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3 A TRUPE DA ALEGRIA E SUAS REVERBERAÇÕES

3.2 Avaliações

3.2.1 Pelo olhar das professoras-artistas

Uma semana após a última apresentação, realizamos um encontro no qual propus que as professoras respondessem a um questionário elaborado a partir de elementos trabalhados ao longo de todo o processo. O questionário consistia em sete questões de múltipla escolha com quatro alternativas cada, sendo que as professoras deveriam enumerar de 1 a 4 cada uma das alternativas de acordo com sua percepção do significado ou grau de importância que cada um dos aspectos relacionados teve no processo, o número 1 seria o aspecto considerado mais relevantes e o número 4, o menos relevante.

Após enumerar, deveriam justificar as alternativas que julgassem mais significativa e menos significativa. Buscando, por meio dessa avaliação, unir aspectos objetivos e subjetivos do processo desenvolvido, bem como para que as participantes da pesquisa pudessem ter uma visão ampla de todos os aspectos trabalhados ao longo do processo.

Construí o questionário propondo, nas primeiras alternativas de cada questão, trazer um conteúdo que fosse de caráter mais pessoal, na segunda alternativa um conteúdo que refletisse sobre questões do coletivo, da relação com o outro, na terceira alternativa uma questão mais relacionada com a linguagem teatral e na última questão, buscar uma ponte com o universo da Educação Infantil. Durante a análise verificarei quais desses quatro aspectos foram melhor desenvolvidos ou percebidos durante o processo47.

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CABRAL, B. A. V. Avaliação em teatro: implicações, problemas e possibilidade. In: Revista Sala

Preta. São Paulo: ECA-USP, 2002. p. 214.

Enquanto pesquisador, percebo nesse modelo de questionário uma ferramenta útil para verificar quais aspectos foram melhor assimilados pelos participantes e as prováveis falhas do percurso para eventuais correções e dosagens de conteúdos e metodologias em futuras experiências.

Esse modelo de avaliação foi baseado na experiência de avaliação de recepção mediante aplicação de questionários, realizada por Beatriz Cabral e Dan Olsen, no projeto “Teatro em Trânsito” (realizado entre os anos de 2001 e 2004).48

Tratando desse modelo de avaliação Cabral e Olsen afirmam que

Em primeiro lugar, o questionário representa um instrumento eficaz para envolver todos os participantes na análise da experiência [...] Em segundo lugar, o questionário inclui a dimensão pedagógica de explicitar aos participantes a estrutura e os objetivos do projeto [...] Em terceiro lugar, ficou visível a contribuição deste tipo de pesquisa quantitativa para um olhar distanciado do pesquisador em relação ao objeto pesquisado (CABRAL; OLSEN, 2005, p. 122-123).

Em outro texto Cabral (2008) cita a utilização do questionário de avaliação em outros contextos e situações diversas como: mostras de Teatro Educação, espetáculos de grupos profissionais, disciplinas de graduação, laboratórios experimentais, oficinas. Segundo a autora:

Em todas estas experiências a ampliação do entendimento dos participantes sobre o trabalho que acabaram de realizar foi considerada mais importante do que o resultado da pesquisa. As situações em que os questionários foram construídos em parceria (pesquisador e monitor, ou pesquisador e outros professores envolvidos na realização de um curso ou oficina) potencializaram o planejamento das atividades, a identificação de objetivos e a explicitação de procedimentos (CABRAL, 2008, p. 45).

Acerca da recepção como ferramenta pedagógica, Cabral afirma que as teorias de Hans-Robert Jauss e de Wolfgang Iser (ambas desenvolvidas na segunda metade do século XX, na Alemanha) possuem pontos interessantes para o desenvolvimento de uma reflexão. Jauss considera que o entendimento de uma obra

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Para melhor compreensão do projeto “Teatro em Trânsito” consultar: CABRAL, B. A. V.; OLSEN, D. Investigando a recepção em um projeto de teatro na comunidade. In: Urdimento – Revista de

de arte resulta da confluência de três momentos: compreensão, interpretação e aplicação e estes três momentos correspondem a três estágios: produção, recepção e comunicação, implicando um relacionamento dinâmico entre autor, texto e receptor.

No que diz respeito à contribuição de Jauss, Cabral e Olsen afirmam que: [...] a análise da recepção, em etapa anterior à comunicação, permite examinar aspectos comuns ao horizonte de expectativas dos participantes, facilitando assim uma possível contribuição do professor ao processo de aquisição de conhecimento dos alunos (CABRAL; OLSEN, 2005, p. 125).

No que diz respeito à contribuição de Iser, ainda segundo Cabral e Olsen, esta estaria direcionada principalmente ao papel do professor na introdução do texto, tema ou situação a serem explorados em grupo. Para Iser, o trabalho de criação tem dois pólos: o artístico (o texto) e o estético (a realização do texto pelo leitor), consequentente, a obra de arte que dele decorre, não é idêntica ao texto nem à sua realização pelo leitor – ela se situa no meio das duas. “Não pode ser idêntica porque cada texto tem uma parte não escrita, os vazios do texto (os „gaps‟) que precisam ser preenchidos pelo leitor. São estes vazios que permitem as diferentes leituras de uma obra” (CABRAL; OLSEN, p. 125).

Aliar o horizonte de expectativas (ou a quebra de tais horizontes) dos participantes de uma pesquisa, buscando discuti-los após o processo, à descoberta de como cada participante preencheu os “vazios do texto”, por ele encontrados ao longo de tal processo, são questões postas à reflexão quando da leitura e interpretação dos questionários que propõem tanto a avaliação de aspectos quantitativos, por meio da análise estatística dos dados, quando qualitativos, por meio da visão subjetiva da cada participante.

Segue a análise dos questionários respondidos pelas participantes dessa pesquisa:

Questão A:

Sobre o processo de formação, as professoras consideraram a relevância dos aspectos explorados da seguinte maneira:

Alternativas Mais relevante Menos relevante Trabalhos de expressão corporal 10 (72%) 01 (07%)

Trabalho com os “tipos” 01 (07%) 02 (14%)

Jogos de improvisação 01 (07%) 03 (21%)

Experiência de apresentar 02 (14%) 08 (58%)

Tabela 4 – Processo de Formação

A maior parte das professoras considerou o trabalho de expressão corporal como o mais importante do processo. Talvez pela ausência desse tipo de prática em suas vidas, pela carência de propostas que possibilitem um contato com sua pessoalidade, uma vez que as formações, em sua maioria, estão voltadas a aquisição de conhecimentos teóricos e não se ocupam de lançar um olhar às necessidades pessoais desses professores, à ampliação de seu repertório expressivo, fornecer-lhes ferramentas que possam ser vivenciadas e não somente discutidas teoricamente. Elas relatam a conscientização de que o trabalho pré- expressivo, de desenvolvimento corporal, foi a base para os trabalhos posteriores.

A experiência de apresentar foi considerada menos importante por conta de que, segundo elas, a apresentação foi o resultado do processo e que, ainda que tenha sido prazeroso apresentar, o processo foi mais importante, pois, por meio da assimilação de cada etapa conseguiram construir um produto final.

Transcrevo algumas justificativas acerca dessa questão:

“Trabalhar a nossa expressão corporal no teatro, amplia nossa percepção sobre

nosso corpo, nossos desafios e possibilidades”.

“A expressão corporal retira o gesso das ações robotizadas, tradicionais no trabalho com o teatro que normalmente fazemos com as crianças”.

“Me ajudou com movimentos que há muitos anos não realizava, e também com minha timidez”.

Questão B:

Aspectos mais significativos dentro do processo de desenvolvimento da expressividade.

Alternativas Mais relevante Menos relevante

Prática de exercícios físicos 00 10 (72%)

Aprofundamento das relações 01 (07%) 02 (14%)

Ampliação de repertório artístico 10 (72%) 00

Ferramentas para trabalhar com as crianças 03 (21%) 02 (14%)

Tabela 5 – Desenvolvimento da Expressividade

A prática corporal aparece como importante no processo, mas não a prática física em si, como demonstra os dados no qual este aspecto foi considerado menos importante, mas o desenvolvimento corporal e expressivo ligado ao fazer teatral, a ampliação de repertório artístico.

Há um aprendizado no que diz respeito à percepção da expressão corporal enquanto linguagem, enquanto ferramenta de auto-conhecimento, de exploração dos limites, das possibilidades criativas a partir de um trabalho focado no desenvolvimento expressivo.

Algumas justificativas:

“Deu elementos para desenvolver e conhecer os tipos e ampliar minha expressão corporal”.

“[...] a prática dos exercícios propostos nas aulas forneceu elementos de autoconhecimento corporal, percebendo até onde poderia explorar meus movimentos e ações e pensar como transformar essas coisas em comunicação corporal”.

“Através dos exercícios foi se apresentando novas formas de utilizar o corpo como forma de linguagem”.

Questão C:

O trabalho com o Corpo Neutro favoreceu a compreensão de quais aspectos:

Alternativas Mais relevante Menos relevante

Consciência corporal 03 (22%) 03 (22%)

Limpeza dos movimentos 02 (14%) 02 (14%)

Foco, precisão e presença 06 (42%) 00

Criação de Performances 03 (22%) 09 (64%)

Tabela 6 – Trabalho com o Corpo Neutro

Nessa questão houve uma divergência de opiniões acerca do elemento mais relevante, mas de um modo geral, todas percebem a importância de se trabalhar a limpeza do corpo para que possam utilizá-lo de forma mais precisa e focada em cena.

No que diz respeito ao aspecto menos relevante, algumas professoras relatam que não saberiam como trabalhar isso com as crianças e outras relatam que isso será uma consequência do trabalho, que neste momento, o ganho ainda é pessoal e que, processando esse conhecimento, com certeza poderão transpo-lo as suas práticas.

Justificativas:

“[...] através desses exercícios começamos a perceber a presença do outro, do corpo, do ambiente”.

“[..] o corpo neutro possibilitou aperfeiçoar os movimentos do corpo, a expressão corporal e focar nossa atenção para os movimentos”.

“[...] muito importante pois através deles pudemos perceber a importância de cada gesto, atos, falas na apresentação para as crianças”.

Questão D:

O trabalho com as Ações Referenciais teve maior relevância para:

Alternativas Mais relevante Menos relevante

Ampliação de repertório corporal 02 (14%) 06 (43%) Criação de experimentos cênicos coletivos 03 (22%) 02 (14%)

Criação de personagens 07 (50%) 01 (07%)

Trabalhar as ações com as crianças 02 (14%) 05 (36%)

Tabela 7 – Trabalho com as Ações Referenciais

Metade do grupo vê no trabalho com as ações referenciais a possibilidade de utilizá-las como estímulo para a criação de personagens, ainda que as outras alternativas também sejam bastante relevantes. Dado esse fato, o grupo percebe o potencial criativo do trabalho com as ações referenciais não as vendo apenas como ampliadoras do repertório corporal, mas enquanto elemento estimulador de processos criativos. Mais uma vez, boa parte o grupo não vê as possibilidades de trabalhar esse conteúdo diretamente com as crianças, pelo menos nesse momento.

Algumas justificativas:

“Transpor as ações referenciais para construir personagens, isto é fundamental vivenciar como processo de criação. E todos esses elementos são fundamentais para que nossa ação pedagógica se amplie a ponto e conseguir trabalhar ações referenciais e construção de personagens com as crianças”.

“[...] penso que estou mais preparada para coordenar outros trabalhos. E gostaria de poder estudar mais esses movimentos”.

Questão E:

Maior contribuição da investigação dos “tipos” da Commedia dell‟arte.

Alternativas Mais relevante Menos relevante

Preparação corporal 00 03 (22%)

Experimentar “tipos” distintos e suas relações 05 (35%) 02 (14%)

Uso de máscaras 01 (07%) 06 (42%)

Resignificar os “tipos” no contexto da Ed. Infantil

08 (58%) 03 (22%)

Tabela 8 – Investigação dos “Tipos”

A exploração corporal e de possibilidades expressivas e criativas é apontado como mais importante que o uso das máscaras. Segundo algumas professoras, nem todos os personagens usavam máscaras e por conta do tempo de trabalho, não pudemos explorar a fundo a questão da máscara (objeto), por isso verifico a menor relevância ser apontada ao uso das máscaras.

O grande ganho é ter conseguido explorar ressignificações com os “tipos” e com as relações que se estabelecem entre eles e, mais ainda, no ambiente de uma creche, podendo explorar temáticas do cotidiano das professoras e das crianças, causar identificações e reflexões, perceber o quanto esses “tipos” são carregados de significados universais.

Justificativas:

“Trazer os tipos para a realidade da Educação Infantil foi espetacular, principalmente por ser reconhecido pelas crianças e professores – identificação”.

“Os variados personagens que conhecemos, as criações e novas invenções que fizemos foram importantes para nos ajudar a despertar este lado criativo com as crianças. Ao conhecer tipos distintos, associamos e fazemos comparações com os diferentes”.

Questão F:

Quanto ao trabalho com jogos de improvisação.

Alternativas Mais relevante Menos relevante

Ampliação de sua capacidade de improvisar 06 (43%) 03 (22%) Improvisação de cenas coletivamente 02 (14%) 02 (14%) Criação de cenas a partir dos “tipos” 02 (14%) 05 (35%) Trabalhar improvisações com as crianças 04 (29%) 04 (29%)

Tabela 9 – Jogos de Improvisação

Nessa questão, referente à improvisação, não há um consenso. A maioria percebe no trabalho com a improvisação a ampliação da capacidade individual de lidar com situações inesperadas, outras percebem na improvisação possibilidades de lidar com o aspecto lúdico presente de forma natural nas crianças, ponto este que para outras é menos relevante nesse processo. A improvisação com os “tipos” também aparece como menos relevante, talvez porque não percebam que sempre que era feito um aquecimento com os “tipos”, uma exploração de vozes e relações, estava se desenvolvendo um processo improvisacional e que todos os roteiros de cena foram criados a partir da improvisação com os “tipos”; não encontrei em suas respostas subsídios para discutir a escolha dessa alternativa como menos relevante.

Algumas justificativas:

“Foi fatal, pois precisei destes elementos „improvisação‟ para os vários momentos de apresentação”.

“Aprender a improvisar em qualquer situação dá, sem dúvida, subsídios para trabalhar com as crianças no sentido de ampliar o repertório criativo delas”.

“[...] trouxeram elementos para lidar com situações inesperadas”. “[...] realmente esse ponto foi decisório para a vida!”

Questão G:

Quanto ao processo de encenação.

Alternativas Mais relevante Menos relevante

Experiência artística pessoal 01 (07%) 06 (43%)

Processo de construção coletiva 05 (36%) 01 (07%)

Possibilidade de circular 01 (07%) 07 (50%)

Exploração da temática da Ed. Infantil 07 (50%) 00

Tabela 10 – Processo de Encenação

No que diz respeito à experiência de apresentar, percebo o ganho do trabalho em buscar novas possibilidades de criação cênica com essas professoras. Conseguimos fugir dos contos tradicionais e mesmo assim trabalhar com temáticas do cotidiano das crianças, esse é considerado, por elas, o ponto mais relevante do processo de encenação.

Não menos importante aparece o processo de construção coletiva, a identificação enquanto um grupo de teatro. Tenho relatos de que muitas dessas professoras contam histórias sozinhas ou buscam conduzir trabalhos teatrais nas unidades onde trabalham, mas não tem respaldo de suas colegas. Acredito que a experiência coletiva enriqueceu suas vivências e as fez querer continuar com este grupo no próximo ano.

Dentre os aspectos considerados menos relevantes, também houve dois aspectos levantados. Consideraram que no processo a experiência do coletivo foi mais relevante que a experiência pessoal de apresentar. Percebem-se enquanto parte do todo, cada elemento tendo sua parcela de responsabilidade no produto final. A possibilidade de circular pareceu-lhes como algo dado, intrínseco ao processo, então é colocado como menos relevante dentro dos ganhos adquiridos com as outras alternativas.

Justificativas:

“Os professores se perceberam na peça, fazendo até alguns profissionais refletirem sobre sua prática pedagógica – profissão. A recepção das crianças, o envolvimento durante a apresentação da peça foi „combustível‟ para querer mais”.

“Achei fantástico poder levar este tipo de espetáculo para as crianças com elementos tão diferentes como: máscaras, roupas coloridas, falta de utilização da expressão verbal dando mais ênfase ao corpo / gesto”.

“Por ser temática da minha tese, as crianças me chamaram muito a atenção, apresentaram satisfação, olhares. Os corpos estavam alerta, alegres e motivados”.

Para concluir essa avaliação “pelo olhar das professoras”, transcrevo trechos de um relato que recebi de uma professora de Educação Infantil que assistiu ao espetáculo. Uma escrita que retrata sua visão acerca do que presenciou e sentiu com a apresentação da Trupe da Alegria.

Despertar para fazer parte de uma escola divertida e colorida...

Nossas ações diárias tornam-se cada vez mais repetitivas e acabam por estabelecer uma “rotina”. Agimos quase que por instinto diante das situações. Acostumamo-nos aos

horários, aos espaços, às pessoas. Ficamos de tal forma habituados ao “mesmo” que passamos a acreditar neste “mesmo”; como se para dar certo todos os dias tivéssemos que

seguir a “mesma” receita, com os “mesmos”ingredientes para alcançar os “mesmos” resultados.

(...)

Foi um misto o que senti quando em meio a tanta beleza de figurinos, de maquiagem e cenários, me reconheci enquanto personagem daquela história teatral. A professora que diante de tantos conflitos e responsabilidades deixa-se levar pelas circunstancias. E foi no

meio de uma brincadeira que eu despertei; que eu me descobri interpretando uma personagem cujas cenas eu não criei; cujas falas eu não escrevi, mas que pode sim ter seu

destino modificado por esse meu despertar.

E pode ser que daqui a algum tempo eu volte a me sentir assim, carregada, influenciada, contaminada, mas daí então, em uma outra brincadeira eu me permitirei novamente