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3 OS PRONOMES PESSOAIS E A TEORIA T-V

3.2 As formas T e as formas V

Na maioria das línguas naturais, existe uma distinção entre o que se chama convencionalmente de pronomes de tratamento polidos e familiares (LYONS, 2011, p. 235) para se referir ao interlocutor.

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O uso dos pronomes pessoais e de outras formas de tratamento revela a influência do fator “poder” nas interações entre as pessoas. Para Lyons (2011, p. 235), o uso não recíproco de certos pronomes (tu e o senhor, por exemplo) indica uma diferença de status reconhecida em muitas sociedades. O autor afirma que em sociedades onde existe o uso não recíproco, uma pessoa socialmente superior, ou mais poderosa de outra maneira, usará tu para seus inferiores, mas será tratada por eles por o senhor.

Tal distinção consiste na chamada Teoria T-V, definida por Brown e Gilman (1960):

O desenvolvimento nas línguas europeias de duas formas de tratamento no singular começa com o latim tu e vos. Em italiano começou com tu e voi (com Lei eventual e amplamente substituindo voi); em francês, tu e vous; em espanhol, tu e vos (depois usted). Em alemão, a distinção começou com du e Ihr, mas Ihr deu lugar a er e depois a Sie. Os falantes de inglês antes usavam thou e ye e depois substituíram ye por you. Como convenção, propomos usar os símbolos T e V (do latim tu e vos) como um designador geral dos pronomes familiar e polido, respectivamente, em qualquer língua. (BROWN; GILMAN, 1960, p. 254 – tradução nossa).16

Os autores argumentam que o uso dessas formas de tratamento norteia-se por dois princípios, o de “poder” e de “solidariedade”. Quanto ao primeiro, comentam:

Pode-se dizer que uma pessoa tem poder sobre outra na medida em que ela é capaz de controlar o comportamento da outra. O poder é um relacionamento entre, no mínimo, duas pessoas e é não recíproco no sentido de que ambos não podem ter poder na mesma área de comportamento. O poder semântico é, de forma semelhante, não recíproco; o superior usa T e é tratado por V. (BROWN; GILMAN, 1960, p. 255 – tradução nossa)17

E sustentam que o poder se baseia em muitos fatores: força física, alto poder aquisitivo, idade avançada, sexo, papel institucionalizado em uma igreja, em uma repartição pública ou privada, nas forças armadas ou no interior de uma família.

16No original: “The European development of two singular pronouns of address begins with Latin tu and vos. In

Italian, they became tu and voi (with Lei eventually largely displacing voi); in French, tu and vous; in Spanish, tú and vos (later usted). In German, the distinction began with du and Ihr but Ihr gave way to er and later to Sie. English speakers first used ‘thou’ and ‘ye’ and later replaced ‘ye’ with ‘you’. As a convenience, we propose to use the symbols T and V (from Latin tu and vos) as a generic designator for a familiar and a polite pronoun in any language.”

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No original: “One person may be said to have power over another in the degree that he is able to control the

behavior of the other. Power is a relationship between at least two persons, and is non-reciprocal in the sense that both cannot have power in the same area of behavior. The power semantic is similarly non-reciprocal, the

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As expressões “forma T” e “forma V” foram introduzidas por Brown e Gilman (1960), com referência às letras iniciais dos pronomes latinos tu e vos. Em latim (ALMEIDA, 2000, p. 137) tu era originalmente o singular, e vos o plural, sem distinção entre honorífico e familiar. O uso do plural, ao abordar o imperador romano, começou no séc. III d.C. segundo Sensini (1999, p. 163), ou no século IV d.C., de acordo com Brown e Gilman (1960, p. 252), os quais apontam como possível razão para o uso de vos para referir-se a uma só pessoa o fato de haver, muitas vezes, dois ou mais imperadores na mesma época, como os Augusti e os Caesares e, posteriormente, governantes separados em Constantinopla e em Roma, mas também o fato de que “a pluralidade é uma metáfora muito antiga e onipresente para o poder” (BROWN e GILMAN. p. 252). Segundo os autores, esse uso foi estendido para outras figuras poderosas, como o Papa Gregório I (590-604). No entanto, Brown e Gilman apontam que foi só entre os séculos 12 e 14 que as normas para o uso das formas T e V foram cristalizadas. Menos comum, a utilização do plural pode ser estendida para outras pessoas gramaticais, tais como o “plural de majestade” e o “plural de modéstia” (CUNHA, 1986, p. 286), em que o pronome nós é usado em vez de eu.

A partir do Renascimento, conforme Sensini (1999, p. 163), por influência dos espanhóis, que dominavam a maior parte da Península Ibérica e da Itálica e que eram muito cerimoniosos, ao plural vos acrescentaram-se títulos honoríficos como “Excelência”, “Senhoria”, “Magnificência” e “Mercê” no tratamento dos socialmente superiores. Como tais expressões são de gênero feminino e número singular, poderiam ser substituídas pelo pron. de 3ª PESS SING FEM(p. ex.: “Vossa Senhoria me faria a honra de ser meu hóspede?” → “Ela me faria a honra de ser meu hóspede?”). Em italiano e em alemão, usam-se como forma V pronomes de 3ª PESS SING FEM, respectivamente, Ella (depois Lei) e Sie, em vez da 2ª PESS PL, como ocorre nas demais línguas com distinção T-V.18 Em espanhol e em português, a forma V usada nos séculos XIX e XX deriva de uma expressão de tratamento na 3ª PESS SING FEM, respectivamente usted (de Vuestra Merced) e você (de Vossa Mercê).

Brown e Gilman argumentam que a escolha da forma T ou V para tratar o interlocutor é regida por dois fatores: “poder” e/ou “solidariedade”, tendo sido o “poder” o

18 Em alemão, a 3ª PESS FEM SING passou a ser usada como forma de distanciamento, porém combinando-se com

o verbo no plural. Segundo Kunkel-Razum et al. (2009), trata-se de uma dupla estratégia de formalidade: o singular (Er, “ele” e Sie, “ela”, sempre com iniciais maiúsculas nesse caso) era usado para se dirigir a alguém socialmente inferior, enquanto o plural (Sie, “eles/elas”) reservava-se aos socialmente superiores. Sie (“ela”), que fazia referência a um atributo do endereçado, em geral um substantivo abstrato feminino, como Wirtin

(“senhoria”), Gnade (“mercê”), passou a ser empregado como substituto dessas expressões de cortesia (Eure

Lordschaft, “Vossa Senhoria”; Eure Exzellenz, “Vossa Excelência”, Eure Gnaden, “Vossa Mercê” etc.), acompanhando verbos no plural, como era o costume ao se dirigir a superiores.

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fator dominante na Europa até o século XX. Por isso, era comum uma pessoa poderosa usar uma forma T com seu interlocutor, esperando ser tratado por este com uma forma V.

No entanto, no século XX, a dinâmica mudou em favor da “solidariedade”, de modo que as pessoas passaram a utilizar formas T para seus conhecidos e formas V em ambientes de trabalho, com o uso recíproco sendo a norma em ambos os casos. Para Lyons (2011, p. 235), o uso não recíproco das formas T ou V (por exemplo, uma pessoa trata outra por T e é tratado por esta por V) tem declinado na maioria das línguas europeias desde o século XIX, “exceto nos casos de adultos e crianças que não são membros da mesma família e em um ou outro caso mais especial”. Para o autor,

Isto se explica historicamente em parte pela propalação de atitudes mais igualitárias ou democráticas nas sociedades ocidentais e, em parte, pela importância crescente do fator solidariedade, marcada não simplesmente pelo uso recíproco como tal, mas mais particularmente pelo uso de T. (LYONS, 2011, p. 235).

As regras para uso das formas T e V ainda são muito variáveis de cultura para cultura. Em francês, por exemplo, a madrasta continua a ser abordada pelo enteado com a forma V vous, enquanto que em alemão, a madrasta sempre recebe a forma T du do enteado (FRIEDRICH, 1966,1972). Em russo, interlocutores podem passar da forma V para a forma T em determinados contextos e voltar a usar V para os mesmos interlocutores noutros contextos. Isso não é possível em uma conversa entre interlocutores alemães. Uma vez que dois interlocutores alemães chegam a se tratar por T, eles não voltam para a forma V depois.

Outro uso dessa distinção que ocorre em algumas línguas é a expressão do “respeito simulado”, que, em geral, é uma forma de expressar desaprovação, evitar que se tome intimidade ou manter distância num momento de tensão, pelo uso da forma V para se dirigir a pessoas com quem normalmente se usaria uma forma T, tais como crianças, filhos, empregados ou cônjuges, situações de que são exemplos (1) e (2) abaixo, extraídos de Soares (2003, p. 21):

(1) Mulher (para o marido): Isso são horas do senhor chegar?

(2) Pai (para o filho): O senhor faça o favor de nunca mais pegar meu carro sem minha ordem.

Em decorrência das mudanças sociais apontadas por Lyons (2011), ocorre que, em algumas línguas, muitas formas pronominais originalmente usadas como V perdem sua conotação de polidez e passam a ser usadas como forma T, ocasionando variação na

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codificação da 2ª PESS e, em muitos casos, mudança linguística através da queda em desuso de um forma pronominal ou de todos os pronomes de um determinado paradigma.

Dois bons exemplos de mudança linguística decorrente das implicações sociais relacionadas à distinção T/V são a substituição do pronome de 2ª PESS SING inglês thou pela 2ª PESS PLyou e a substituição do pronome de 2ª PESS PL português vós pela forma de tratamento vocês (antes uma forma V). Os dois exemplos serão comentados posteriormente, sobretudo o segundo, que é de especial interesse para este trabalho.