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Professor da Educação Infantil como ampliador do capital cultural da criança

1.1 Educação Infantil X Teoria bourdieusiana

1.1.3 Professor da Educação Infantil como ampliador do capital cultural da criança

pois a ascensão social não lhes é necessária, uma vez que já ocupam as posições superiores da sociedade.

1.1.3 Professor da Educação Infantil como ampliador do capital cultural da criança

Aproximações, afastamentos, esforços ou recusas a determinados conteúdos, também ocorrem no universo da educação artística. A arte possui códigos, estruturas, conceitos, que só podem ser compreendidas por meio da construção dos signos de cada linguagem, em muitos casos, não ocorrida no universo familiar.

Fazendo uma analogia entre a compreensão artística e a leitura, numa apropriação das palavras de Jean-Marie Goulemot, o qual afirma que “qualquer leitura é uma leitura comparativa, contato do livro com outros livros [...] ler será, portanto, fazer emergir a biblioteca vivida, quer dizer, a memória de leituras anteriores e dados culturais” (GOULEMOT, 2001, p. 112 e 113) concluo, portanto, que uma criança só poderá se apropriar dos conteúdos de determinada manifestação artística se possuir os códigos específicos para lê-la.

Saindo do universo da literatura e pensando mais especificamente no universo do teatro, somente a aquisição de códigos, de referências, o contato com espetáculos de teatro e a compreensão de sua estrutura, fará com que o espectador (seja ele uma criança ou um adulto) consiga “ler” outros espetáculos, comparar “leituras” e criar sentido para o que vê.

[...] diversos modos de narrativa coabitam no mesmo espaço cultural e social. A posse dos códigos que os regem permite a leitura. [...] Essa acumulação se constitui no próprio movimento histórico e cultural, mas em um momento dado, em uma sociedade definida, permite, segundo sua riqueza ou pobreza, a hierarquização cultural. O grau de cultura compara-se à polivalência dos códigos narrativos, podendo ser colocado em jogo no ato de ler (GOULEMOT, 2001, p. 113 e 114).

O sentido e a importância que a criança dará ao fazer ou apreciar um espetáculo de teatro (seja na infância ou no seu futuro como adulto) dependerá, em grande parte, do exterior cultural, do maior ou menor contato e da qualidade deste

contato com a educação teatral, do repertório de códigos, da compreensão da estrutura do jogo e da cena. Esse conhecimento adquirido estará presente em cada nova experiência de fazer ou fruir, “[...] todo o saber anterior – saber fixado, institucionalizado, saber móvel, vestígios e migalhas – trabalha o texto oferecido à decifração. [...] A Biblioteca cultural serve tanto para escrever quanto para ler” (GOULEMOT, 2001, p. 115).

A cultura à qual se está exposto, estabelece a formação do olhar do indivíduo para a interpretação das situações, manifestações e relações que ocorrem ao seu redor. Conteúdos, signos, códigos são acentuados, questionados ou reproduzidos de acordo com a cultura vigente, que nunca está isolada, ela pertence a uma construção que é ao mesmo tempo cultural e social.

Uma vez que a criação artística esta imbuída de ideologias, valores, visões, dos diversos grupos e classes da sociedade, a obra resultante representa ou discute essa realidade e talvez outras realidades possíveis. A arte pode ser um meio de questionar os padrões impostos pela sociedade, desde que o professor esteja consciente da maneira como lida com esse universo, buscando a não reprodução de hábitos, de maneiras de fazer teatro (por exemplo); desde que o professor esteja aberto ao diálogo com as realidades com as quais está trabalhando e se interesse em compreender os códigos específicos da prática que está realizando.

Retomando algumas idéias de Bourdieu, percebo a necessidade do professor e da escola de ampliarem o capital cultural de seus estudantes:

[...] somente uma instituição cuja função específica fosse transmitir ao maior número possível de pessoas, pelo aprendizado e pelo exercício, as atitudes que fazem o homem “culto”, poderia compensar (pelo menos parcialmente) as desvantagens daqueles que não encontram em seu meio familiar a incitação à prática cultural (BOURDIEU, 1998, p. 61).

Bourdieu afirma ainda que é necessário

[...] obrigar e autorizar a instituição escolar a desempenhar a função que lhe cabe, de fato e de direito, ou seja, a de desenvolver em todos os membros da sociedade, sem distinção, a aptidão para as práticas culturais que a sociedade considera como as mais nobres. (BOURDIEU, 1998, p. 62).

Os sistemas simbólicos sustentados pela sociedade e pela escola, ao traduzirem simbolicamente e de forma irreconhecível as hierarquias sociais, contribuem para legitimar e justificar tais hierarquias. As diferenças de poder passam a ser percebidas apenas como diferenças de conhecimento, de inteligência, de competência, de estilo, ou, simplesmente, de cultura.

É, pois, uma das funções da escola, buscar reconhecer e quebrar as estruturas de dominação e a diferenciação de classe no acesso ao conhecimento. Afastar-se da idéia de “dom natural” e de “níveis de inteligência” como premissas para o desenvolvimento intelectual e artístico das crianças.

Para tanto, faz-se necessária uma série de mudanças na estrutura educacional, eixos de ensino que reconheçam as diferenças de capital cultural e trabalhem com as mesmas, que aproximem o conhecimento escolar do cotidiano. Num sentido mais poético, o sistema de ensino deveria iniciar um trabalho de “escuta”, de “abertura” a novas propostas. Não acredito que seja fácil tal reestruturação, mas a mesma tem de ser posta em discussão de forma consciente e democrática.

Observando as palavras de Nogueira e Nogueira acerca da tomada de consciência de como se dá o processo educacional tem-se que:

[...] ao sublinhar que a cultura escolar está intimamente associada à cultura dominante, a teoria de Bourdieu abre caminho para uma análise crítica do currículo, dos métodos pedagógicos e da avaliação escolar (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2006. p. 94).

Sérgio Farias afirma que, ainda que as escolas sejam aparelhos ideológicos, elas “[...] podem se configurar como pólo cultural, certamente com suas contradições, presentes em toda organização social. [...] elas se constituem numa rede pronta para a efetivação de políticas culturais de dinamização e fruição da criação artística” (FARIAS, 2008, p. 27). E complementa,

[...] ainda é na escola pública que a população menos contemplada com os bens econômicos, materiais e culturais pode encontrar referências significativas. Isso não exclui a necessidade de sempre buscar-se aperfeiçoamento organizacional e curricular. A inclusão da arte é sem dúvida um dos fatores importantes nesse aperfeiçoamento (FARIAS, 2008, p. 27).

Ressalto que, no início de sua carreira, Bourdieu anteviu uma possível solução para os alunos socialmente desfavorecidos, um processo denominado “racionalização da pedagogia”, que acreditou ser utópico com o passar do tempo e não voltou a escrever sobre o assunto, tal processo pode ser definido da seguinte maneira:

[...] uma pedagogia racional e universal, que, partindo do zero e não considerando como dado o que apenas alguns herdaram, se obrigaria em tudo em favor de todos e se organizaria metodicamente em referência ao fim explícito de dar a todos os meios de adquirir aquilo que não é dado, sob a aparência do dom natural, senão às crianças das classes privilegiadas (BOURDIEU apud NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2006, p. 101).

Acredito que não seja utópico pensar em uma pedagogia que busque equilibrar os conhecimentos dos sujeitos com os conhecimentos “universais”, criar zonas de aproximação das realidades socialmente distintas, sobretudo em universos menores como o da Educação Infantil. Vejo que é uma ação de que tem de ser implementada na base do desenvolvimento do ser, na sua infância, pois, aos poucos, o processo iniciado em tal base poderá se perpetuar nos estágios educacionais seguintes.

As ideias de Bourdieu tornam-se contemporâneas na medida em que são percebidas as novas configurações que se formam acerca da constituição de sujeitos com múltiplas referências (família, escola, mídia, etc.). Segundo Maria da Graça Setton, os sujeitos estão hoje subordinados a “[...] instâncias socializadoras que coexistem numa relação tensa de interdependência” (SETTON, 2002, p. 68). Surge, para autora, um conceito de habitus como produto das relações dialéticas entre uma exterioridade e uma interioridade, derivada das múltiplas relações entre os indivíduos e as várias referências encontradas na sociedade.

Bourdieu retrata possibilidades existentes do rompimento de certos habitus, como por exemplo, se um indivíduo é posto em outro campo8. Uma mudança de

país ou um contato profundo com uma nova cultura, exige uma adaptação de seu

8O conceito de campo pertence ao corpo teórico da obra de Bourdieu. “Para ele, a sociedade é composta por vários campos, vários espaços dotados de relativa autonomia, mas regidos por regras próprias. Sempre que determinado habitus é posto em contato com especificidades de determinado campo, ele sofre as adaptações necessárias a permanência nesse campo” (SETTON, 2002, p. 64 e 65).

habitus a esse novo campo. “Os ajustamentos que são incessantemente impostos pelas necessidades de adaptação às situações novas e imprevistas podem determinar transformações duráveis do habitus” (BOURDIEU, 1983, p. 106).

Penso, portanto, que as cristalizações encontradas no sistema de ensino podem ser alteradas desde que se busque um olhar distanciado e atento aos conteúdos, às “maneiras de fazer”, aos pré-conceitos relativos aos conteúdos advindos do seio familiar, às formas de “avaliar” e conceber a formação do cidadão, principalmente de um cidadão sensível às produções e manifestações artísticas. E o professor de Educação Infantil pode ser um agente que busque reconhecer essa diferenciação de classe e de conteúdos e gerar ações que ampliem o capital cultural de suas crianças.

Vejo como necessário refletir sobre o modo como o ensino de artes pode estimular a imaginação das crianças e construir um conhecimento sensível e sólido que tais crianças utilizem nas suas vidas posteriormente, ainda que exerçam as mais diferentes profissões.

No que diz respeito ao universo escolar, acredito que parte dos conhecimentos trabalhados pela escola são epistemologicamente importantes e faz- se necessário o estudos dos mesmos, não sendo, pois, todos esses conteúdos apenas afirmadores da dominação cultural.

Acredito, ainda, ser necessária uma discussão profunda e profícua sobre os conteúdos trabalhos pela escola, bem como, uma escolha consciente de tais conteúdos por professores observadores da realidade social, que busquem um diálogo entre o conhecimento teórico e a realidade concreta.

E em um âmbito mais específico, que é o da Educação Infantil, no qual o indivíduo está em processo de assimilação de um determinado habitus ainda não formado e formatado, o campo ou meio de interação constituído pelo professor, pelo auxiliar de ensino, pela estrutura organizacional da unidade educativa, bem como pelos órgãos maiores que regem o pensamento da instituição (diretorias de ensino, secretarias de educação, gerências, etc.), influenciarão de forma definitiva a formação do olhar e a maneira pela qual a criança irá se relacionar com a escola e com a cultura.

Observando o habitus pelo viés de incessante interação com o meio, há de se pensar na renovação do indivíduo social,

[...] pensar o habitus do indivíduo moderno sendo forjado pela interação de distintos ambientes, em uma configuração longe de oferecer padrões de conduta fechados [...] abre-se espaço para se pensar a constituição da identidade social do indivíduo moderno a partir de um habitus híbrido, construído não apenas como expressão de um sentido prático incorporado e posto em prática de maneira “automática”, mas uma memória em ação e construção (SETTON, 2002, p. 66).

Ao perceber a sociedade e o indivíduo em constante relação e sujeitos a constantes transformações, vejo a possibilidade de abertura para novas experiências estéticas que possam ampliar os capitais culturais, elevar as expectativas escolares, instruir, construir conhecimentos advindos das mais diversas fontes e múltiplas manifestações culturais de nosso povo, dentre elas, o teatro, como manifestação lúdica e espaço de experimentação dos potenciais criativos, tanto do adulto quanto da criança.

1.2 Do espaço potencial à criação do jogo na criança

A criança está inserida, desde o seu nascimento, num contexto social e seus comportamentos estão impregnados por essa imersão inevitável. [...] A brincadeira é um processo de relações interindividuais, portanto de cultura. É preciso partir dos elementos que ela vai encontrar em seu ambiente imediato, em parte estruturado por seu meio, para se adaptar às suas capacidades. A brincadeira pressupõe uma aprendizagem social. Aprende-

se a brincar. [...] A criança pequena é iniciada na brincadeira por pessoas que cuidam dela [...]. Gilles Brougère9

Para refletir sobre a importância do desenvolvimento lúdico da criança, colocada nesta reflexão como uma das principais funções atribuídas ao professor de Educação Infantil, traçarei uma linha de pensamento que parte da visão do jogo como manifestação arquetípica, ressaltada por Johan Huizinga (1872 – 1945), chegando aos conceitos de objeto transicional e espaço potencial formulados por Donald Winnicott (1896 – 1971), para se compreender o lugar do brincar e da experiência cultural na vida da criança e do futuro adulto. Debruçar-me-ei com mais profundidade na teoria winnicottiana, uma vez que, encontro grande ressonância da

teoria desse autor com o objetivo fim deste trabalho, dado que penso o professor de Educação Infantil como estimulador da ampliação desse espaço potencial existente na criança.

Finalizarei esta parte da escrita utilizando-me da visão de Jean-Pierre Ryngaert, que aproveitando a noção de espaço potencial proposta por Winnicott, põe o jogo como um elemento formador de um novo homem e uma nova sociedade. Autores como Ingrid Koudela, Maria Lúcia Pupo, Vera Bertoni dos Santos, Gilles Brougère, Ricardo Japiassu e Luciana Ostetto também servirão de apoio para a discussão do conceito de jogo, das possibilidades de transposição desse conceito ao universo da Educação Infantil e da formação de professores ao trabalho teatral.

Vejo o educador como essa pessoa-chave para mediar os caminhos da criança no mundo simbólico da cultura. E neste caminhar, traçado essencialmente no percurso da experiência – que é entrega, troca, disposição em se colocar no lugar do outro para compreendê-lo, reconhecê-lo e apoiar suas buscas e escolhas –, o professor movimenta-se por universos criadores e universos criados – na ciência e na arte, uma e outra, marcas do humano (OSTETTO, 2010, p. 73).