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2 APROPRIAÇÃO DA COMMEDIA DELL’ARTE NA FORMAÇÃO DO

2.1 Estabelecendo relações

2.1.2 A Commedia dell‟arte – histórico e apropriações

Aproximar a Commedia dell‟arte da Educação Infantil foi uma possibilidade de unir uma pesquisa que desenvolvo desde minha graduação com minhas inquietações acerca da formação de professores para o trabalho teatral. Como professor, ator e dançarino vejo no trabalho com elementos da Commedia dell‟arte contribuições e possibilidades de exploração do trabalho corporal, artístico, criativo, teatral e pedagógico.

Ao trabalhar com os “tipos”, por exemplo, busco a exploração de corporeidades distintas, de corpos grotescos, a fuga dos estereótipos, a quebra dos habitus corporais e ampliação das possibilidades expressivas, uma vez que cada “tipo” carrega consigo uma maneira de portar-se, uma qualidade de movimento específica. Os Enamorados são leves, por exemplo, quase bailarinos, o Doutor é pesado, Arlequim saltitante, Polichinelo é uma dorminhoco, os Zanni26 são quase animais, carregados de instintos, de fome, enfim, essas características serão melhor apresentadas no decorrer do texto.

26 O Zanni é o

único “tipo” que não possui uma tradução exata para a língua portuguesa, derivado do nome Giovanni, representa o cidadão comum, ou vários personagens servos geralmente agricultores de Bérgamo (como Arlequim). Arlequim, Briguela, Polichinelo seriam derivações da máscara do Zanni que ganharam máscaras e características próprias.

Enquanto exploração dos “tipos” vejo também a possibilidade de gerar discussões acerca das fronteiras entre a realidade social e a realidade ficcional; como cada um desses “tipos” pode ser atualizado e repensado em um outro contexto, dado que o “tipo”, diferente do estereótipo que é uma figura caricata e “chapada”, carrega consigo um contexto.

Patrice Pavis defende que os estereótipos são

[...] personagens muito tipificadas, expressões verbais em forma de clichê, gestualidade sem invenção, estrutura dramática e desenrolar da ação sujeito a um modelo fixo [...] falam ou agem de acordo com um esquema previamente conhecido ou extremamente repetitivo [...] sua ação é mecânica, são considerados como que um retrato-robô (PAVIS, 2003, p. 144).

Quando da presença de um estereótipo em cena, o público presume suas atitudes durante a peça, dado que esses estereótipos estão presentes no imaginário comum; não há profundidade em sua construção cênica, podem ser adjetivados como superficiais.

O tipo, observadas também as palavras de Pavis,

[...] difere um pouco do estereótipo; o tipo não tem a banalidade, nem a superficialidade, nem o caráter repetitivo. O tipo representa se não um indivíduo, pelo menos um papel característico de um estado [...] se ele não é individualizado, possui pelo menos alguns traços humanos e historicamente comprovados (PAVIS, 2003, p. 410). As ações de um tipo não são presumidas pelo público, e, apesar dele possuir traços externos marcantes, percebe-se uma maior espessura psicológica. O tipo possui um vínculo maior com as tradições históricas – tanto das manifestações artísticas quanto da sociedade.

O trabalho com a Commedia dell‟arte oferece elementos para a ampliação da expressividade, oferece possibilidades de discutir questões do cotidiano, uma vez que ela própria se apropriava de tais questões para conduzir suas narrativas “improvisadas”. Ela dispõe de conteúdos importantes para se compreender o fazer teatral, o jogo cênico, a exploração do universo lúdico, exploração da improvisação, da preparação corporal, de múltiplas linguagens, uma vez que se utiliza da dança, da música, etc.

Outro elemento que me atrai, diz respeito ao conteúdo popular que a Commedia dell‟arte carrega consigo, um conteúdo que dialoga diretamente com o público, que se utiliza dele, de suas histórias, dos seus “tipos”. Por esses elementos destacados, vejo na Commedia dell‟arte, ou na ressignificação e atualização de seus elementos, a possibilidade de servir como material de referência na formação teatral de professores, atores, dançarinos, etc.

Farei uma breve contextualização da Commedia dell‟arte para que se possa compreender melhor o contexto no qual ela se desenvolveu, bem como compreender as possíveis pontes entre essa manifestação teatral italiana e os elementos que destaquei anteriormente como apropriações realizadas nessa pesquisa.

Surgida na Itália no começo do século XVI, inicialmente representava “não mais que uma delimitação em face do teatro literário culto” (BERTHOLD, 2003, p. 353). Dario Fo (2004) defende a idéia de que a palavra “arte” empregada no termo significava ofício, ou seja, os atores de tal Commedia eram, no sentido original da palavra, artesãos de sua arte, a do teatro, e que, portanto, não era apenas um teatro que vinha se opor ao teatro literário, mas sim, uma manifestação teatral na qual os atores eram profissionais da arte, “(...) com apurado adestramento técnico, mímico, vocal, acrobático e cultural, necessário para um aprimoramento cada vez maior da representação improvisada” (ARAGÃO, 1983, p. 57). Não há dúvida de que se tratava de uma forma profissional de teatro, uma vez que se organizava em companhias e, em alguns casos, essas possuíam uma espécie de diretor, capocomico, que organizava as apresentações.

Não se sabe ao certo quais são as origens da Commedia dell‟arte. Pavis (2005) discute a dificuldade em identificar-se as origens remotas de tal arte, que poderia ser descendente das farsas atelanas romanas ou do mimo antigo. Maria Lúcia de Aragão afirma o seguinte: “parece-nos, na verdade, que a Commedia dell‟arte foi uma adaptação, para o teatro popular, da comédia erudita italiana, tendo substituído a planejada elaboração de peças escritas pela improvisação, desenvolta e livre, dos atores” (ARAGÃO, 1983, p. 58).

Segundo Pavis, “a Commedia dell‟arte se caracterizava pela criação coletiva dos atores, que elaboravam um espetáculo improvisando gestual ou verbalmente a partir de um canovaccio (roteiro) muito sumário” (PAVIS, 2005, p. 61). Sem textos dramáticos tradicionais, uma dúzia de tipos fixos representam as cenas:

Enamorados, Pantaleão, Doutor, Capitão, Arlequim, Polichinelo, Briguela, entre outros.

Os temas utilizados nas improvisações surgiam geralmente de situações do cotidiano da região na qual a trupe se instalava, assim como os “tipos” representavam componentes da sociedade italiana da época, como bem retrata Roberta Barni:

As máscaras e as personagens da Commedia dell‟arte representam

e satirizam as principais componentes da sociedade italiana da época, e os diversos dialetos ou falas principais com expressões dialetais refletem essa “atualidade” que há de ter sido central para o efeito cômico junto ao público (BARNI, 2003, p. 22).

No período do Renascimento27 a Commedia dell‟arte se desenvolveu e ganhou espaço no território italiano e europeu, compondo suas apresentações a partir de temáticas locais e de truques e situações previamente ensaiadas. Deslocando-se de cidade em cidade sobre carroças, a Commedia dell‟arte ganhou fama, reconhecimento e espaço no panorama artístico da época do Renascimento e na História do Teatro.

Como repertório, os atores desenvolviam roteiros cômicos individuais, chamados lazzi, os quais podiam ser executados quando solicitados, especialmente para provocar o riso. Quadros cita o exemplo de um artista fingir tropeçar e levar um balde d‟água na cabeça durante a saída de cena (QUADROS, p. 04).

No que diz respeito à descrição dos personagens da Commedia dell‟arte, neste trabalho optei por apresentá-los conforme as características descritas por Claudia Contin em seu livro Gli Abitanti di Arlecchinia, uma vez que tal livro é resultado da pesquisa da Scuola Sperimentale dell‟attore e a mesma constitui-se como uma das principais fontes de estudo a que me dedico. Segue, portanto, uma descrição (CONTIN, 2000, p. 44 a 152, tradução nossa):

Zanni – é uma das máscaras mais antigas. É a figura base do “servo”, do “homem trabalhador”, a partir da qual, mais tarde, derivarão servos famosos como Arlequim e Briguela. São máscaras baseadas nos cidadãos de Bérgamo, têm baixa estatura e corpo “arraigado” à terra. Sua função originária é de agricultor, passando

27 Aproximadamente entre fins do século XIII e meados do século XVII, período de transição entre a Idade Média e a Era Moderna, caracterizado pelo fim do feudalismo e da dominação da ideologia religiosa cristã.

a carregador e a outros serviços pesados. Outra característica é a pobreza crônica, representada não somente por suas vestimentas descuidadas e esfarrapadas, mas também e principalmente por seu apetite.

Pantaleão – representa o mercador veneziano. É avarento e um senhor não nobre, isto é, sua origem é popular. Pantaleão é muito velho e “maduro”. Para evocar um forte arquétipo de velhice, não basta imaginar para Pantaleão uma idade de noventa ou noventa e cinco anos, devemos imaginar uma idade de pelo menos duzentos e noventa e cinco anos, que lhe pesa sobre os ossos. Apesar disso, daria saltos mortais por uma única moeda. Magro, geralmente baixo e com uma corcunda que faz seu corpo pender para frente, Pantaleão está sempre apaixonado pelas jovens e belas mulheres. Por causa disto, está sempre empenhado em escrever sonetos para todas as mulheres da companhia.

Doutor Balanzone – é o outro velho da Commedia dell‟arte, máscara bolonhesa muito famosa. É tão velho quanto Pantaleão, mas possui um modo completamente diferente de “portar” seus anos. Doutor é um arquétipo da velhice florida e jovial. É a pessoa mais gorda, maior, mais larga, mais sufocante que se possa imaginar. Com a coluna que o faz pender para trás e uma enorme barriga, representa a clássica figura do professor que conhece todas as ciências e todas as disciplinas.

Arlequim – é um personagem complexo porque não possui somente características humanas ou grotesco-humanas, mas conserva também aspectos animais, de fantoches, de diabos ou de servos do diabo em pessoa. Originário de Bérgamo, é um inigualável romântico, se enamora sempre com o coração aberto, sua alegria é contagiante. Arlequim vive descansando, se pudesse não fazer nada nunca, ele seria muito feliz, pois odeia o trabalho. A fome é seu maior mal.

Briguela – é um servo não muito jovem e muito maduro. Ao contrário de Arlequim, Briguela sente necessidade de trabalhar, está sempre atarefado. É um grande cozinheiro ou, às vezes, um camareiro. Sofre de dores no pé de tanto caminhar para todos os lados servindo seus patrões e cumprindo suas tarefas. É um personagem um pouco trágico, dramático e sofredor, o que gera a comicidade deste personagem.

Polichinelo – é um zanni do sul, é um verdadeiro “faz nada”. É um tipo de “maestro da dança”, ou “mestre de cerimônia”, uma existência que se alterna entre vigília e sono. São características desta máscara as posturas nas quais ele aparece

dormindo, ora de pé, ora sentado, ora encostado em algo, às vezes em equilíbrio sobre uma perna só, às vezes acocorado.

Enamorados – a característica fundamental dos Enamorados é a de possuírem um grande senso de galanteio, seja na forma de portar-se como na de comportar-se. Pode-se imaginar que desde a infância a família os fez praticar danças da corte e balé, para serem refinados em sua postura. Não portam máscara, de modo que a brancura de sua pele natural os diferencie dos outros personagens mundanos. Podem se apresentar como grandes sofredores pelo amor que sentem, ou muito inflados devido a tal amor, mas indiscutivelmente o amor é o que os move.

Capitão – a figura do Capitão é aquela de um indivíduo de grande eloquência, constantemente empenhado e interessado em seus méritos, disserta sobre seus feitos na tentativa de incutir temor e admiração nas pessoas. Apresenta-se e se auto descreve como o ser mais corajoso, mais forte, mais belo, mais invencível, mais temível do mundo. Na verdade, o Capitão é um grande covarde, um “coelho” que tem medo de tudo, teme até mesmo sua sombra. É uma das poucas máscaras “duplas”: muito do riso provocado pelo Capitão depende justamente da repentina passagem do ator de uma característica a outra.

Serva – são poucos os tipos femininos na Commedia dell‟arte. O caráter da Serva funda-se em exuberância desinibida e cheia de feminilidade. Todos os tipos de servas – da jovem fantasiosa, à brava, à esperta alcoviteira – são reconhecidas por uma base comum, um tipo fixo, uma máscara física de base. Ela não porta máscara de couro e se especializa na função de “atrair o público”: sempre no limite da decência que a época impõe, mas com toda arte possível, de modo a chamar constantemente a atenção.

Cortesã – neste tipo buscou-se reunir em uma base comum várias figuras femininas encontradas na história da Commedia dell‟arte, como a Cantora, a Dançarina, a Cigana. Contracena com todos os personagens masculinos, é amiga dos servos, vive em confronto com o Capitão, engana os ricos, como Pantaleão. Possui características físicas da Serva e da Enamorada e transita entre esses dois pólos – o que gera a comicidade desta máscara.

Os dez “tipos” apresentados constituem as principais máscaras ou tipos- físicos pesquisados e reconstituídos pela Scuola Sperimentale dell‟attore. Sobre eles, ressalta Claudia Contin:

Entre as Máscaras que experimentamos da Commedia dell‟arte,

podemos encontrar muitos exemplos e muitas variações do mesmo Tipo. Cada um dos dez Tipos descritos pode ser considerado como um arquétipo base para a criação e para a reconstrução de outras diversas Máscaras e Personagens (CONTIN, 2000, p. 157, tradução nossa).

No processo de construção do “tipo”, um elemento que se faz fundamental é a compreensão da importância da máscara que representa o mesmo; a utilização daquela em relação ao corpo e à gestualidade que segue. Por meio de um estudo apurado, Dario Fo disserta sobre o uso da máscara, assim como sobre outros tantos elementos que caracterizam a Commedia dell‟arte. Seu livro Manual Mínimo do Ator traz uma pesquisa sobre os elementos do teatro popular e em especial da Commedia dell‟arte. Para ele, embora a máscara não seja o elemento mais importante, “(...) é, sem dúvida, o mais vistoso e evidente” (FO, 2004, p. 31) e, portanto, carregado de significado para quem a vê.

Na Commedia dell‟arte, a máscara integra um autêntico código que diz respeito à caracterização dos personagens que passam a ser imediatamente reconhecidos pelo público. A máscara está tão intrínseca à realização do espetáculo que os “tipos” da Commedia são chamados também de máscaras.

Compreender e recriar justamente essas características que compõem os personagens da Commedia dell‟arte é o desafio e a pesquisa da Scuola Sperimentale dell‟attore. Contin esclarece:

Este tipo de teatro não se baseia exclusivamente sobre máscaras e sobre costumes que a tradição nos deixa como herança, mas também sobre um trabalho do ator sobre o seu corpo, o seu movimento e sua “deformação”. O ator deve estar disposto a “redesenhar” o seu corpo segundo posturas, movimentos e comportamentos não naturais, fortemente marcados pela deformação antropológica e arquetípica que provêm de pelo menos cinco séculos de seleção e estilização teatral dos complexos comportamentos humanos (CONTIN, 2000, p. 25, tradução nossa). O trabalho sobre a apropriação e experimentação das características físicas dos “tipos” da Commedia dell‟arte é o meio pelo qual busco ampliar o repertório corporal e expressivo do ator, no caso dessa pesquisa, professor da Educação Infantil. As diferentes posturas, humores, relações estabelecidas entre os corpos, a

discussão das várias faces de um mesmo “tipo”, o contexto que eles carregam, as possibilidades de identificá-los e transpô-los a outros contextos é uma das contribuições que vejo tanto para se perceber possibilidades criativas com esse material artístico (a Commedia dell‟arte), quanto com a formação pessoal, artística e estética desses professores.