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A MISSIONAÇÃO JESUÍTICA EM TEMPOS DE PRIVILÉGIO

1.3. A COMPANHIA DE JESUS, DO REINO PARA O MUNDO

No início da década de 1540, D. João III começou a organizar e financiar as primeiras missões oficiais que visavam a evangelização dos povos de além-mar. A execução desse projeto foi reservada à Companhia de Jesus, ordem religiosa que havia sido criada anos antes e que era a única autorizada a atuar nos domínios ultramarinos de Portugal. Chama-nos a atenção, nesse processo, o fato da Coroa portuguesa ter escolhido uma ordem que ainda não tinha experiência missionária em detrimento de outras que já haviam acumulado conhecimentos teóricos e práticos na evangelização de além-mar, como a ordem franciscana e a dominicana.

O que explicaria, então, essa predileção do monarca luso pelos inacianos?

Escapam às fontes do período muitos elementos e informações pontuais que poderiam responder essa questão de modo objetivo. No entanto, considerando o ambiente de reformas políticos-culturais que banhava a Europa católica, podemos encontrar essas respostas na essência da ordem que nascia: seu intento salvífico, que respondia tanto ao apelo das monarquias católicas quanto da cúria romana de que houvesse congregações religiosas dispostas a trabalhar a favor do fortalecimento moral da Igreja e da autoridade papal.

Em 1539, Inácio de Loyola apresentou à cúria romana a Fórmula do Instituto, documento que apresentava os fundamentos da ordem religiosa a fim de que o papado analisasse e aprovasse o seu funcionamento. Loyola sugeria a criação de uma congregação disposta a romper com o monasticismo, uma inovação da vida religiosa inspirada na Devotio Moderna, movimento religioso que Inácio conheceu durante um longo período de recuperação de sua saúde. Ele comandava uma guarnição militar castelhana quando, em 1521, foi gravemente atingido. Durante sua recuperação, Inácio passou a maior parte do tempo na biblioteca da casa de seus pais, onde entrou em contato com a Fábula Dourada, obra de Jacopo da Voragine que tratava da vida dos santos, e com a Vida de Cristo, de Ludolfo da Saxônia.

Estes textos despertaram sua vocação religiosa e, recuperado, adotou a vida religiosa. No monastério beneditino de Montserrat, na Catalunha, Loyola conheceu o Livro de Exercícios para a vida espiritual, obra de inspiração na Devotio Moderna

38 escrita por Cisneros e que propunha a realização de dez dias de meditação como preparação para a confissão, exigência do abade para que o noviço vestisse o hábito beneditino. De Montserrat, o ex-militar foi para Manresa, onde, baseado nos exercícios de Cisneros, iniciou a redação dos seus Exercícios Espirituais. Era mais um manual para a prática de exercícios diários de oração com a finalidade de orientar o leitor na busca da santificação pessoal, conceito básico do movimento religioso em questão.31

Diferente do texto de Cisneros, os Exercícios Espirituais de Loyola sugeriam quatro semanas de práticas espirituais para esta preparação, que ele definiu como

qualquer modo de examinar a consciência, de meditar, de contemplar, de orar vocal e mentalmente, e outras operações espirituais (...). Chamam-se exercícios espirituais diversos modos de a pessoa (...) buscar e encontrar a vontade divina na disposição de sua vida para sua salvação.32

No entanto, não era apenas o tempo de preparação que diferenciava os Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola dos demais livros de mesmo teor. O seu

“manual de salvação” apresentava uma dupla finalidade: a de salvar a alma do praticante e a do próximo. Isso porque, depois de conquistar a própria salvação mediante a prática dos exercícios espirituais, o indivíduo estaria apto a trabalhar pela redenção de seus semelhantes. Nesse caso, a evangelização, que implica na salvação do evangelizado, se daria apenas mediante a própria salvação do evangelizador, pois primeiro ele iria meditar e interiorizar os preceitos da fé cristã para só depois difundi-la pela multidão leiga; daí Serafim Leite considerar que Loyola estabeleceu um novo conceito para a vida religiosa: enquanto a inserção em uma ordem religiosa presumia o afastamento do mundo para a imitação da vida de Jesus, “Santo Inácio integra a sua Ordem no mundo e faz dela uma campanha para a conquista do mundo”.33 Ou, como o próprio fundador da congregação destacou, “o fim da Companhia não é somente ocupar-se, com a graça divina, da salvação e perfeição das almas próprias, mas, com

31 LOYOLA, I. de. Autobiografía. In: IPARRAGUIRRE, I.; DALMASES, C. de (orgs.). Obras Completas de San Ignacio de Loyola. Edicion Manual. Madrid: La Editorial Catolica, 1952. pp. 31-37.

Sobre a influência da Devotio Moderna na criação da Companhia de Jesus ver EISENBERG, J. op. cit., pp. 31-46; e TAVARES, C. C. da S. Jesuítas e inquisidores em Goa: a cristandade insular (1540-1682).

Lisboa: Roma Editora, 2004, pp. 91-93.

32 LOYOLA, I. de. Exercícios Espirituais. Apresentação, tradução e notas do Centro de Espiritualidade Inaciana de Itaici. 2 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002, pp. 09-10.

33 LEITE, S. S. J. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo I. Livro I. Reedição da primeira edição de 1938. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 07.

39 esta mesma graça, esforçar-se intensamente por ajudar a salvação e perfeição das do próximo”.34

Tão logo terminou a redação dos Exercícios Espirituais, Inácio peregrinou até Jerusalém e, em 1524, já em Barcelona, começou a pregar seus exercícios. Como o ex-militar não tinha formação para tal, foi preso pelo Santo Ofício e, após 64 dias de prisão, foi liberado. Os inquisidores consideraram que a doutrina que ele pregava era ortodoxa, mas orientaram o devoto a concluir sua formação em Teologia antes de voltar a difundi-la. Por isso, em 1528 Loyola foi para Paris a fim de concluir sua formação e lá reuniu um grupo de praticantes dos seus exercícios: Pedro Fabro, Francisco Xavier, Diogo Laines, Afonso Salmeron, Simon Rodrigues e Nicolau Bobadilha. Influenciados pelo autor dos Exercícios Espirituais, e pelo ar do humanismo devoto e da Devotio Moderna que pairava sobre a cidade, decidiram ir à Terra Santa para converter os

“infiéis”, mas não conseguiram levar a cabo a viagem. A fim de reverterem a censura papal de atuarem em Jerusalém, os adeptos da nova sociedade entregaram, enfim, a Fórmula do Instituto à cúria romana.35

O documento, já sabemos, sugeria a criação de uma ordem que inovava a vida religiosa, mas o intento salvífico da congregação era voltado à conversão dos turcos muçulmanos, ou seja, trazia reminiscências do sentimento de Cruzada ainda presente nos católicos mais fervorosos. No entanto, se a criação da ordem jesuítica não foi pensada para oferecer amparo à Contrarreforma, a sua aprovação pela Santa Sé o foi.

Ao ser entregue, a Fórmula foi analisada por uma comissão de cardeais que, estabelecida para a Reforma Católica, discutia medidas amplas para a renovação do catolicismo. Inicialmente, a comissão deu alguns pareceres negativos, principalmente nos aspectos relativos à aplicação dos sacramentos. Iniciou-se, então, um longo debate para ajustar os fundamentos da nova ordem. A discussão contou, além das posições de teólogos, com recomendações positivas de D. João III, Carlos V e Francisco I com relação ao funcionamento da Companhia de Jesus. Em 27 de setembro de 1540, então, a ordem religiosa de Loyola foi aprovada através da bula Regimini Militantis Ecclesiae.36

34 LOYOLA, I. de. Constituições da Companhia de Jesus e normas complementares. Anotações da Congregação Geral XXXIV (1995). São Paulo: Edições Loyola, 1997, p. 40.

35 Ver LOYOLA, I. de. Autobiografía... pp. 53-111; LEITE, S. S.J. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo I. Livro I... pp. 03-07; e O’MALLEY, J. W. Os primeiros jesuítas. São Leopoldo: Editora UNISINOS; Bauru: EDUSC, 2004, pp. 45-84.

36 O tema é discutido em IPARRAGUIRRE, I. Introducción para las Constituciones de la Compañía de Jesús. In: IPARRAGUIRRE, I.; DALMASES, C. de (orgs.). Obras Completas de San Ignacio de Loyola... pp. 341-367.

40 O texto da Fórmula subsidiou a escrita da bula em questão. Pequenas alterações nesta última, entretanto, revelam que a cúria romana aproveitou o intento salvífico da ordem jesuítica para aprová-la de acordo com seus interesses. Os dois documentos trazem o termo militare Deo sub vexillo crucis, que em português significa “soldado de Deus sob a bandeira da cruz”.37 Mas, se para Loyola e seus companheiros a frase (na Fórmula do Instituto) significava a peregrinação à Jerusalém, para a Igreja (na Regimini Militantis Ecclesiae) era a sugestão de uma congregação militante que trabalharia na defesa e propagação da fé, como pedia o momento, e que, principalmente, fazia votos de obediência ao papa. A bula enfatizava que

assim fiquem obrigados, quanto estiver na nossa mão, a ir sem demora para qualquer região aonde nos quiserem mandar, sem qualquer subterfúgio ou escusa, quer nos enviem para entre os turcos ou outros infiéis, que habitam mesmo que seja nas regiões que chamam Índias, quer para entre hereges ou cismáticos, quer ainda para junto de quaisquer fiéis.38

Assim, ao aprovar o funcionamento da Companhia, e exigir que seus membros

“sem qualquer subterfúgio ou escusa”39 embrenhassem-se nas Índias para a evangelização dos seus naturais, a Igreja oferecia mais um instrumento à disposição dos reis católicos imbuídos da missão de propagar e defender a fé de Cristo. Tal manobra estreitou ainda mais a relação de fidelidade dessas instituições para que, unidas, fossem mais eficazes ao garantir a conversão dos “pagãos” e a ortodoxia do catolicismo.

Embora a nova ordem religiosa só tenha recebido permissão para atuar na América espanhola em 1566, ainda em 1540 ela recebeu o chamado para se instalar em Portugal. Simão Rodrigues e Francisco Xavier foram os dois dos seis jesuítas que D.

João III solicitou a Roma para trabalhar na evangelização em Portugal e seus domínios.

Em 1541, Xavier foi enviado para Goa e Simão continuou o trabalho apostólico no reino quando, em 1542, foi confirmado Provincial da Companhia de Jesus em Portugal.

Sob seu cuidado, a ordem expandiu e galgou uma posição invejável no reino: o monarca português confiscou bens de outras ordens religiosas, os transferiu para os inacianos e

37 Esta constatação é feita por O’MALLEY, J. W. op. cit., p. 75.

38 CARTA Apostólica Regimini militantis Ecclesiae, dada em 27 de setembro de 1540, ou Fórmulas do Instituto da Companhia de Jesus aprovadas e confirmadas pelo Sumo Pontífice Paulo III. In: LOYOLA, I.

de (1491-1556). Constituições da Companhia de Jesus e normas complementares... pp. 24-25. Além das Constituições, esta edição traz documentos relativos à aprovação e confirmação da Companhia de Jesus pelos papas Paulo III e Júlio III, bem como o prefácio da primeira edição das Constituições escrita, provavelmente, pelo jesuíta Pedro de Ribadeneira.

39 CARTA Apostólica Regimini militantis Ecclesiae, dada em 27 de setembro de 1540, ou Fórmulas do Instituto da Companhia de Jesus aprovadas e confirmadas pelo Sumo Pontífice Paulo III... p. 24.

41 ainda lhes concedeu isenção de impostos no comércio que praticavam para a manutenção das missões da ordem. Além disso, D. João criou condições para que os jesuítas inserissem-se no campo educacional lusitano: nas universidades, os padres faziam com que a escolástica medieval restringisse o pensamento científico à ciência náutica e domesticasse a mentalidade humanista corrente na Europa para justificar o programa político-religioso da Coroa; e nos colégios da Companhia de Jesus eram preparados os missionários que atuavam nas atividades apostólicas do reino e no além-mar.40

Diante desse quadro, podemos levantar algumas hipóteses para entender a escolha de D. João III pela Companhia de Jesus não apenas como a ordem responsável pela evangelização de Portugal e domínios de além-mar, mas principalmente como instrumento de execução de um ambicioso programa governativo. Vista (a escolha) sob esta perspectiva, a inovação da vida religiosa proposta por Inácio de Loyola pode ser entendida como uma de suas principais razões, uma vez que o novo modelo de vida devota da congregação jesuítica atendia às aspirações salvíficas de D. João III que circunscreviam suas reformas político-religiosas. E a carta que o monarca escreveu a Duarte da Costa, então Governador do Estado da Índia, é bastante sugestiva nesse sentido:

O fruto, que os Padres de Jesus com sua doutrina, virtude, e bom exemplo fazem em toda cousa do serviço de Nosso Senhor, e salvação das almas é tão grande, que se deve muito estimar, granjear, e favorecer sua Companhia, e conservação, e porque os que estão nessas Partes tenho entendido, que vão obrando, e obram os mesmos efeitos, pareceu-me devida cousa encomendar-vo-los muito, posto que tenha por muito certo, que tereis disso muito grande cuidado por ser cousa de tal qualidade, e de tanto meu contentamento.41

O documento, ao mesmo tempo em que reforça esta hipótese, nos permite também presumir que outras razões estavam envoltas à predileção do monarca pela nova ordem religiosa. Entre elas, a possibilidade da Coroa de participar da delineação

40 Em quatro anos, Simão Rodrigues admitiu 64 jesuítas em Portugal. Quanto à expansão dos colégios da ordem, em 1547 foi fundado o colégio de Coimbra, seguido do de Évora (1553), Braga e Porto (1560), Bragança (1561), Angra e Funchal (1570). Ainda no plano educacional, os jesuítas responsabilizaram-se pelas universidades de Coimbra (1555) e Évora (1559). Sobre o período inicial da Companhia de Jesus em Portugal ver ASSUNÇÃO, P. de. Negócios jesuíticos: o cotidiano da administração dos bens divinos.

São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004, pp. 87-147; TAVARES, C. C. da S. Jesuítas e inquisidores em Goa... pp. 100-104; e diferentes passagens de PALOMO, F. Fazer dos campos escolas excelentes: os jesuítas de Évora e as missões do interior em Portugal (1551-1630). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.

41 CARTA a Duarte da Costa, de 1554. In: LEITE, S. S.J. Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil. V. II.

São Paulo: Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1954, p. 36. ap. ASSUNÇÃO, P. de.

Negócios jesuíticos... p. 153.

42 das diretrizes da atividade evangelizadora e, acima de tudo, de controlar a ação da congregação responsável por sua execução. Não só a participação de D. João III nos debates relativos à aprovação da Companhia de Jesus é um forte indicativo dessa proposição, como também o fato da cúria romana ter alterado o sentido do funcionamento da ordem na bula Regimini militantis Ecclesiae, ou seja, ao aprová-la, a Santa Sé colocou a nova congregação a serviço da expansão da fé, processo encabeçado pelas monarquias ibéricas. E embora o fato da Companhia de Jesus ter feito voto de obediência ao papa possa ser interpretado como uma condição imposta à Loyola para a aprovação da Sociedade de Jesus, para D. João III pode ter sido uma mostra de disposição da uma nova ordem religiosa que, carente de apoio e legitimação, estava disposta a obedecer também os monarcas que financiavam a evangelização em um momento em que ela passava a fazer parte de um importante programa político.

Foi, portanto, com condições de privilégio frente outras ordens religiosas que a Companhia de Jesus se estabeleceu em Portugal e, de lá, ganhou o mundo: em 1542 estabeleceu missões na Ásia; em 1548 na África; e em 1549 na América. Iniciava-se, assim, o empreendimento missionário da ordem jesuítica nos domínios ultramarinos de Portugal, uma ação que implicava a execução de um amplo projeto reformista.

43 CAPÍTULO 2. MISSÕES CONDICIONADAS NO IMPÉRIO PORTUGUÊS