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A MISSIONAÇÃO JESUÍTICA EM TEMPOS DE PRIVILÉGIO

2.2. A MISSIONAÇÃO JESUÍTICA EM ÁREAS DE DOMINAÇÃO PORTUGUESA

A primeira experiência dos jesuítas fora das fronteiras da Europa ocorreu em Goa, importante domínio ultramarino de onde os portugueses organizavam ações militares e econômicas no Estado da Índia. Os missionários chegaram ao local em maio de 1542 sob o comando de Francisco Xavier, um dos companheiros de Inácio de Loyola que fizeram parte da fundação da Companhia de Jesus. Além de sua importância vida religiosa de Portugal, o cargo de Superior das Missões no Oriente lhe dava a autoridade de iniciar a evangelização na cidade com o batismo em massa e, muitas vezes, forçado, modo que rompia completamente com a doutrina da salvação católica.

55 O Decreto sobre a Salvação explica que a salvação através do batismo significa a conversão dos adultos, porque “com aquele arrependimento que devem ter antes de serem batizados (...), [devem]

começar uma vida nova e observar os mandamentos de Deus”. Ver APOSTOLADO V. S. (org.).

Documentos do Concílio Ecumênico de Trento. 1º Período (1545-1547): Sessão VI... p. 02.

56 A avaliação foi feita com base nas cartas escritas pelos missionários que atuaram no Brasil e em algumas regiões da África e Ásia. Elas serão citadas ao longo do texto. Muitos dos dados utilizados na análise que se seguirá aparecem de forma ampla em SABEH, L. A. Colonização salvífica... pp. 40-85.

49 Os missionários sob o comando de Xavier o obedeciam nessa prática, mesmo quando não estavam de acordo com ela. António Criminal, por exemplo, escreveu a Loyola em 1545 acusando a “pressa” em se batizar a população local. O padre informou o Geral que já havia consultado o mestre do colégio de São Paulo em Goa sobre a questão, mas que não teve um parecer positivo. Criminal disse que, mesmo citando São Tomás de Aquino (que indicava a necessidade de seis meses para se fazer um cristão prudente) e o teólogo dominicano Silvestre Prierias (que recomendava 40 dias de preparação do catecúmeno, reproduzindo o tempo da Quaresma), recebera a resposta de que agindo desta forma não batizaria ninguém. Assim, ele pedia a orientação de Loyola sobre como proceder no batismo, que era aplicado

sem ensinar coisa alguma, pois eles chegam e dizemos que queremos que sejam cristãos; ao fim da prédica, quando se predica, rapidamente os baptizamos (...). Dizemos quatro ou três palavras na terceira pessoa declarando-lhes que coisa devem crer, declaramos os mistérios da cerimônia do baptismo, e isto sempre com intérprete.57

A pesquisadora Maria Odete Soares entendeu que a opção de Xavier pelo batismo em massa decorria de sua posição teológica de que era preciso primeiro batizar um grande número de pessoas para depois catequiza-las, uma forma que privilegiava a quantidade e não a qualidade doutrinal da conversão.58

Sua opção, no entanto, causou a reação tanto da Igreja quanto da Coroa portuguesa, instituições que se mostraram preocupadas em adaptar a evangelização em Goa aos princípios teológicos do batismo. Antes de falecer em 1552, Xavier foi advertido por Inácio de Loyola sobre a necessidade de preparação dos indivíduos antes do batismo, como pedia a doutrina. Essa mesma preocupação foi manifestada por D.

Catarina (mãe de D. Sebastião) em 1562, quando do seu pedido de melhor preparo dos catecúmenos na região. Cinco anos mais tarde foi a vez do 1º Concílio Provincial de Goa demonstrar esse desassossego. Indicando que as pessoas deveriam manifestar o livre desejo e convicção de serem batizadas, foi solicitado um melhor preparo da população antes da aplicação do sacramento.59

57 CRIMINAL, A. Carta a Inácio de Loyola de 07 de outubro de 1545. In: REGO, A. da S. Documentação para a história das missões do padroado português do Oriente (Índia). v. 3. Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1947, pp. 171-172. ap. TAVARES, C. C. da S. Jesuítas e inquisidores em Goa... p. 115.

58 MARTINS, M. O. S. A missionação nas Molucas no século XVI: contributo para o estudo da acção dos jesuítas no Oriente. Lisboa: Centro de História de Além-Mar, 2002, pp.263-265.

59 Sobre a questão ver MARTINS, M. O. S. op. cit., pp. 267-270.

50 O ajuste da prática de aplicação do batismo à doutrina católica, entretanto, ocorreu apenas em 1568, quando D. Sebastião instruiu D. Luís de Ataíde – então vice-rei da Índia – para que Goa e cada fortaleza portuguesa tivesse um “pai dos cristãos”. O cargo de Pater christianorum havia sido oficializado por um Alvará Régio de 1532 e concedia ao nomeado a função de vigiar os novos cristãos para que estes não voltassem aos antigos preceitos. Visando a manutenção da ortodoxia do catolicismo, o documento também concedia as prerrogativas de julgar e castigar os recém-batizados, além do livre acesso aos troncos e galés à procura de “interessados” pelo batismo e a fiscalização do que era ensinado aos catecúmenos em qualquer ambiente.60

Considerando, então, que a decisão da Coroa portuguesa de manter um “pai dos cristãos” nos domínios asiáticos ocorreu somente depois falecimento de Francisco Xavier, é possível relacionar a prática do batismo em massa assumida por Xavier não ao seu posicionamento teológico, mas sim à relação que Portugal estabelecia com Goa: a Coroa lá exercia um domínio político efetivo, e a proposição fica evidente diante do estado em que se encontrava a região quando da chegada dos inacianos.

Os jesuítas desembarcaram em Goa juntamente com Martim Afonso de Souza, novo vice-rei do Estado da Índia que levava instruções de enfeixar o poder em suas mãos. Uma vez no Oriente, encontraram entre os portugueses e os nativos um corpo sacerdotal de 100 padres seculares, que desde 1534 atuava sob as ordens de uma diocese cuja jurisdição abrangia a cristandade presente entre o Cabo da Boa Esperança e a China. No entanto, o modo de vida no local era incompatível com a ortodoxia de uma religião em pelo processo de reforma: além da má conduta de muitos portugueses, existia a prática pública de cultos hindus por parte da população local. Essa realidade refletia tanto o clima de tolerância instituído no primeiro momento da cristianização de Goa, iniciado com Afonso de Albuquerque em 1510, como a carência de vocação e a má formação religiosa do clero goês. A estreita convivência dos padres e da população leiga com a diversidade cultural da região contribuiu para uma aceitação de práticas tidas pela Santa Sé como heréticas, como a bigamia, a sodomia, entre outras. Muitas vezes, as discussões sobre essas questões desencadearam uma série de conflitos entre os jesuítas e o clero secular e resultaram em graves denúncias de que padres seculares

60 Ver ARAÚJO, M. B. O “Pay dos Christãos”: contribuição para o estudo da cristianização da Índia. In:

Actas do Congresso Internacional de História Missionação Portuguesa e encontro de culturas. v. II.

Braga: CNCDP, 1993, pp. 305-324. Os “pais dos cristãos” atuaram apenas em locais em que Portugal exercia jurisdição efetiva, como em Goa e nas fortalezas de Baçaim e Ceilão. Lembremos que em muitas regiões os portugueses exerciam jurisdição apenas dentro das fortalezas. Fora delas valiam as leis dos reis mandantes das regiões. Ver MARTINS, M. O. S. op. cit., pp. 267-270.

51 tinham mancebas, roubavam, não sabiam aplicar os sacramentos e até mesmo um que se fez passar por Jesus Cristo.61

Assim, como medidas de defesa e propagação da fé cristã, os jesuítas utilizaram o batismo em massa e recorreram a métodos muitas vezes violentos para eliminar práticas religiosas consideradas heterodoxas. Com o apoio do poder secular, os evangelizadores cuidaram da destruição de templos hindus, da perseguição aos sacerdotes locais e da queima de livros de outras religiões que não fossem a católica.

Nos locais onde havia templos sagrados hindus, após sua destruição os inacianos levantavam uma cruz para indicar o local onde seria construída uma igreja. Ainda, quase vinte anos após a chegada da Companhia de Jesus em Goa, foi a vez do Santo Ofício da Inquisição se instalar na cidade, o que aumentou significativamente a intolerância religiosa com o combate ao “gentilismo”.62

Fica bastante evidente que durante o reinado de D. João III, as mudanças processadas na sua política ultramarina ressoaram na Ásia, marcando o começo de um novo momento da cristianização em Goa. A partir de 1542, o comportamento das autoridades civis e eclesiásticas passou a refletir as reformas joaninas, e foi com a ordem inaciana que, de fato, começou a interferência no modo de vida local. Francisco Xavier, afinal, representava uma ordem religiosa extremamente zelosa às determinações da Igreja tridentina pelo zelo à ortodoxia da fé católica. Nesse caso, o espírito reformista da Companhia de Jesus, aliado ao poder político, explica o porquê da opção do padre pelo batismo em massa: por serem dominados pelos portugueses, os naturais não precisavam manifestar o desejo de serem cristãos, muito menos precisavam viver sob o controle dos missionários para levar uma vida cristã depois de batizados. A persuasão, que ascenderia a vontade dos nativos pelo batismo, era substituída pela força bruta; já a

61 Sobre essas denúncias ver TAVARES, C. C. da S. Jesuítas e inquisidores em Goa... pp. 104-110. Esse texto também oferece o panorama do estado em que Goa se encontrava quando da chegada dos inacianos, assim como SUBRAHMANYAM, S. op. cit., pp. 77-112.

62 Sobre a atuação dos jesuítas e do Santo Oficio da Inquisição em Goa ver TAVARES, C. C. da S.

Jesuítas e inquisidores em Goa... pp. 87-140. A autora entende que esse método de ação dos jesuítas e do poder secular demonstrava a chegada dos ideais da Contrarreforma nos domínios lusos no Oriente e seu consequente recrudescimento na vida religiosa de Goa. A violência na evangelização deve ser entendida no contexto das mudanças pelas quais a Europa passava e que incidiram nas mudanças promovidas por D.

João III no império português. Ângela Barreto Xavier segue nesta perspectiva e acrescenta que a ação jesuítica e do poder régio marcaram o início da ousada reforma joanina que abarcava seus territórios de além-mar na tentativa de adequá-los a uma concepção de um império inspirado no modelo romano da Época Antiga, e que vinha sendo ensaiado pelos vizinhos castelhanos. As medidas adotadas nesse sentido exigiam a dinamização da administração (para garantir a viabilidade econômica dos domínios) e a formação de súditos com a cristianização da população nativa. Ver XAVIER, Â. B. A invenção de Goa:

poder imperial e conversões culturais nos séculos XVI e XVII. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2008, pp. 75-80.

52 ortodoxia da fé praticada pelos novos cristãos era garantida pela punição, fosse aquela prevista pelas Ordenações portuguesas ou pelo Santo Ofício da Inquisição.