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OS JESUÍTAS NAS FRONTEIRAS

3.2. O ELEMENTO RELIGIOSO DA POLÍTICA ULTRAMARINA ESPANHOLA

Considerando o vulto que a dissensão entre os jesuítas portugueses e a Coroa espanhola havia tomado, seria lógico pensar que Filipe II teria promovido a abertura do campo missionário no Brasil como uma forma de retaliar a Companhia de Jesus.

Entretanto, há elementos importantes que precisam ser considerados na compreensão desse fato. No momento em que Portugal foi anexado à Coroa espanhola, a Casa de Habsburgo já tinha um projeto imperial consolidado. Filipe II era o herdeiro de um monarca que havia alterado significativamente o cenário político europeu. Com a conquista da capital asteca em 1521, Carlos V formou um império cujo território era oito vezes maior que Castela e que abrigava cerca de um quinto da população mundial.

Embora o imperador tenha transferido o governo do Sacro Império Romano a seu irmão Fernando em 1558, ele confiou a seu filho, em 1556, parte considerável de seu território (Espanha, Holanda, parte da Itália e o Novo Mundo, chamado de Índias), o que garantiu a Filipe o título de “Rei de Espanha e das Índias” e o governo de uma monarquia com bases jurídicas, eclesiásticas e econômicas já estabelecidas.8

O alicerce desse organismo político havia sido construído, em parte, através da execução de um vasto programa religioso que foi incrementado na expansão ibérica para substituir os primeiros modelos civilizadores implementados no Novo Mundo. O método colonizador adotado em 1492 pelos espanhóis na Hispaniola, atual Ilha de São Domingos, se diferenciava daquele usado na África e na Ásia pelos portugueses baseado em um império-rede sem territorialidade, isto é, nas feitorias e no controle de

7 Sobre as investidas dos reis Habsburgo sobre a Companhia de Jesus ver ASSUNÇÃO, P. de. Negócios jesuíticos... pp. 124-125; BOUZA, F. op. cit., pp. 179-193; e VALLADARES, R. Castilla y Portugal en Asia (1580-1680). Declive imperial y adaptación. Lovaina: Leuven University Press, 2001, pp. 29-35.

8 Sobre a questão ver ELLIOTT, J. H. A Espanha e a América nos séculos XVI e XVII. In: BETHELL, L.

(org.). História da América Latina: América Latina Colonial. v. I. 2 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2008, pp. 283-337. Entre 1516 e 1555, Carlos de Habsburgo governou com sua mãe, Joana I. Até 1556 foi Carlos I de Espanha e Carlos V do Sacro Império Romano-Germânico.

85 rotas comerciais. Estava, conforme o parecer de John Elliot, em sintonia com a forma criada pelos lusitanos para a exploração das ilhas atlânticas (e mais tarde do Brasil).

Como a Madeira e os Açores eram despovoados, ao invés das feitorias primou-se pela ocupação territorial e pelo desenvolvimento de atividades econômicas para não perder o novo domínio para outras nações.9

Esse modelo de “ocupar para não perder” havia sido adotado pelos espanhóis nas décadas de 1480 e 1490 quando da ocupação das Ilhas Canárias. O mesmo ocorreu na Hispaniola, que era intensamente povoada, o que pedia não só a ocupação da terra como também a sua inserção à ordem estabelecida pelos conquistadores. Como apontou um historiador espanhol do século XVI, “sem colonização não há uma boa conquista, e se a terra não é conquistada, as pessoas não serão convertidas. Portanto, o lema do conquistador deve ser colonizar”.10

Pelo fato de haver também interesses materiais impulsionando a empreitada, desde o início os colonos defenderam que usar a força de trabalho do ameríndio era essencial para desenvolver as atividades voltadas ao estabelecimento dos espanhóis na terra e à exploração dos seus potenciais econômicos. Os indígenas, explica John Elliot, inicialmente foram classificados como “infiéis”, termo que na Península Ibérica tinha o mesmo sentido dado pelo Direito Romano ao “bárbaro”: podia ser escravizado. Os teólogos, entretanto, defenderam que os habitantes do Novo Mundo se enquadravam em outra classificação. Pelo fato de não conhecerem a fé cristã, eram “pagãos” e, por esta razão, não podiam ser escravizados. Sua conquista, pelo contrário, enfeixava a missão civilizadora transfigurada na sua conversão ao cristianismo. Na terra dos Reis Católicos, o “pagão” não era simplesmente um conquistado, mas um súdito da Coroa, tanto que em 1500, Isabel I criou a primeira lei que proibia a escravização do indígena.11

O debate sobre a classificação do indígena não cessou em 1500. A publicação da bula Sublime Deus em 1537 era ainda um esforço da Santa Sé de legitimar a definição do indígena como “pagão”. Como a doutrina católica exigia a sua salvação, o documento assegurou que o ameríndio tinha alma, “como verdadeiros homens que são”.

Ainda, declarava que os silvícolas deviam gozar de sua liberdade para que fossem convidados a abraçarem a vida cristã através da pregação das coisas de Deus e do bom

9 ELLIOTT, J. H. A conquista espanhola e a colonização da América... pp. 135-148.

10 GÓMARA, F. L (1511-1566). História General de las Indias. Madrid: s/ed., 1852, p. 181. ap.

ELLIOTT, J. H. A conquista espanhola e a colonização da América... p. 135. A primeira versão da obra é de 1552.

11 Ver ELLIOTT, J. H. A conquista espanhola e a colonização da América... pp. 148-158.

86 exemplo dos cristãos, uma alusão à necessidade de persuadir o “pagão” a aderir o cristianismo.12

A tentativa de definir o ameríndio em termos teológicos era uma prerrogativa para a sua definição jurídica que, esta sim, estabeleceria os limites da ação dos colonos para com os povos da América. O temor dos homens de negócio envolvidos na empresa ultramarina era de que a conceituação a ser dada aos nativos implicasse na completa proibição do uso de sua força de trabalho. A pressão que exerceram no debate com os teólogos se refletiu nas várias manobras da Coroa para conciliar os sentidos materiais e espirituais da empreitada, e a primeira delas estava já na lei de Isabel I: ela proibia a escravidão do indígena, mas a consentia nos casos de “guerra justa”.13

A “exceção” da lei permitia aos colonos justificar as invasões às tribos indígenas, a captura dos homens e a carnificina de mulheres, crianças e idosos. Como reação, em 1502, a Coroa espanhola criou o regime de repartimiento, que consistia na redução dos indígenas pelas autoridades régias e sua distribuição aos colonos. O autor explica que o regime do repartimiento foi empregado na Hispaniola. Por volta de 1519, quando os primeiros movimentos foram dados rumo à conquista do México e do Peru, esse regime apareceu com a denominação de encomienda e só se diferenciava do regime caribenho em um ponto: o encomendero não podia fazer uso da terra dos indígenas até que recebesse concessão da Coroa para este fim. Assim, em ambos os regimes os colonos passavam a ter a expressa obrigação de “cuidar dos índios e instruí-los na fé”.14

Como a conversão e a vida espiritual dos índios tutelados dependia da aplicação dos sacramentos católicos – e essa uma atividade reservada aos sacerdotes da Igreja –, os encomenderos contavam com o auxílio do clero secular. A assistência religiosa era organizada através da Doctrina, paróquia indígena sustentada pelo dízimo dos colonos.

Os padres visitavam as fazendas e as vilas com certa regularidade, mas realizaram um trabalho pouco expressivo na conversão dos ameríndios, “em geral medíocre”15 no parecer do historiador Alain Milhou.

12 PAULO III. A Bula Sublimis Deus declara os índios livres e capazes para a fé cristã, proíbe sua redução à escravidão e insiste em sua conversão através da palavra de Deus e do bom exemplo. Dada em Roma, junto a S. Pedro, em 2 de junho do ano de 1537 da Encarnação do Senhor, 3º de Nosso Pontificado. In:

SUESS, P. (coord.). A conquista espiritual da América espanhola. 200 documentos – Século XVI.

Petrópolis: Vozes, 1992, pp. 273-274. O trecho citado consta na página 274.

13 Detalhes dessa lei pode ser vistos em Ver ELLIOTT, J. H. A conquista espanhola e a colonização da América... pp. 148-150.

14 ELLIOTT, J. H. A conquista espanhola e a colonização da América... p. 152.

15 MILHOU, A. Missão, repressão, paternalismo e interação. Para um balanço de um século de evangelização na Ibero-América (1520-1620). In: BONILLA, H. (org.). Os conquistados: 1492 e a população indígena das Américas. São Paulo: Hucitec, 2006, p. 252.

87 As notícias sobre a estrutura espiritual da América chegavam com frequência à Europa, provavelmente através dos cristãos mais devotos ou mesmo dos padres seculares e regulares envolvidos na empresa ultramarina, já que era praxe haver clérigos nas embarcações lusas e espanholas. Os relatos sobre a inobservância dos encomenderos à sua obrigação civilizadora e do afrouxamento das práticas religiosas do clero secular levaram os dominicanos à Hispaniola. Em 1510, os frades rumaram ao Novo Mundo através de um movimento evangelizador que não contava com o estímulo ou anuência da Coroa, ou seja, partia da iniciativa da própria ordem religiosa.16

O objetivo dos dominicanos não era atuar na conversão dos indígenas e sim trabalhar na assistência religiosa dos colonos para lhes recobrar o sentido religioso da empresa ultramarina. Mas, os sermões inflamados que condenavam a violência contra os ameríndios causou a reação dos colonos. O padre Antônio de Montesinos, por exemplo, foi acusado de subverter a ordem e as leis da colônia. A indisposição entre os grupos cresceu de tal modo que Montesinos retornou à Espanha em 1512. Enquanto ele convencia a Coroa a intervir naquela realidade – esforço que resultou na promulgação das Leis de Burgos, que proibiam o castigo físico e a cristianização dos ameríndios –, o então padre secular Bartolomé de Las Casas trabalhava na colônia para que as leis que previam a defesa dos índios fossem respeitadas.17

Se os sermões de Las Casas pareciam não ressoar na colônia, na corte espanhola seus relatos sobre a violência empregada na conquista tinham sérias repercussões. As denúncias sobre a situação deplorável dos índios que viviam sob a tutela dos colonos e a brutalidade praticada com aqueles que viviam nas tribos criaram uma forte atmosfera de indignação. O frade citava as atribuições religiosas da Coroa espanhola concedidas através de inúmeras bulas e asseguradas pelo Patronato Régio para exigir dos Reis Católicos medidas que fizessem da expansão um ato de propagação e defesa da fé cristã.

Entre elas, foi sugerida a definição de um estatuto jurídico do indígena que garantisse um ordenamento social baseado nos princípios universalistas do cristianismo e,

16 Sobre a violência praticada particularmente contra os ameríndios da Hispaniola ver MORALES, S.

1492 e a população indígena do Caribe. In: BONILLA, H. (org.). op. cit., pp. 143-159.

17 Sobre a atuação de Montesinos e Las Casas na defesa dos ameríndios ver FREITAS NETO, J. A. de.

Bartolomé de Las Casas: a narrativa trágica, o amor cristão e a memória americana. São Paulo:

Annablume, 2003, pp. 31-45; e STERN, S. J. Paradigmas da conquista, história, historiografia e política.

In: BONILLA, H. (org.). op. cit., pp. 43-57. Nesse momento, Las Casas era um padre secular. Ele só ingressou na ordem dominicana em 1523.

88 também, a adoção de políticas que colocassem em prática as leis já existentes que previam a liberdade do silvícola.18

Nessa primeira sugestão, Las Casas não conseguiu um resultado imediato, embora tenha suscitado o debate entre juristas e teólogos pela definição de uma identidade jurídica dos habitantes do Novo Mundo. Enunciar, em termos legais, os atributos essenciais que os caracterizavam era uma forma de estabelecer os “limites” das ações dos conquistadores para com os povos conquistados. No entanto, somente no século XVII é que os tratados jurídicos os definiram como “pessoa inferior”: rústica, miserável e menor. Bartolomé Clavero explica que o rústico era aquele sujeito que não partilhava da cultura dos juristas, portanto, que se guiava na sociedade a partir de seus próprios costumes. Por isso, era permitido o seu julgamento e sentença à mercê dos princípios do direito vigente, o que permitia aos juízes atuar sumariamente nos casos que envolvessem os ameríndios. Já o miserável era aquele que não podia garantir seu próprio sustento, portanto, que precisava de amparo especial. Essa era a mesma categoria jurídica dos órfãos e das viúvas, que recebiam assistência de instituições geridas pela Coroa, talvez para que ela própria não assumisse tal responsabilidade. Já a minoridade dizia respeito à limitação da razão. Como a lei entendia que o menor não era capacitado para o exercício de sua própria custódia, sua tutela deveria pertencer a uma família.19

Esse estatuto jurídico refletia os olhares correntes na Europa sobre os povos americanos desde o século XVI e pode ser dimensionado como um esforço dos europeus de compreender e definir um mundo que se abria aos seus olhos para, em seguida, nele poder agir e transformá-lo. Nesse sentido, Ronald Raminelli considerou acertadamente que a visão lançada sobre os ameríndios objetivava organizar o modus operandi dos conquistadores na terra recém-empossada.20 Embora o historiador tenha

18 Sobre as denúncias de Las Casas ver, na íntegra, LAS CASAS, F. B. de (1474-1566). Brevíssima relação da destruição das Índias. Tradução de Júlio Henriques. 2 ed. Lisboa: Antígona, 1997. As sugestões estão contidas em LAS CASAS, F. B. de. Primeiro Tratado: oitavo remédio. Solução definitiva:

acabar com encomienda, feudos e vassalagens dos índios. In: __________. Liberdade e justiça para os povos da América. Oito tratados impressos em Sevilha em 1552. Coordenação geral, instruções e notas do Frei Carlos Josaphat. São Paulo: Paulus, 2010, pp. 31-117. O documento foi redigido em 1542, mas baseado na experiência que o padre viveu na década de 1510 na Hispaniola, como o próprio autor menciona. Sobre o impacto das denúncias de Las Casas na corte espanhola ver ELLIOTT, J. H. A conquista espanhola e a colonização da América... pp. 153-155; e FREITAS NETO, J. A. de. op. cit., pp.

31-45.

19 CLAVERO, B. Espacio colonial y vacío constitucional de los derechos indígenas. Anuario Mexicano de Historia del Derecho. México, v. VI, 1994, pp. 65-72.

20 RAMINELLI, R. Imagens da colonização: a representação do índio de Caminha a Vieira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, pp. 53-69.

89 analisado a colonização portuguesa no Brasil, o caso espanhol torna a assertiva bastante sugestiva, porque o regime de encomienda parecia resolver dois “problemas legais” da Coroa: para garantir o sustento de um ser que era, ao mesmo tempo, “miserável” e

“menor”, bastava transmitir sua tutela para uma família que partilhava da cultura dos juristas: o homem branco, letrado e cristão.

Não podemos perder de vista, no entanto, que o mesmo olhar etnocêntrico que deu origem à condição de minoridade do indígena não estava desassociado do intuito de justificar a sua civilização. Os ameríndios eram definidos como bárbaros e ignorantes porque não estruturavam sua sociedade em instituições como os conquistadores e, igualmente, não viviam a partir das premissas de civilização correntes na Europa.21 Segundo Norbert Elias, “civilização” era um conceito que expressava a consciência que o Ocidente tinha de si mesmo e que caracterizava os europeus e os orgulhava, um reflexo do seu sentimento de superioridade em relação às sociedades antigas ou contemporâneas tidas como primitivas. Embora o conceito sofresse variações em cada país, de um modo geral expressava a diferença entre os povos, que era medida no sistema político e no nível de desenvolvimento tecnológico e de cultura científica.

Dessa concepção nascia outra, que era a presunção na responsabilidade de minimizar as desigualdades entre os povos a partir do estabelecimento do “dever ser” ocidental ao

“outro”, o que dependia da imposição dos elementos que compunham a forma social Ocidental entendida como mais complexa e desenvolvida: instituições, costumes, valores, moral, visão de mundo e religião.22

Nesse sentido, a transferência da tutela de um ser “menor” e “miserável” aos colonos também revelava o compromisso régio de colocar o “rústico” aos cuidados de quem pudesse lhes transmitir os hábitos, os costumes e os valores ibéricos. Para além de representar uma manobra para explorar a mão-de-obra indígena, era uma medida que

21 É conhecida a vasta literatura quinhentista que, no Brasil, classificou o ameríndio como um ser bestial e selvagem e que muito contribuiu para a legitimação da evangelização como uma obra civilizadora dos habitantes da colônia. Dentre os principais escritos destacam-se GÂNDAVO, P. de M. de. A primeira história do Brasil: história da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos de Brasil.

Modernização do texto original de 1576 e notas, Sheila Moura Hue, Ronaldo Menegaz; revisão das notas botânicas e zoológicas, Ângelo Augusto dos Santos; prefácio, Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004; KNIVET, A. As incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knivet: memórias de um aventureiro inglês que em 1591 saiu de seu país com o pirata Thomas Cavendish e foi abandonado no Brasil, entre índios canibais e colonos selvagens. Organização, introdução e notas: Sheila Moura Hue;

tradução: Vivien Kogut Lessa de Sá. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007; STADEN, H. Viagem ao Brasil.

Versão do texto de Marpurgo, de 1557, por Alberto Löfgren. Revista e anotada por Theodoro Sampaio.

Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1989; e SOUSA, G. S. de. op. cit.

22 ELIAS, N. O processo civilizador: uma história dos costumes. v. 1. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1994, pp. 23-27.

90 conciliava os interesses dos grupos envolvidos em uma empreitada que enfeixava sentidos materiais e espirituais.

Indício disso é que, somente a partir do momento em que os católicos mais fervorosos apontaram a ineficiência do regime de encomienda para a civilização do silvícola é que a Coroa trabalhou para criar outros mecanismos que, ao mesmo tempo em que permitiam a sua inserção na lide colonial, também garantiam a salvação de um ser definido como “pagão”. E a política adotada nesse sentido parece ter nascido como um reflexo da militância de Las Casas: a evangelização sistemática dos ameríndios, uma proposta do frade de promover uma colonização de forma pacífica.

Las Casas esteve na Espanha em 1515 e sugeriu a Carlos V a criação de uma espécie de pueblo no qual viveriam apenas indígenas e sacerdotes. Eles seriam evangelizados e, eles próprios, desenvolveriam as atividades de exploração da terra conforme as necessidades do reino. O padre obteve a autorização do monarca e, em 1517, levou o projeto a cabo em um pequeno território na atual Venezuela, a chamada Terra Firme. Inicialmente, a forma de redução de Las Casas foi bem sucedida e contou com o apoio de missionários dominicanos. Porém, a indisposição dos colonos em desenvolver a proposta e a distância da comunidade dos centros administrativos e econômicos da colônia dificultaram sua sobrevivência. Em 1520, alguns franciscanos e colonos se envolveram no projeto para sustentar a forma de “colonização pacífica”, mas em 1522, indígenas hostis à presença do homem branco invadiram e destruíram a organização social criada por Las Casas.23

A iniciativa de Las Casas, mesmo que malsucedida, apontava para a Coroa que a cristianização dava condições, aos silvícolas, de conhecer e aceitar a nova realidade imposta pelos ibéricos. Em 1523, autoridades régias sugeriram o envio de missionários da ordem franciscana para converter os povos que viviam no México alegando justamente que o território conquistado em 1519 podia ser pacificado se os povos da região fossem cristianizados.24

Inicialmente foram enviados doze missionários que, em 1524, aportaram no Novo Mundo como funcionários régios, isto é, atuando sob a gerência da Coroa espanhola e sob os ditames do Patronato. Eles ergueram um convento no México e se

23 Ver LAS CASAS, F. B. de. op. cit., pp. 47-82; e FREITAS NETO, J. A. de. op. cit., pp. 45-47. O fracasso da empreitada levou Las Casas a ingressar na ordem dominicana em 1523, onde obteve apoio para redigir suas obras e tratados a favor da defesa dos indígenas.

24 Ver QUIÑONES, F. de los A. “Instrução” e “Obediência” do Ministro Geral Francisco de los Angeles Quiñones a Martín de Valência, integrante e custódio dos doze franciscanos enviados para evangelizar os habitantes de Tenochtitlan conquistado. In: SUESS, P. (coord.). op. cit., 423.

91 dedicaram à conversão dos nativos. A atividade parece ter se mostrado eficiente à conquista territorial e à submissão dos nativos à ordem estabelecida pelos espanhóis, uma vez que, em 1526, os dominicanos iniciaram suas atividades na América com os mesmos objetivos e sob as mesmas condições que os franciscanos. Mais tarde, em 1533, os agostinianos começaram a missionar e efetivaram a evangelização como um elemento da política ultramarina da Coroa espanhola.25

Três décadas depois da chegada de Colombo na América, a atividade missionária encabeçada pelo clero regular e voltada à sistemática cristianização dos ameríndios enfim se consolidou como um elemento da política ultramarina da Coroa espanhola. O Patronato lhe conferia o direito de gerenciar a Igreja em seus domínios ultramarinos, e a subordinação das ordens religiosas ao Conselho das Índias garantia aos monarcas um significativo poder sobre a evangelização, uma vez que as congregações só atuavam nas regiões indicadas pelo órgão. De qualquer modo, em função do caráter missionário que passou a revestir a colonização, as ordens mendicantes alcançaram um enorme poder na vida política do império: definiram que o fundamento da conquista

Três décadas depois da chegada de Colombo na América, a atividade missionária encabeçada pelo clero regular e voltada à sistemática cristianização dos ameríndios enfim se consolidou como um elemento da política ultramarina da Coroa espanhola. O Patronato lhe conferia o direito de gerenciar a Igreja em seus domínios ultramarinos, e a subordinação das ordens religiosas ao Conselho das Índias garantia aos monarcas um significativo poder sobre a evangelização, uma vez que as congregações só atuavam nas regiões indicadas pelo órgão. De qualquer modo, em função do caráter missionário que passou a revestir a colonização, as ordens mendicantes alcançaram um enorme poder na vida política do império: definiram que o fundamento da conquista