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OS JESUÍTAS NAS FRONTEIRAS

4.1. UM IMPÉRIO COM FRONTEIRAS HUMANAS

Na América espanhola, as Ordenanzas de descubrimiento haviam transformado os missionários em verdadeiros agentes de expansão territorial. Ao transferir para as ordens religiosas a responsabilidade de adentrar no continente americano, Filipe II fazia com que os limites territoriais da sua imensa colônia fossem até onde os missionários pudessem chegar. Era uma estratégia menos dispendiosa materialmente e, ao mesmo tempo, cumpridora da missão salvífica da qual a Coroa estava imbuída e comprometida em função do Patronato. Nesse caso, o documento que estabelecia as diretrizes do programa religioso Habsburgo criava um império com fronteiras humanas, aquilo que Fernando Operé chamou de fronteira de corpos vivos, isto é, de zonas de encontro de culturas, de conflitos e interações de onde emergiram novas relações sociais, políticas e culturais que originaram o Novo Mundo.66

Diante da promissora função do elemento religioso na manutenção do império criada com as Ordenanzas de descubrimiento, alinhar a ação dos jesuítas da Província do Brasil aos seus interesses significava colocar os inacianos para atender a duas necessidades latentes da integração do Brasil ao império espanhol: a defesa e a expansão da colônia. Mesmo que a campanha antifilipina encabeçada pela Companhia de Jesus de Portugal tenha gerado um mal estar entre o monarca e a ordem religiosa, o fato é que os jesuítas tinham estabelecido uma estrutura eclesiástica considerável e adquirido uma experiência significativa no trato com a Terra de Santa Cruz, com os nativos e com os colonos, fatores que não podiam ser desprezados pela Espanha. Os jesuítas haviam desempenhado, entre 1549 e 1580, um papel semelhante àquele realizado por franciscanos, dominicanos e agostinianos nos vice-reinos da Nova Espanha e do Peru entre 1523 e 1573. Certamente, esse modo de atuação, a influência jesuítica na colônia e o interesse dos missionários de explorar a terra interessavam à Coroa espanhola. Filipe II provavelmente entendeu que a ordem religiosa tinha condições primorosas para desempenhar, também, a importante atividade realizada

66 Essa tese é difundida em OPERÉ, F. Historias de la frontera. El cautiverio en la América hispánica.

Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2001.

108 pelos jesuítas da Província da Espanha na América espanhola: o estabelecimento de fronteiras.

Comparando as áreas de atuação dos jesuítas no Brasil antes da União Ibérica e durante todo o seu período, é possível identificar que houve uma importante dispersão dos missionários pela colônia e, igualmente, que ela se deu através de expedições de reconhecimento e ocupação territorial.67

Ora, desde o início de suas atividades na Terra de Vera Cruz, a Companhia de Jesus participou de campanhas que resultaram na ocupação de territórios até então inexplorados pelos portugueses. O que, então, essas expedições do período Habsburgo tinham de diferente das que ocorriam desde 1549?

A Missão do Brasil teve início no mesmo momento em que se implementou o Governo-Geral no Brasil, o que garantiu a presença dos inacianos em inúmeras expedições de exploração territorial organizadas pelos primeiros Governadores-Gerais.

Os missionários participaram, entre outros eventos, da fundação de Salvador (1549); da pacificação dos Aymorés em Porto Seguro (1560); e da pacificação dos Tamoyos no Rio de Janeiro (1565).

Desde o momento em que se instalou em Salvador, a Companhia de Jesus organizou, igualmente, expedições paralelas às do poder temporal. Essas campanhas eram realizadas por duplas de jesuítas e por um pequeno grupo de indígenas que atuavam como guias e intérpretes. O objetivo era reconhecer o território e identificar quais eram e como viviam os principais grupos indígenas do litoral brasileiro. Os relatos dessas expedições através das cartas ajudavam a cúria jesuítica a indicar onde os padres da Missão do Brasil deveriam fundar “missões”.68

67 Adiante, veremos que os aldeamentos também exerceram um papel fundamental nesse processo.

68 Sobre as primeiras expedições jesuíticas no Brasil ver SABEH, L. A. Colonização salvífica: os jesuítas e a Coroa portuguesa na construção do Brasil (1549-1580). Dissertação (Mestrado em História) Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009, pp. 86-103. O termo “missão” era empregado pelos jesuítas para muitas situações. Geralmente, se referia a uma atividade estabelecida em uma região, como a Missão do Brasil ou a Missão do Japão, por exemplo.

Quando as atividades de uma Missão se desenvolviam, ela era elevada à categoria de Província. A partir de então, era dado o nome de “missão” às atividades “extra-colégio”. No Brasil, o termo era empregado às expedições, fossem as voltadas ao reconhecimento territorial, à pacificação de tribos indígenas, à criação de aldeamentos ou mesmo para a visita regular às vilas, fazendas, fortalezas e aldeamentos (as chamadas “missões rurais” e “missões regionais”, como veremos). Eram chamadas de “missões” também as reduções criadas pelos jesuítas da Assistência da Espanha e os “descimentos” de indígenas em regiões onde os aldeamentos sofriam constantes esvaziamentos por conta dos salteamentos, das epidemias ou mesmo da inserção dos índios aldeados na lide colonial. Vale lembrar que o “descimento” era uma prática comum no Brasil e permitida e estimulada pelas Coroas ibéricas. Ela consistia na organização de expedições que tinham a finalidade de deslocar populações do interior do continente para os aldeamentos.

Inicialmente, elas eram organizadas por colonos, mas era obrigatória a presença de um missionário que, muitas vezes, era quem as liderava. Isso porque a Coroa proibia o uso da força para “descer índios do

109 Em aproximadamente quinze anos de atividades de exploração, os padres se instalaram em Pernambuco, Bahia, Ilhéus, Porto Seguro, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Vicente, e tencionavam ainda estabelecerem-se no Paraguai e na atual região Sul do Brasil. Na maior parte desses locais, os padres chegaram sem o auxílio de tropas militares, ou seja, não em função de ditames políticos da Coroa portuguesa, mas sim do mesmo princípio que fomentava as expedições da ordem na Ásia e na África: a política de expansão de suas atividades no Orbe.

Ao integrar a reforma político-religiosa da Coroa portuguesa, a Companhia de Jesus se instalou inicialmente na Ásia (1542) e na África (1547). Ao mesmo tempo em que procuraram executar a parte que lhes cabia da política lusa em cada uma dessas regiões, os inacianos se valeram do amparo material que recebiam da Coroa portuguesa para expandir suas atividades. De Goa e do Congo, os padres saíam em duplas e embrenhavam-se em mundos que lhes eram incógnitos em busca de novas áreas a serem convertidas à fé do Cristo. Ao chegarem a uma região, eles buscavam identificar as estruturas sociais, além daquilo que entendiam ser as necessidades religiosas do local.

Feitas estas identificações, a cúria jesuítica decidia, então, qual seria a forma de atuação dos missionários naquele espaço.

Foi nesse processo que os jesuítas irradiaram de Goa e do Congo para a costa do Malabar (1542), Ceilão (1548), ilhas Molucas (1548), Marrocos (1548), Japão (1549), China (1552), Etiópia (1555) e Moçambique (1560). Essas expedições que espalharam os missionários pela Ásia e África tinham o mesmo sentido daquelas que os levaram de Salvador para as diferentes capitanias do Brasil: decorriam de um fundamento evangelizador de busca de almas para Cristo, mas, sobretudo, do uso oportuno da estrutura oferecida pela Coroa portuguesa a favor da construção de um pretendido império cristão.69

A análise da documentação jesuítica produzida no Brasil durante o período da União Ibérica indica que houve uma importante mudança no sentido que impulsionava as expedições no Brasil dos Filipes. Durante o generalato de Diogo Laynez (1558-1565), foi instituído que as cartas deveriam ser escritas por todos os jesuítas uma vez ao ano. As chamadas “cartas ânuas” seguiam os mesmos padrões de redação das cartas de

sertão”, ou seja, era permitido apenas o uso da persuasão para convencer os índios a viverem nas Aldeias.

Sobre esta questão ver PERRONE-MOISÉS, B. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, M. C. da (org.). História dos índios no Brasil. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 118.

69 Ver SABEH, L. A. Colonização salvífica... pp. 49-135.

110 edificação e de negócio, mas como passaram a ser anuais, sofreram mudanças na forma como as missões eram relatadas aos seus superiores. Enquanto antes eram discutidos, carta a carta, assuntos específicos e circunstanciados de acordo com a necessidade (portanto, com informações dispersas que demandavam sistematização dos dados por elas relatados), a instituição das ânuas transformaram as cartas em verdadeiros documentos burocráticos: ofereciam informações detalhadas sobre o “estado da missão”, que iam desde o nome e ocupação de cada membro de casa jesuítica até os eventos políticos e sociais que contribuíam ou não para o andamento das atividades apostólicas. A necessidade de algumas missões pedia o detalhamento pormenorizado da situação de determinadas atividades. Daí resultaram importantes documentos chamados de “relações” ou “informações”, que eram uma espécie de carta ânua para assuntos específicos.70

No Brasil, os missionários produziram importantes relações sobre a situação das casas e dos colégios jesuíticos, dos aldeamentos e das práticas religiosas das missões, mas poucas versam especificamente sobre as campanhas de exploração territorial. No corpo documental do período entre 1580 e 1640, por exemplo, são conhecidas poucas relações que tratam exclusivamente de expedições.71 Desse modo, as informações sobre os locais onde ocorriam as empreitadas, bem como sobre a composição e as formas de

70 Ver ARAÚJO, H. P. Introdução. As cartas ânuas das missões dos jesuítas. In: GOUVEA, A. de (1592-1677). Cartas Ânuas da China (1636, 1643 a 1649). Edição, introdução e notas de Horácio Peixoto de Araújo. Macau: Instituto Português do Oriente; Lisboa: Biblioteca Nacional, 1998, pp. 11-19. Ao se estudar a missionação jesuítica no Brasil se constata que, de fato, a quantidade de cartas do período entre 1540 e 1560 é muito superior ao de cartas da década de 1570 em diante. No entanto, o tamanho dos textos é bastante diferente. As cartas que antes tinham entre uma e dez páginas passaram a compor documentos bastante extensos, alguns com cerca de cem páginas ou mais. Os missionários nem sempre identificavam que tipo de documento estavam produzindo. Assim, essa identificação ocorre apenas com a análise da estrutura e do tipo de informações que uma carta oferece. No Brasil, há muitas relações, cartas ânuas e outros documentos normativos em coleções de cartas jesuíticas. No entanto, não há coleções de cartas ânuas da Missão do Brasil como as organizadas por institutos de pesquisa portugueses para as missões do Oriente ou por institutos de pesquisas latino-americanos para as missões da Província jesuítica do Paraguai.

71 Trata-se de FIGUEIRA, L. Relação do Maranhão, 1608, pelo jesuíta padre Luiz Figueira enviada a Cláudio Aquaviva. In: INSTITUTO do C. (dir.). Três documentos do Ceará Colonial. Fortaleza:

Departamento de Imprensa Oficial, 1967, pp. 76-157; RODRIGUES, J. A Missão dos Carijós – 1605-1607. Relação do P. Jerônimo Rodrigues. In: LEITE, S. S.J. (org.). Novas cartas jesuíticas (de Nóbrega a Vieira). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1940, pp. 196-246; e MISSÃO dos Mares Verdes, que fez o P. João M., e por seu companheiro o P. Antonio Bellania por ordem do P. Domingos Coelho Provincial na era de 1624. Ao padre Nunho Mascareña, Assistente de Portugal da Companhia de Jesus.

In: Archivum Romanum Societatis Iesu, Bras. 8-II, f. 360-365v. ap. FARIA, M. R. de. A educação jesuítica e os conflitos de uma missão: um estudo sobre o lugar do jesuíta na sociedade colonial (1580-1640). Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009, pp. 306-314. O pesquisador reproduziu a carta na íntegra. Ao que tudo indica, Vieira é o seu autor, porque há trechos inteiros dessa relação de 1624 em VIEIRA, A. Carta Ânua ao Geral da Companhia de Jesus. 30 de setembro de 1626. In: __________.

Cartas do Brasil. Organização e introdução de João Adolfo Hansen. São Paulo: Hedra, 2003, pp. 77-117.

111 suas execuções precisam ser colhidas nas cartas ânuas ou nas relações que tratam da situação das missões das diversas capitanias.

Esses dados, quando aparecem, estão voltados a apontar o fundamento salvífico das expedições: os padres concentram-se em relatar as dificuldades em vencer os obstáculos naturais e em apontar “o favor de Deus, que queria a salvação daquelas pobres almas”.72 Trata-se, portanto, de um trabalho de mapeamento que, auxiliado pelos dados oferecidos por colonos e autoridades régias do período, assim como por estudos historiográficos, nos dá condições de traçar um panorama das campanhas ocorridas no Brasil. Mais que isso, nos permite inferir que houve uma significativa mudança do sentido que as impulsionava no período em que a Casa de Habsburgo interviu na administração da colônia.

Os dados, sistematizados e avaliados à luz dos estudos historiográficos acerca das ações colonizadoras em diferentes regiões, indicam que, coincidentemente, os missionários passaram a atuar nos locais que tinham funções estratégicas de ocupação e defesa territorial para a Coroa espanhola. Vê-se, também, que enquanto as expedições do período 1549-1580 decorriam da iniciativa da própria Companhia de Jesus, essas outras eram estimuladas e até mesmo solicitadas pela Coroa, tanto que nessas ocasiões os padres recebiam provisões, animais de carga e montaria e, em alguns casos, até embarcações para realizá-las. Portanto, as expedições jesuíticas do período filipino eram voltadas a fazer dos missionários verdadeiros desbravadores, a fronteira humana do império tal como faziam os jesuítas da Assistência da Espanha na América espanhola.