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Resultados por gênero da autoria das cartas

5 ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS

5.2 Resultados por gênero da autoria das cartas

Como explicamos anteriormente, devido às dificuldades de montarmos células equilibradas de acordo com as características sociais dos remetentes por se tratar de um corpus constituído de um material acidentalmente disponível, consideramos então as cartas em vez das pessoas. Assim, num total de 186, temos 86 remetentes diferentes, o que equivaleria a, em média, 2 cartas por remetente. Entretanto, há muitos casos de remetentes que só escreveram uma única carta e de remetentes que escreveram nove cartas ao longo das quatro décadas.

Por essa razão, em vez de controlarmos o fator sexo, consideramos a autoria: se a carta foi escrita por homem ou por mulher. Destarte, das 186 cartas, 94 foram escritas por homens e 92 foram escritas por mulheres. A recorrência a qualquer um dos dois pronomes oblíquos átonos com valor de 2ª PESS apareceu mais em cartas de homens (269 ocorrências ou

55,9%) do que em cartas de mulheres (212 ocorrências ou 44,1%), tendo-se recorrido à forma lhe conforme mostra a tabela 4 a seguir:

Tabela 4: Ocorrências de lhe em cartas de homens e de mulheres Gênero

da autoria Ocorr./Total %

masculino 139/269 51,7

feminino 106/212 50,0

Antes de realizarmos nossa pesquisa, presumíamos que, nas cartas de mulheres, lhe seria menos usado como pronome de 2ª PESS, pois, conforme Fisher (1958), as mulheres

tendem a conservar as formas linguísticas, evitando as inovações, como esse uso de lhe, enquanto remetentes do sexo masculino usariam mais lhe como pronome de 2ª PESS, pois os

homens tendem a manifestar um estilo mais independente, sem muito envolvimento com seu interlocutor (TANNEN, 1990), por isso evitam te, que indicaria mais aproximação e intimidade (MONTEIRO, 1994).

Para Labov (2001), em situações de variação estável, os homens usam com maior frequência formas não padrão e as mulheres tendem a preferir formas prestigiadas. Uma inversão dessa tendência pode ser explicada como indicação de que uma nova variante está se implementando na língua: na maior parte das mudanças linguísticas em curso, as mulheres são as que mais utilizam as formas inovadoras, mesmo que essas formas sejam

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desprestigiadas pela sociedade. A esse fenômeno, o sociolinguista chama de “paradoxo do gênero” (gender paradox) e explica que:

(I) Quando se trata de mudanças vindas de cima (changes from above), as mulheres utilizam mais as formas de prestígio do que os homens.

(II) Quando se trata de mudanças vindas de baixo (changes from below), as mulheres são as líderes da mudança linguística, o que significa que quando as mudanças começam, as mulheres são mais rápidas do que os homens ao utilizar a nova variante.

Para Labov, a explicação para isso reside no fato de que a maioria das crianças aprende os rudimentos de sua língua materna com mulheres (mães, babás, professoras de creche e de ensino básico), o que faz com que as mudanças que têm liderança feminina sejam mais rápidas, em detrimento das mudanças comandadas pelos homens.

No caso da variação aqui analisada, que, como vimos na seção anterior, constitui um caso de competição equilibrada, em que há quase não há diferença entre a frequência de ocorrência das duas formas em variação: a diferença no uso das formas variantes por cartas escritas homens e por mulheres foi mínima, tendo a forma lhe sido usada um pouco mais em cartas de homens (0,50) do que em cartas de mulheres (0,49).

Observa-se, em (15), que, na carta de autoria masculina, lhe é preferível a te, embora este ocorra em algumas frases:

(15) Ainda não tinha lhe escrito porque até então não tínhamos certeza da sua rezidência (...) Zeca passo agora contarte algo de alguma couza da minha vida ministerial (...) O Juvito tem lhe escrito? (...) Zeca eu te envio esta minha fotografia, que terei quando estava no Pará; pesava 75 Kilos. (...) Iracema vai lhe escrever algumas cousas (...) todos nós lhe saudamos em nome do Senhor Jesus. [C002-5.10.1940]

Já em (16), numa carta de autoria masculina de 1966, o uso de lhe é categórico:

(16) Hontem tive a honra, de receber a sua missiva de 25 do p. p. aqual com prazer respondo-lhe (...) o que houve foi falta de concideração, e de espírito cristão, em lhe julgarem (...) se a igreja em Fortaleza, lhe chama-se para pastoria-la (...) A sua querida irmã Ernestina lhe espera (...) para lhe dar um abraço, que amuitos anos deseja (...) e lhe oferecer uma feijoada. (...) Desculpe em ter lhe tomado o tempo. [C034-3.8.1966]

O mesmo se dá em (17), carta da década de 1980, também de autoria masculina:

(17) quero lhe falar de um assunto (...) quero lhe dizer que não quero que esta carta venha trazer inimizade entre nós dois (...) quero lhe dizer que ando um tanto preocupado (...) Já lhe fiz algum mal? (...) Será que em algum momento não lhe fui útil? (...) Será que no futuro também não posso lhe servir em alguma coisa? (...) Gostaria de lhe assegurar que sou candidato (...) e queria lhe pedir como irmão o seu apoio (...) Mas gostaria também de lhe propor um pacto (...) peço-lhe uma coisa (...) Eu até lhe sujeria uma coisa muito importante (...) Eu lhe asseguro que não falarei mal de você, ok? (...) Será que isso não lhe serviu ao menos de favor? (...) Lembro novamente a você a sujestão que lhe faço. [C162-30.6.1988]

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Os trechos (16) e (17) são de remetentes que mantêm com seus respectivos destinatários uma relação simétrica: o da carta C034 é de um pastor, acima de 50 anos, para outro pastor, cunhado seu. O assunto gira em torno de assuntos relacionados ao trabalho pastoral, mas a carta finaliza num tom de informalidade, mesmo assim lhe prevalece. Já a carta C162 é de candidato a vereador para seu irmão, que manifestou opiniões desfavoráveis à candidatura; por isso, predomina um tom de distanciamento, favorecendo o uso de lhe.

Nas cartas de autoria feminina de nossa amostra, por sua vez, ocorre com mais frequência te do que lhe, como mostram trechos de uma carta da década de 1940 em (18), da década de 1970 (19) e da década de 1990 (20):

(18) Zéca a muito que te escrevo e não me respondes. (...) Esperamos a resposta desta, para poder te remeter uns retratos. (...) Os meus filhos te pedem a bençam. [C004-11.11.1943]

(19) mais vou te explicar (...) queria já te escrever da Bahia (...) tem tanta coisa pra te contar (...) Ezequias pede que ao te escrever mandasse um abraço (...) Minhas cunhadas gostaram tanto da senhora e te acharam bonita (...) te mandam abraços [C088-9.10.1978]

(20) estou te escrevendo para saber tuas notícias (...) é a terceira carta que te escrevo (...) acho até que as outras teriam te chocado (...) porque te quero bem (...) vou te falar que já estou de férias (...) Vou te dizer só mais outra coisa [C178-9.12.1993]

Casos contrários também são verificados na amostra. Em (21), te é preferido na carta de autoria masculina e, em (22), lhe na carta de autoria feminina:

(21) Espero que esta te encontre com saúde e que a mesma te faça sentir-se um pouco mais feliz (...) Querida eu ti peço desculpas por não ter ido mas em casa (...) teu esposo, que não te esquece. [C038-19.1.1970]

(22) eu lhe quero como você realmente é e não como queres ser (...) e depois mandarei lhe dizer ok? (...) Na próxima carta mandarei lhe dizer uma coisa muito importante (...) Mais um grande beijo daquela que não te esquece e que te admira [C059-9.8.1974]

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A análise da amostra comprovou nossa hipótese, embora a diferença entre o uso de lhe em cartas de homens e em cartas de mulheres não seja realmente significativa, como mostram os pesos relativos da tabela 4. Conclui-se, portanto, que, na amostra analisada, a variação te/lhe não é determinada pelo gênero da autoria da carta, pois houve um equilíbrio quase perfeito entre os gêneros: lhe ocorreu em cartas de homens com uma diferença de apenas 0.01 a mais que em cartas de mulheres.

Vejamos, agora, como se deu a realização da variação te/lhe por remetente.