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Jogo e Sociedade, fenômenos transicionais e espaço potencial

1.1 Educação Infantil X Teoria bourdieusiana

1.2.1 Jogo e Sociedade, fenômenos transicionais e espaço potencial

O ser humano joga desde sempre, como afirma Huizinga (2007). O jogo é liberdade e invenção, no qual fantasia e disciplina atuam dialeticamente. O objetivo de Huizinga de estudar o jogo como forma específica de atividade, como “forma significante”, como “função social”, procura considerar o jogo a partir do que fazem os próprios jogadores, ou seja, nas suas significações mais originais e naquilo que se manifesta no jogador.

Gilles Brougère afirma que “[...] os jogos não são puras expressões de princípios lúdicos, mas [...] são cada vez mais a representação de um aspecto da vida social, pelo menos quando não se referem a um universo imaginário” (BROUGÈRE, 1995, p. 12).

Para os autores citados, o jogo é visto como uma manifestação social. Desde o início da sociedade humana, as grandes atividades arquetípicas foram marcadas pelo jogo. Mesmo não sendo a estética do jogo objeto de seu estudo, Huizinga

percebe que o jogo tem tendência a assumir acentuados elementos de beleza, uma vez que a vivacidade e a graça estão originalmente unidas às formas mais elementares do jogo e, neste, a beleza do corpo em movimento atinge seu ponto culminante.

Huizinga conceitua jogo da seguinte maneira:

[...] é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e alegria e de uma consciência de ser diferente da vida cotidiana (HUIZINGA, 2007, p. 33).

Huizinga vê o jogo como elemento da cultura humana, aliás, ele propõe que o jogo é anterior à cultura, visto que essa pressupõe a existência da sociedade humana, enquanto os jogos são praticados mesmo por animais; “[...] a existência do jogo não está ligada a qualquer grau determinado de civilização ou a qualquer concepção do universo” (HUIZINGA, 2007, p.32).

Esse autor destaca certas características essenciais do jogo, descritas da seguinte forma:

[...] uma atividade livre, conscientemente tomada como „não-séria‟ e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo certa ordem e certas regras (HUIZINGA, 2007, p. 16).

Pensando sobre as características levantas por Huizinga, faço algumas reflexões. No que diz respeito à primeira delas “uma atividade livre”, pensando que o jogo é próprio da liberdade e da inventividade, o jogo não deveria ser imposto pela necessidade física ou pela obrigação moral, assim como, não ser constituído de tarefa, ele está ligado a noções de obrigação e dever somente quando é constituído por uma função cultural reconhecida (jogos competitivos, por exemplo).

Na segunda característica, “exterior à vida habitual”, parece que o jogo trata de sair da vida real para uma esfera temporária de atividade, escolhendo a própria orientação. Como um “faz-de-conta” da existência de outra realidade. Esse fazer de

conta não impede que o jogo seja realizado com seriedade e com entusiasmo. Todo jogo é capaz, a qualquer momento, de absorver inteiramente o jogador.

No universo infantil a possibilidade de acesso ao jogo é mais fácil, o “faz-de- conta”, os jogos de tabuleiro, as brincadeiras cantadas e tantos outros, são facilmente acessados por essa faixa etaria, uma vez que, encontram-se na filosofia de grande parte dos espaços destinados ao desenvolvimento infantil (creches, escolas, centros comunitários). Para o adulto, o ato de jogar, quando manifesto, em geral, restringe-se aos jogos esportivos ou de azar; não há um desenvolvimento de jogos de estímulo à imaginação e à ludicidade e, consequentemente, verifica-se a perda deste lado sensível e criativo nos adultos.

Na proposta de formação de professores, que serve de base para as discussões levantas nesta investigação e que será mais bem retratada nos capítulos seguintes, percebo uma ponte com as palavras de Huizinga acerca do jogo para os adultos e, devido a este fato, acho propício expor essa observação neste momento.

Conforme Huizinga, para o adulto, o jogo “[...] só se torna uma necessidade urgente na medida em que o prazer por ele provocado o transforma numa necessidade” (2007, p. 11). Percebi, no processo prático desenvolvido com as professoras de Educação Infantil, que o estímulo à prática de jogos teatrais a partir de elementos da Commedia dell‟arte, fez com que, cada vez mais, houvesse um desejo por repeti-los e melhor desenvolver tal prática.

O prazer proporcionado pelos jogos, a liberdade de expressão de sentimentos, desejos, gestos etc., tornou-se necessidade, fazendo com que explorassem cada vez mais seus limites, estimulando-nos à construção de um espetáculo que foi apresentado para as crianças como resultado do processo de formação.

Pergunto-me então: como se pode potencializar o espaço destinado ao jogo na criança e, consequentemente, no futuro adulto que ela se tornará? Que espaço o jogo ocupa no universo infantil? Qual a relação do jogo com as brincadeiras de infância? Como os pais, professores e instituições de ensino veem a importância (ou não veem) do desenvolvimento lúdico da criança? Como o professor de Educação Infantil pode proporcionar às crianças vivências que ampliem seu domínio sobre o mundo simbólico? Uma vez que

[...] a criança, como o homem adulto, não se contenta em se relacionar com o mundo real, com os objetos; ela deve dominar os mediadores indispensáveis que são as representações, as imagens, os símbolos ou significados. A cultura na qual ela está inserida, mais do que real, é composta de tais representações (BROUGÈRE, 1995, p. 40).

Donald Winnicott, pediatra e psicanalista, em seu livro O Brincar e a Realidade (1975), faz um apanhado teórico-prático do que vem a ser, ao seu entender, a noção de “brincar”, apontando essa como uma experiência real e genuína de criação e produção conjunta de sentidos.

Para que se compreenda, entretanto, a noção de brincar proposta por Winnicott, bem como sua importância enquanto promotora das primeiras experiências simbólicas na criança, as quais se desenvolverão a ponto de criarem um espaço para a experiência cultural – e nessa se insere o teatro enquanto experiência cultural, criativa e simbólica – cabe uma observação detalhada do processo pelo qual, segundo esse autor, a criança poderá chegar a imergir no universo da cultura, processo esse que deve ser acompanhado por um adulto que estimule a construção do mesmo.

Se a criança passar grande parte de sua infância numa instituição de ensino, será o seu professor o responsável por estimular as experiências simbólicas e criativas da mesma. Por conta da afirmação anterior, vejo a importância dessa discussão nessa pesquisa que aborda a formação do professor para o universo teatral e busca instrumentalizá-lo para a promoção de experiências sensíveis com suas crianças.

Para Winnicott a criança nasce indefesa, com um conjunto desorganizado de pulsões, instintos, capacidades perceptivas e motoras e percebe de maneira desorganizada os diferentes estímulos provenientes do exterior. Conforme a criança progride em seu desenvolvimento, tais conjuntos vão se integrando até que o ser alcance uma imagem unificada de si e do mundo externo. O papel da mãe é então o de prover ao bebê um ego auxiliar que lhe permita integrar suas sensações corporais, os estímulos ambientais e suas capacidades motoras nascentes.

Quando nasce, o bebê não consegue se distinguir do universo da mãe, ele acredita que sejam um só e que tudo ao seu redor faz parte de si. Na medida em que percebe a separação do corpo da mãe, o bebê tem a perda do sentimento de

continuidade da existência e as experiências de separação entre ele e a mãe lhe causam sofrimento. Esse sofrimento obriga-o a lidar com a dor inventando formas de lidar com a mesma.

Winnicott observou que, nesse processo, o bebê encontra objetos que simbolizam a presença da mãe e por isso são capazes de restaurar o sentimento de continuidade de existência, necessário ao processo de constituir-se como uma unidade coesa. A esses objetos simbólicos, Winnicott chamou “objetos transicionais”, porque eles têm uma função fundamental, porém temporária. Assim, pelo objeto que o próprio bebê escolhe para simbolizar a mãe, ele vai constituindo- se como unidade separada, reconhecendo-se como sujeito ao mesmo tempo em que não perde, pela separação, o sentimento de continuidade de existência.

O objeto transicional é algo que não está nem dentro nem fora da criança; servirá para que o sujeito possa experimentar seus próprios limites mentais em relação ao externo e ao interno, demarcando-os. O objeto transicional, segundo Winnicott, está situado em uma zona intermediária, na qual a criança se exercita na experimentação com objetos, e, ainda que estejam fora, sente-os como parte de si mesma.

Verificando as palavras de Winnicott percebe-se a delimitação que o autor buscou dar com a introdução desse termo:

Introduzi os termos „objetos transicionais‟ e „fenômenos transicionais‟10 para designar a área intermediária de experiência, entre o polegar e o ursinho, entre o erotismo oral e a verdadeira relação de objeto, entre a atividade criativa primária e a projeção do que já foi introjetado, entre o desconhecimento primário de dívida e o reconhecimento desta („Diga: “bigado”‟). Por essa definição, o balbucio do bebê e o modo como a criança mais velha entoa um repertório de canções e melodias enquanto se prepara para dormir, incidem na área intermediária enquanto fenômenos transicionais, juntamente com o uso que é dado aos objetos [...] (WINNICOTT, 1975, p. 14).

É perceptível que, além do objeto físico utilizado como elemento demarcador do espaço do eu e do não-eu, Winnicott considera outras possibilidades para a

10Cabe ressaltar que Winnicott não estabelece uma distinção entre objetos e fenômenos transicionais, o que torna possível entender esses dois termos como equivalentes, pois o importante não é o objeto em si, tal como o ursinho de pelúcia, mas sim o uso feito da primeira possessão não-eu, a qual pode ser tanto uma música quanto um ursinho.

criação de um espaço intermediário entre a criança e o mundo, cita como exemplo, a expressão musical, as cantigas de ninar, compreendidas como fenômenos transicionais que exercem a mesma função do objeto transicional.

À medida que a criança cresce e desenvolve sua capacidade de adaptação ao mundo e compreensão do universo ao seu redor, ela passa por experiências de ligação e afastamento do objeto transicional. Essas experiências deixam em cada sujeito uma marca: fica na mente do indivíduo um espaço que, assim como o objeto transicional, é intermediário entre o interno e o externo. Segundo Winnicott, é nesse espaço que se produz muitas das atividades criativas do homem, como as artes, a música, o teatro, os jogos, etc. Esse espaço conecta o mundo interior com o exterior. Winnicott afirma que “[...] ao observarmos o uso, pela criança, de um objeto transicional, a primeira possessão não-eu, estamos assistindo tanto ao primeiro uso do símbolo pela criança quanto à primeira experiência da brincadeira” (1975, p. 134). Qual a importância para o professor de Educação Infantil em compreender o espaço ocupado pela brincadeira no processo de desenvolvimento infantil?

A experiência com os objetos transicionais situa-se, como já mencionado, numa “terceira área”, que fica entre o interior e o exterior e é o local da criação, da ilusão, ou ainda o “espaço potencial” (termo criado pelo autor, para definir este espaço); espaço este ressaltado por Perla Klautau e Octavio Souza:

[...] o espaço potencial vai sendo constituído na medida em que a criança gradualmente vai experimentando a falta dos cuidados maternos. Neste momento, mãe-bebê que formavam o conjunto ambiente-indivíduo vão se separando: por um lado a criança vai experimentando a falta dos cuidados maternos, por outro a mãe vai se deparando com a capacidade adquirida pelo bebê de suportar sua ausência e, assim, um espaço de intersecção entre eles vai se instalando (KLAUTAU; SOUZA, 2003, p. 05-06).

Winnicott parece identificar com essa terceira área o próprio processo de subjetivação. “O termo objeto transicional abre campo ao processo de tornar-se capaz de aceitar a diferença e similaridade” (1975, p. 19) o real e o imaginário, pois esse objeto transicional funciona como visibilidade de um jogo de forças ativas e reativas que se dá na dimensão invisível. Essa experiência está intimamente ligada à construção da capacidade de simbolização, presente na arte, e, nesse ponto, o

professor compreendendo como se dá esse desenvolvimento, poderá explorar esse espaço de criação que interessa ao processo pedagógico e ao teatro.

É nessa continuidade/contiguidade transicional, entre o interno e o externo do bebê, a reivindicação winnicottiana por uma terceira esfera da existência humana, além do dualismo de “realidades”: o intermediário da experimentação “[...] para a qual contribuem tanto a realidade interna quanto a externa [...] área intermediária entre o subjetivo e aquilo que é objetivamente percebido” (1975, p. 15). Esse é um lugar de repouso, em que os limites interno/externo relaxam e sonho e realidade se entrelaçam, aliviando a angústia das realidades postas. É um universo livre de contestações, berço da fantasia e da criatividade.

Se for verdade que o objeto transicional e os fenômenos transicionais encontram-se na própria base do simbolismo, acho então que podemos com justiça reivindicar que esses fenômenos assinalam a origem de uma espécie de terceira área de existência [...] esta terceira área poderia revelar ser a vida cultural do indivíduo [...] realmente encontramos uma terceira área, uma área do viver que corresponde aos fenômenos transicionais do bebê e, na realidade, deles deriva (WINNICOTT, 1994, p. 47).

Desde a formulação dos conceitos de objetos e/ou fenômenos transicionais o autor procura caracterizar o lugar onde se dá o processo de emergência simultânea do sujeito e do mundo entendido como ambiente cultural compartilhado. Esse espaço, identificado literalmente como um “espaço potencial” para a criação, é um terreno de jogo, de fronteiras indeterminadas, que está fortemente relacionado com o processo pelo qual a criança lida com seus sentimentos e constrói sua relação com o outro e com o espaço, onde pode vivenciar seus impulsos criativos e construir conhecimento sensível.

Esse lugar é o espaço, ao mesmo tempo psíquico e real, no qual uma atividade – a brincadeira, o jogo sem regras – pode produzir-se, caso as condições sejam favoráveis. O jogo sem regras não tem nenhum objetivo e não se define no registro pulsional da relação de objeto. O brincar é visto por Winnicott como uma atividade constitutiva de uma determinada espécie de espaço e tempo psíquicos, que posteriormente, no desenvolvimento psíquico da criança, será o lugar da experiência cultural.

É no espaço potencial que o sujeito pode completar o processo de construção de seu eu (self). À medida que interage com o outro – a mãe, primeiramente; mais tarde, o professor, o amigo, o terapeuta – pode entrar em contato com diversas subjetividades através de manifestações culturais como o teatro, a música, o texto, o diálogo, enfim, a presença humana que o enriquece e complementa.

Neste universo de aquisição de valores e experiências sensíveis, a criança se depara com as formações institucionais; são obrigadas, pela necessidade dos pais muitas vezes, a deixarem todos os dias seus lares, seu universo familiar para frequentarem creches, por exemplo.

No espaço da creche, o professor que estará em contato direto com essa criança (ou talvez ainda um bebê) tem de ater-se ao fato de que há um universo psíquico em construção. Os objetos que trazem de casa para “brincarem” e dos quais não querem se desapegar, ao menos momentaneamente, são necessários ao processo de afastamento da mãe.

As experiências de contato com o universo sensível e interno da criança promovidas pelo professor, seja através de cantigas de ninar, cantigas para comer, para abraçar o colega, contação de histórias, brincadeiras expressivas com tecidos, fantasias, maquiagens, estarão auxiliando essas crianças na construção de um espaço potencial profícuo ao desenvolvimento da necessidade de um contato posterior e contínuo com o universo artístico.

Refletindo sobre a teoria winnicottiana em consonância com o laboratório prático que desenvolvi paralelamente a esta reflexão teórica, percebo o quanto este espaço potencial para a criação é importante para a prática artística. Consigo delinear as facilidades ou dificuldades que determinado adulto (neste caso, professoras da Educação Infantil) possuiu de acessar suas pulsões criativas, de transitar entre a proposta racional de um exercício e as possibilidades de desenvolvimento sensível que ela pode causar em seus corpos dependendo de sua entrega, e tal entrega está intimamente relacionada ao seu maior ou menor contato com o universo artístico, com suas experiências anteriores.

Acredito que o professor que trabalha com artes poderia auxiliar a criança no processo de criação de um espaço onde as potencialidades possam ser realizadas e, ao mesmo tempo, perceber em que estado se encontra este espaço em si mesmo (professor). Acredito que um conhecimento só pode de fato ser compartilhado com

outrem quando ele tem reverberação no corpo de quem o propõe, quando ele tem significado pra quem o ministra.

Este espaço potencial é o espaço de brincar, de criar e também de despertar para a vida. Essa terceira área, que Winnicott identifica como espaço das ilusões necessárias, está “entre a criatividade primária e a percepção objetiva baseada no teste da realidade” (1975, p. 26).

[...] essa área intermediária de experiência, incontestada quanto a pertencer à realidade interna ou externa (compartilhada), constitui a parte maior da experiência do bebê e, através da vida, é conservada na experimentação intensa que diz respeito às artes, à religião, ao viver imaginativo e ao trabalho científico criador (WINNICOTT, 1975, p. 30).

É interessante observar que essa área de substância ilusória é o espaço onde nasce a atividade criativa – que é uma passagem (transição) para a realidade externa. É a área onde a experiência cultural se realiza criando os “fenômenos transicionais” (arte, filosofia e religião). É, portanto, o espaço no qual o adulto encontrará alívio da tensão que nasce da necessidade de “[...] aceitação da realidade que nunca é completada, e que nenhum ser humano está livre da tensão de se relacionar com a realidade interna e externa” (WINNICOTT, 1975, p.28-29).

Acrescento que este espaço pode variar substancialmente de uma criança a outra dependendo das experiências vividas pelo bebê em relação à figura materna e às demais figuras que seguirão a mãe no processo de maturação do eu. Cabe, então, ao professor, propor vivências que ampliem e estimulem este espaço criativo e percebo que propostas lúdicas, como a fruição e o fazer teatral, podem contribuir na efetivação desse espaço de experiência cultural.

O lúdico é um instrumento que permite a inserção da criança na cultura e através do qual se pode permear suas vivências internas com a realidade externa. É um facilitador para a interação com o meio, embora, devido à falta de repertório do professor, experimentos e propostas lúdicas podem ser pouco exploradas e vistas como desnecessárias.

A teoria winnicottiana inclui a crença de que viver criativamente constitui um estado saudável do humano. A criatividade ou a ausência dela constituem possibilidades de viver que podem ser claramente contrastadas. Na inacessibilidade

(ou melhor, no acesso ineficaz) da terceira esfera de realidade – a criação – o indivíduo se “perde” numa imersão excessiva na realidade psíquica interna, ou numa relação apenas com realidade externa, sem perceber seus potencias criativos interiores. E é na criatividade da brincadeira, que o indivíduo (criança ou adulto) é plenamente livre, podendo ser sua personalidade integral, podendo colocar em diálogo sonho e realidade. É nessa interlocução que ele descobre seu “eu”.

Partindo da premissa de que “o natural é brincar” (WINNICOTT, 1975, p. 63), vejo a necessidade de que o professor observe o processo pelo qual as crianças naturalmente brincam e expanda esse processo natural a um espaço lúdico de experienciação e fruição artísticas.

A partir do ponto de apoio encontrado pela criança nas coisas do mundo, que um ambiente afetivamente favorável permite, Winnicott estabelece a característica que distingue a experiência cultural da fantasia consciente ou inconsciente, enquanto realidade apenas “interna”. A cultura não é devaneio, ela tem sua origem no jogo e, ao contrário do devaneio, brincar é fazer coisas em algum lugar e isto leva tempo.

Percebo que, dependendo do olhar que o professor der ao brincar, da proposta que ele efetuar a partir de jogos teatrais, exploração de objetos, descoberta das expressividades corporais, etc. ele pode, no ambiente da brincadeira, ampliar a valorização das competências individuais, a autonomia, a independência e ao mesmo tempo, a percepção do que é fazer parte do coletivo, sentir-se pertencendo a um grupo, compartilhar experiências humanas. Fazer a criança perceber que é no equilíbrio dessas posições que se caminha rumo ao desenvolvimento e à aprendizagem.

Cabe ao professor observar o “[...] brincar como uma experiência, sempre uma experiência criativa, uma experiência na continuidade espaço-tempo, uma forma básica de viver” (WINNICOTT, 1975, p. 75). A criatividade, que implica levar em conta o ambiente, é a condição de possibilidade da experiência de ser: sentimento de estar vivo, de existir de maneira viva, de construir um universo de