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A função sintática do pronome no uso de lhe

5 ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS

5.5 Grupos de fatores não selecionados pelo GoldVarb X

5.5.4 A função sintática do pronome no uso de lhe

Como explicado, tendo sido originado da forma latina ĭlli (DAT de ĭlle), a função original de lhe é o DAT, que, em português corresponde ao OI, nos exemplos (181) e (182), e

ao CN, nos exemplos (183), (184) e (185), regidos pela preposição a ou para (lhe = a/para ele(a), a/para você) com o sentido de destino [(181) e (182)], atribuição [(183)] ou de interesse [(184) e (185)]:

(181) estava esperando o realizamento dos batismos para lhe escrever [C018- 12.6.1953]

(182) Estou lhe enviando 10 camisetas brancas da Hering [C168-30.7.1992] (183) com aquêle entusiasmo que lhe é peculiar [C043-16.7.1971]

(184) Será que em algum momento não lhe fui útil? [C162-30.6.1988] (185) Sou-lhe devedor [C043-16.7.1971]

A forma te, como também já foi explicado, está aqui compreendendo os dois pronomes homônimos: um com função acusativa, proveniente do te latino, o outro com

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função dativa, proveniente do tibi latino (tibi > tii > ti > te)32, os quais apresentam entradas diferentes no dicionário Aurélio (FERREIRA, 2010, p. 2013) e cuja origem é explicada por Coutinho (1976, p. 254) e Mattos e Silva (2006, p. 170). As aparições de te na amostra tanto podem ser como OD (186), OI (187) ou CN (188):

(186) irei te ver logo hoje [C184-12.9.1998]

(187) estou te escrevendo para saber tuas notícias [C178-9.12.1993] (188) com a ausência de quem te era caro. [C151-28.5.1984]

Partindo desse pressuposto, trabalhamos com a hipótese de que lhe, apesar de haver assumido a função de ACUS no PB, antes ocupada por te (forma T) ou o (forma V), continuaria sendo mais usado em sua função original. A análise das 186 cartas revela o seguinte:

Tabela 24: Atuação da função do pronome sobre o uso de lhe

Função Ocorr./Total %

DAT 184/327 56,3

ACUS 61/154 39,6

Nossa hipótese, portanto, confirmou-se: na codificação do dativo para a 2ª PESS,

lhe foi mais usado (56%) do que te (44%), que sempre acumulou também essa função, além do ACUS.

Nas ocorrências de ACUS (150), lhe só aparece 59 vezes (39,3%), prevalecendo a forma te (60.7%), que surge 91 vezes com essa função.

Como o uso do lhe ACUS de 2ª PESS é mais recente do que o do lhe DAT,

verificamos qual das funções, na amostra, predomina no primeiro período analisado, ou seja, nos anos 1940 e 1950 e comparamos com as demais décadas. O resultado foi o seguinte:

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Tabela 25: Funções de lhe em cartas pessoais de 1940 e 2000

Períodos Função ACUS DAT Ocorr./Total % Ocorr./Total % 1940-50 10/38 24,3 28/38 75,7 1960-90 50/206 24,4 156/206 75,6

A tabela revela que não houve, na amostra analisada, mudança na frequência de uso do lhe como DAT ao longo do século XX, que continua sendo mais recorrente como

dativo do que como ACUS.

Apesar de lhe ter substituído o como forma V e adquirido, assim, a função de OD,

ainda encontramos algumas raras ocorrências de o (e de sua variação –lo) nas cartas de nossa amostra. Em duas cartas, o concorre com as formas da variação aqui estudada, como se observa em (189) e (190):

(189) Você não imagina como lhe esperei na agência e como fiquei triste por ver que não vinhas. (...) como desejava vê-lo outra vez. (...) eu andava triste, a razão não sabia por que, não sei se era de tristeza ou se era vontade de te ver. [C058-5.8.1974]

(190) acho até que as outras coisas teriam te chocado (...) eu quero mantê-lo perto de mim. [C178-9.12.1993]

Note-se, no trecho (153), que a remetente usa a forma lo com o verbo ver para referir-se ao destinatário e, mais adiante, usa te com esse mesmo verbo e com a mesma referência, tendo antes usado lhe como OD de outro verbo (esperar) e, também, com a mesma

referência. Ou seja, na função acusativa, as três formas (te, lhe, o) encontram-se em variação nessa carta.

Nas cartas, verificamos o uso de o (-lo) na função de DAT, em vez de lhe, nos trechos (191) e (192), de cartas de 1966 e 1986, respectivamente (com o pronome na forma feminina):

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(191) Em relação a Natália, eu sou sabedor a muito tempo, que você ler as cartas que eu a escrevo [C034-3.8.1966]

(192) Mande-me o endereço da Valentina pois quero escrevê-la. [C156-3.11.1986] O uso de o (-lo) por lhe talvez seja decorrente da perda do traço [+3ª pessoa] que sofreu o pronome lhe no português falado no Brasil (BAGNO, 2013, p. 230). Entretanto, lhe ainda conserva o traço [+3ª PESS] em cartas da década de 40, como comprova o trecho (193):

(193) disse a Dina que quando o Maneco veio de Mossoró que esteve em Lajes e Angico foi em casa della, Dina, mas de uma vez seduzi-la não somente com palavras prostituídas, como agindo, dizendo a Dina que lhe servise de mulher, pois pretendia formicar com ella, dizendo que a esposa era doente e não podia ficar separado de mulher, o que ella rezistiu muito que a última vez que elle a procurou, foi em um estado tão vergonhoso, dizer que ella lhe fizesse isto e ella repreendeu-oi, que não seria falda a seu marido [C002-29.1.1940] O fato de lhe ter migrado da 3ª PESS para a 2ª PESS, associado ao gradual desaparecimento de o, fez com que ele(a) passasse a ser usado na função acusativa. O uso de ele(a) por o(a) é um fenômeno amplamente atestado, tendo sido comentado em Cunha (1986, p. 290), Monteiro (1994, p. 87-8), Moura Neves (2000), Bechara (2003, p. 173-5), Castilho (2012) entre outros, e pode verificado nos trechos (194), (195) e (196), de cartas de 1940, 1953 e 1971, respectivamente:

(194) a mesma irmã viu elle agarrado com uma irmã da mesma natureza delle. [C002-29.1.1940]

(195) eu, logo que saiba o dia que vão, mando éla pra casa do Odiel com antecedência, sim? [C019-14.6.1953]

(196) ...ela banha ele e bota lá na cama da Beta. [C041-19.6.1971]

Dessa forma, podemos esquematizar as mudanças no quadro pronominal do PB

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Figura 2: movimentos dos pronomes de 2ª e 3ª PESS no PB

FONTE: Produção do próprio autor.

O esquema acima mostra que, no PB, havia a dualidade T-V na 2ª PESS do singular

representada, no caso nominativo (SUJ), respectivamente, por tu e você, mas este passou a ser empregado como forma T também, neutralizando a oposição forma/informal entre os dois pronomes.

Como forma V, usavam-se, nos casos ACUS (OD) e DAT (OI/CN) as formas da 3ª

PESS, respectivamente, o e lhe. Este, na língua falada, perdeu o traço [+ 3ª PESS] e passou a ser empregado como ACUS V e, posteriormente, como ACUS T, mantendo-se também como DAT e equiparando-se, morfossintaticamente a te. Porém, te, na verdade, são duas formas homônimas: te1 (ACUS, derivado do te latino) e te2 (DAT, derivado do tibi latino).

Nos exemplos (191) e (192), temos um caso em que o pronome o, em sua forma feminina (l)a, prototipicamente acusativo, foi usado como DAT de 3ª PESS, talvez devido à

perda do traço [+3ª PESS] em lhe – movimento que, no quadro, se aponta com o índice 3. A

lacuna deixada pelo DAT lhe ao perder o traço [+3ª PESS] foi preenchida com ele após as preposições a e para – movimento que, no quadro, se aponta com o índice 4.

O desaparecimento de o como índice de 3ª PESS na língua falada levou ele ser usado como ACUS, substituindo-o – os trechos (194) a (196) exemplifica esse uso nas cartas.

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5.6 Resumo do capítulo

Neste capítulo, realizamos uma análise dos resultados apresentados pelo programa GoldVarb X para os dados colhidos da variação te/lhe numa amostra de 186 cartas escritas por cearenses desde 1940 até 2000.

Antes da realização da análise, havíamos levantado algumas hipóteses, as quais nos fizeram supor um conjunto de fatores linguísticos e extralinguísticos que atuariam favorecendo tal variação. Os resultados apontados pelo programa confirmaram boa parte das hipóteses e negaram outras. Realizamos diversas análises e cruzamentos de dados e tentamos ilustrar os resultados com exemplos extraídos do corpus.

Por se tratar de uma pesquisa com base em material escrito coletado ao acaso, não nos foi possível controlar fatores sociais referentes ao perfil dos remetentes (faixa etária, nível de escolaridade, condição econômica, procedência – zona rural ou urbana – etc.), porém preenchemos essa lacuna com a análise de muitos fatores linguísticos, uma vez que, como a variação mostrou-se ocorrer em nível individual, não apenas em nível global, isto é, no conjunto de cartas analisado, há a possibilidade de que os fatores que a condicionam sejam muito mais linguísticos do que sociais.

De qualquer forma, a análise exposta aqui serviu para mostrar que, não apenas na modalidade falada, como apontam alguns estudiosos (MONTEIRO, 1994, p. 86; BAGNO, 2011, p. 765), mas também na modalidade escrita, a variação te/lhe é bastante frequente e, na amostra analisada, revelou-se estável, numa “relação de contemporização” (TARALLO, 2011, p. 63), em que as formas variantes encontram-se numa coexistência mais ou menos equilibrada: 50,9% de ocorrências de lhe e 49,1% de ocorrências de te, de modo que não se pode, a partir da análise do material coletado, prever se tal variação resultará em mudança linguística ou se permanecerá como tal, o que, segundo Weinreich, Labov e Herzog (2006), seria algo perfeitamente natural, pois a variação faz parte do sistema linguístico, sendo “necessário aprender a ver a língua – seja de um ponto de vista diacrônico ou sincrônico – como um objeto constituído de heterogeneidade ordenada.” (p. 35).

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