um substantivo abstrato que designa uma qualidade atribuída à pessoa a quem se dirige de forma cerimoniosa, como majestade, alteza, excelência, senhoria, graça, mercê etc. O uso desses tratamentos de cortesia “consistiu em fingir que se dirigia a palavra a um atributo ou qualidade eminente da pessoa de categoria superior, e não a ela própria.” (SAID ALI, 1964, p. 93).

Como a expressão de tratamento é, em geral, uma locução substantiva feminina, pode ser substituída pelo pronome ela e por suas formas oblíquas correspondentes:

Isso pertence a vossa senhoria? → Isso pertence a ela? → Isso lhe pertence? A substituição da expressão de cortesia pela 3ª PESS SING FEM ocorre em alemão

(Sie, “ela”) e em italiano (antes Ella, hoje Lei, “a ela”).

Entre as expressões de tratamento, usava-se, no reino português, vossa mercê26 para se dirigir aos reis de Portugal, durante a dinastia de Borgonha e início da dinastia de Avis. No século XV, quando os soberanos portugueses adotaram o chamamento de alteza (vossa alteza), a expressão passou a usada para tratar as principais figuras do Reino, nas principais casas fora da Família Real, generalizando-se depois como forma de tratamento adotada pelos fidalgos entre si.

Por esse período, ficou o tu restrito apenas às classes burguesas e populares, sendo utilizado na nobreza apenas quando existisse grande grau de intimidade, geralmente intimidade familiar, e de superiores para inferiores (pais para filhos, avós para netos, fidalgos para criados e populares). Os inferiores em dignidade (sobrinhos para tios, criados para patrões etc.) respondiam ao tu com que eram tratados na 3ª PESS ela (como se faz hoje em

alemão e em italiano) ou por vós, ou pelo tratamento correspondente à dignidade reconhecida à pessoa mais importante durante o diálogo (vossa majestade, vossa alteza, etc.).

26 Mercê veio do latim mercedem, ACUS. de merces, “recompensa, salário”, que, no latim vulgar, adquiriu o

sentido de “favor”, “piedade” e, hoje, significa “preço ou recompensa de trabalho”, “paga”; “favor dispensado ou recebido”; “ato de clemência do poder público que favorece um condenado” (FERREIRA, 2010, p. 1376)

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O tratamento por vossa mercê foi, posteriormente, sendo levado para as camadas populares, como forma V, perdendo seu tom cerimonioso ao mesmo tempo em que, pela alta frequência de uso, foi se contraindo: vossa mercê > vossemecê > vosmecê > você.27

Dessa forma, os pronomes oblíquos e os possessivos de 3ª PESS, além de manterem seu uso original, passaram a ser largamente empregados com você e com o(a ) senhor(a), como neste trecho de A Moreninha, de 1844, considerado por alguns como o primeiro romance brasileiro:

– Não, senhor, nada há aqui que exagerado seja: rogo-lhe que por um

instante pense comigo: se o seu sistema é bom, deve ser seguido por todos, e se assim acontecesse, onde iria assentar o sossego das famílias, a paz dos esposos, se

lhe faltava a sua base – a constância?

Augusto guardou silêncio e ela continuou:

– Eu devo crer que o senhor Augusto pensa de maneira absolutamente

diversa daquela pela qual se explicou. Consinta que lhe diga: no seu pretendido sistema, o que há é muita velhacaria; finge não se curvar por muito tempo diante de beleza alguma, para plantar no amor-próprio das moças o desejo de triunfar de sua inconstância. (MACEDO, 2007, p. 43)

Já o uso de lhe como OD deve-se, segundo Monteiro (1994), a motivos vários:

estratégia de fuga ao emprego do clítico acusativo, em fase de frança extinção; manutenção de uma simetria morfossintática com outros pronomes (me, te, se) que funcionam como objetos diretos; ausência da preposição, o que desestabiliza a oposição entre os dois tipos de complemento verbal; recurso para se desfazer a ambiguidade entre as referências à segunda ou à terceira pessoa. (MONTEIRO, 1994, p. 86)

A simetria morfossintática é defendida também por Nascentes (2003), que diz que

Na linguagem corrente, o emprego de lhe dativo se atenuou, usando-se de preferência as expressões a ele, para ele, a você, para você. É a tendência analítica da língua. Eis o primeiro passo para o novo valor. Este pronome desvalorizado, por efeito da analogia [...] foi utilizado para completar uma série, ao lado de me e te. Me e te servem para acusativo [objeto direto] e dativo [objeto indireto]. A lhe, da terceira pessoa, dativo, correspondia o, a, para acusativo. Que fez a língua? Para uniformizar, deu a lhe a função de acusativo e assim ficou: me e te, acusativo e dativo, e lhe, também, acusativo e dativo. (NASCENTES, 2003, p. 447)

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Luft (1995, p. 56) apresenta outras formas resultantes da aglutinação de vossa mercê que foram usadas por escravos ou pelo povo sem escolarização: vossancê, vossuncê, vassuncê e vancê. A expressão também ocorria em outras línguas românicas nas quais também se aglutinou: vossa mercede > vostede (galego), vuestra merced > usted (espanhol padrão), sumercé (espanhol dialetal, dos arredores de Bogotá), vuestra mercé > vusté (aragonês) e vostra mercè > vostè (catalão).

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Para o autor, o emprego de lhe como acusativo (ACUS) não é recente, mas remonta à fase arcaica da língua e se encontra registrado em textos literários e não literários, inclusive em autores consagrados como Machado de Assis e Adolfo Caminha.

Monteiro (1994) diz que o uso do pronome derivado do dativo (DAT) latino ĭlli também é usado como ACUS na variedade não padrão do espanhol, em que o DATle tem sido

usado em lugar do ACUSlo em algumas regiões da fala espanhola.

Sendo assim, lhe (< ĭlli) encontra-se em variação tanto com o DAT te (< tibi) quanto com o ACUSte (< te).

Tendo-se configurado a variação te/lhe, esta pesquisa analisa sua ocorrência em cartas pessoais do século XX escritas por cearenses, procurando identificar qual dessas formas em variação, nas cartas pessoais, é mais recorrente no século XX, quais são seus fatores condicionantes e em que medida os fatores linguísticos condicionam tal variação.