• Nenhum resultado encontrado

A MISSIONAÇÃO JESUÍTICA EM TEMPOS DE PRIVILÉGIO

2.1. ORGANIZANDO A MISSÃO

Quando a Companhia de Jesus iniciou suas atividades nos domínios de Portugal, a ordem (tampouco a Igreja e a própria Coroa portuguesa) não tinha um plano pré-delineado para a atividade evangelizadora. Quando os primeiros jesuítas desembarcaram no Oriente e no Novo Mundo, eles não contavam com nenhum documento régio ou institucional que lhes oferecesse normas de ação ou que ditasse os limites da atividade apostólica. Isso fez com que a evangelização fosse construída a partir de tomadas de decisões possíveis diante das mais distintas realidades políticas, sociais e culturais que os missionários encontraram.42

Diante da dimensão do evento, e dos desafios que a empreitada colocava, os jesuítas tomaram como referência, como veremos, as diferentes experiências missionárias vividas pela Igreja ao longo de sua história. Também, contavam com as próprias experiências vividas que eram trocadas através da correspondência.

Por estarem presentes em quatro continentes, os jesuítas baseavam suas ações nos documentos normativos da ordem, e o principal deles era as Constituições da Companhia de Jesus, que orientava o desenvolvimento espiritual do inaciano e, também, ditava normas institucionais sobre a admissão, o voto de pobreza, o exame e os motivos de dispensa dos noviços; a formação dos admitidos; as atribuições do Geral da Companhia; a catequização das crianças; e o modo de vestir, de celebrar missas, entre outras atribuições dos padres e irmãos inacianos.43

Ocorre que esses documentos normativos não existiam quando os missionários se espalharam pelo Globo na década de 1540. Inácio de Loyola iniciou a redação das Constituições em 1547 e as promulgou em 1552. O padre continuou a revisar e retocar o

42 Como é possível apreender nas cartas jesuíticas, no máximo os missionários chegavam aos domínios ultramarinos portando cartas de D. João III que sugeriam a acolhida dos padres e o favor do poder secular à atividade evangelizadora. Havia, também, Regimentos dirigidos às posses ultramarinas que faziam menções à importância da evangelização, mas que não definiam seus objetivos, princípios, regras e limites.

43 Ver LOYOLA, I. de. Constituições da Companhia de Jesus e normas complementares... pp. 71-251. O documento ainda está em vigência e a ele são integradas normas complementares estabelecidas nas Congregações Gerais da Companhia de Jesus.

44 documento até sua morte em 1556, e essa versão final circulou em manuscrito até 1558, quando finalmente foram impressas as primeiras Constituições em latim.44

Desse modo, até 1558, os missionários se valiam do Exame, um manual que ditava quem devia entrar na Companhia e o que era a ordem até que ficassem prontas suas Constituições, ou seja, um documento que trazia informações como a finalidade e as normas básicas da ordem. Mas, como ele não previa resolução para os mais complexos problemas encontrados pelos missionários, era a correspondência que exercia o fundamental papel de orientar o andamento das missões.45

Em 1547, o padre Juan de Polanco46 publicou uma circular que instituía a obrigatoriedade de se escrever cartas e explicando as razões pelas quais os jesuítas deveriam escrevê-las. Entre elas, o crescimento externo da ordem, porque mostrando o bom trabalho seriam angariadas doações ou noviços; e o crescimento do escritor, pois nas cartas ele deveria demonstrar sua vocação, humildade e diligência, atributos essenciais para inspirar os irmãos que as lessem. Por isso, quando da formação, os missionários eram instruídos das normas de redação de cartas, já que elas tinham finalidades definidas: edificar e informar.47

As chamadas “cartas principais” pelos inacianos eram cartas de edificação que traziam informações bastante detalhadas sobre o cotidiano das missões, além de dados sobre as casas, alimentação, vestuário, características físicas e climáticas da terra e do

“gentio”, além de mostras da ajuda celeste na atividade missionária. Por isso, as cartas que chegavam do ultramar eram vertidas para o latim e enviadas às outras missões jesuíticas espalhadas pelo mundo para serem lidas a um público amplo, normalmente durante a ceia.

44 Ver LEITE, S. S.J. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo I. Livro I. Reedição da primeira edição de 1938. São Paulo: Edições Loyola, 2004, pp. 04-05.

45 Por ser um documento informativo que oferece aos candidatos uma visão geral da Companhia de Jesus, o Exame transformou-se na introdução das Constituições com o título Primeiro Exame Geral que se há de propor a todos os que pedirem a admissão na Companhia de Jesus. O documento pode ser visto em LOYOLA, I. de. Constituições da Companhia de Jesus e normas complementares... pp. 39-70.

46 Juan de Polanco, na ocasião, era secretário pessoal de Inácio de Loyola, o fundador e o primeiro Geral da ordem. Confira no Anexo IV a lista dos padres Gerais da Companhia de Jesus entre 1540 e 1645.

47 Em 1560, Manoel da Nóbrega, então Provincial do Brasil, deu conta da chegada desta circular ao Brasil e disse ao Superior de Portugal que todos os seus padres cumpririam à risca o que se pedia. Ver NÓBREGA, M. da. Ao P. Geral Diogo Láinez. Da Baía, 30 de Julho de 1560. In: LEITE, S. S.J. (org.).

Novas cartas jesuíticas (de Nóbrega a Vieira). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1940, p. 89. Em razão da obrigatoriedade de escrever cartas, os jesuítas produziram uma quantidade impressionante delas.

A ordem foi zelosa no registro de boa parte dessas cartas que estão presentes na Monumenta Historia Societatis Jesu, publicação composta por 80 volumes que conta a história da Companhia de Jesus em todas as regiões em que atuou no mundo da Época Moderna.

45 Para a Companhia de Jesus, essa forma de escrita permitia que tantos os membros da ordem quando leigos lessem as cartas. Isso porque, como eram impessoais, visavam dar mostra de exemplo e estímulo aos demais jesuítas e, ao mesmo tempo, fomentar a vocação religiosa de leigos e fazer uma espécie de propaganda da congregação a fim de conseguir ajudas perenes para as missões, como orientado por Juan de Polanco. Em razão disso, a cúria jesuítica alterava os sentidos das cartas de acordo com a recepção: eram retirados os trechos que não comprometessem a edificação do leitor, principalmente se elas fossem publicadas em forma de livro para um público amplo.48

Evidentemente, não eram publicadas ou enviadas para as demais missões as chamadas “anexas”, epístolas que tratavam de assuntos relativos aos problemas das missões e que deveriam ser escritas separadamente e anexadas às “cartas principais”.

Essas eram as cartas de negócio que levavam aos Gerais da Companhia de Jesus dúvidas quanto à administração e o funcionamento da ordem no além-mar, bem como questões doutrinais que surgiam no trabalho evangelizador. Por isso, a responsabilidade em escrevê-las era, normalmente, dos padres Superiores de Missão e dos Provinciais.

Por ser um instrumento privado de comunicação, era utilizada pelos jesuítas para tratar de assuntos “políticos” e, principalmente, para substituir a visita pessoal da cúria jesuítica em todas as missões.49

Mas, independentemente do modelo das cartas, pode-se considerar que, no início da missionação, foram as cartas que orientaram as ações dos inacianos diante dos

48 Em 2006 foi publicada, no Brasil, uma edição de cartas de edificação escritas pelos missionários que atuaram no Brasil Colonial e que entrou em circulação na Europa no início da década de 1550. Trata-se de HUE, S. M. (org.). Primeiras cartas do Brasil (1551-1555). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

Comparando algumas cartas publicadas nesta edição com as de outras coleções é possível identificar as alterações que essas sofreram, como a retirada de pequenos trechos.

49 As questões relativas à instituição epistolar da Companhia de Jesus são discutidas em ASSUNÇÃO, P.

de. Negócios jesuíticos... pp. 225-288; CASTELNAU-L’ESTOILE, C. de. Operários de uma vinha estéril: os jesuítas e a conversão dos índios no Brasil – 1580-1620. Bauru: Edusc, 2006, pp. 72-76;

EISENBERG, J. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aventuras teóricas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000, pp. 46-58; GAMBINI, R. O espelho índio: os jesuítas e a destruição da alma indígena. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1988, pp. 69-71; HANSEN, J. A. O nu e a luz: cartas jesuíticas do Brasil. Nóbrega, 1549-1558. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, n. 38, 1995, pp. 87-119; HANSEN, J. A. A escrita da conversão. In: COSTIGAN, L. H. (org.).

Diálogos da conversão: missionários, índios, negros e judeus no contexto ibero-americano do período barroco. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005, pp. 15-43; LONDOÑO, F. T. Escrevendo cartas.

Jesuítas, escrita e missão no século XVI. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 22, n. 43, 2002, pp.

11-32; LUZ, G. A. Carne humana: canibalismo e retórica jesuítica na América portuguesa (1549-1587).

Uberlândia: EDUFU, 2006, pp. 55-57; MOREAU, F. E. Os índios nas cartas de Nóbrega e Anchieta. São Paulo: Annablume, 2003, pp. 52-57; POMPA, C. Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial. Bauru: EDUSC/ANPOCS, 2003, pp. 81-84; e SABEH, L. A. Colonização salvífica...

pp. 40-49.

46 mosaicos étnicos e culturais encontrados na Ásia, África e América. Elas não só ajudaram a definir um modus procedendi na evangelização comum a todos esses espaços como também contribuíram para a redação das Constituições. E, mesmo depois de publicado esse que era o principal documento normativo da congregação, manteve-se a obrigatoriedade de escrita das cartas, uma vez que o relato da vivência em mundos incógnitos e a troca de informações entre os missionários lhes permitia identificar as peculiaridades da missionação nas regiões onde atuavam, assim como os elementos comuns de um empreendimento que ocorria em quatro continentes.

Além das cartas, os inacianos se apoiavam nas obras de teoria da evangelização elaboradas a partir da renovação da vida religiosa promovida por Francisco de Assis e de Domingos de Gusmão no século XII. Alguns de seus seguidores fizeram da pregação uma ação fundamentada em doutrinas que mesclavam teses teológicas, científicas e políticas, caracterizando-a, pela primeira vez na história da Igreja, por seu rigor científico. Os franciscanos Roger Bacon (1214-1294) e Raimundo Lúlio (1232-1315), assim como o dominicano Tomás de Aquino (1225-1274), dedicaram parte de seus estudos para firmar a evangelização como um ideal cristão. Suas obras ofereciam tanto argumentos legitimadores da atividade quanto orientações teológicas para os missionários atuarem diante dos “infiéis” e dos “pagãos” (os “gentios”).50 Nos séculos XIII e XIV, textos como a Suma contra os gentios, Razões da fé contra os sarracenos (ambas de Tomás de Aquino), Aspecto geográfico da Terra Santa (Roger Bacon) e Ars generalis (Raimundo Lúlio) eram leituras obrigatórias para sacerdotes cristãos que percorriam a Europa pregando e, principalmente, para aqueles que seguiam as rotas comerciais italianas para chegar à Ásia e ao norte da África.51

No século XVI, esse conjunto doutrinário também constituía a principal base teórica dos inacianos porque lhes oferecia um princípio de ação que, aliás, era o mesmo que norteava a Reforma Católica: o dogma da salvação. A tradição católica indicava que os evangelizadores só conquistariam a salvação dos indivíduos quando a eles

50 No século XIII, o termo “infiel” era empregado para designar o indivíduo que conhecia a fé cristã, mas que negava seus princípios e dogmas para professar qualquer outra religião que os cristãos considerassem

“falsa” ou “deformada”. Por isso, o mesmo termo era usado para fazer menção aos muçulmanos, tanto os da Península Ibérica quanto os do Oriente Médio. Já o termo “pagão” era usado para nomear os povos que não conheciam a religião cristã e que, no entender dos missionários, deveriam ser convertidos. Nesse período, tanto os “infiéis” quanto os “pagãos” eram considerados como “gentios”, já que, em termos teológicos, a palavra era genérica e usada para referenciar qualquer povo não cristão, obedecendo o emprego dado por Paulo de Tarso ao termo: o não judeu a ser convertido à fé do Salvador.

51 Sobre os processos evangelizadores de franciscanos e dominicanos na Ásia e no norte da África nos séculos XIII e XIV ver DANIEL-ROPS. A Igreja das catedrais e das Cruzadas. São Paulo: Quadrante, 1993, pp. 536-575.

47 oferecessem os sacramentos. Dentre eles, o batismo tinha uma maior preponderância porque, além de oferecer a redenção para o pecado original, assinalava a entrada oficial do fiel na Igreja. O Decreto sobre a Salvação editado no Concílio de Trento, por exemplo, informava que a salvação “não se pod[ia] conseguir, depois de promulgado o Evangelho, sem o batismo, ou sem o desejo de ser batizado”.52

Essas orientações encontravam respaldo nos escritos de Tomás de Aquino, que sugeriam a necessidade dos sujeitos manifestarem o desejo de serem cristãos antes de receberem o sacramento. Isso porque a doutrina definia que, uma vez batizados, os indivíduos ficavam obrigados a agir de acordo com os princípios do catolicismo, e o retorno ao pecado representava o rompimento da fidelidade estabelecida com Cristo e sua Igreja através do sacramento primeiro.53 Assim, a fim de evitar essa falta, o teólogo indicou que a persuasão era o instrumento justo da conversão dos pagãos. Por serem definidos como inocentes do pecado de negar a fé de Cristo por não conhecê-la, mas herdeiros do pecado dos seus antepassados, eles deveriam ser induzidos a abraçarem a religião cristã para serem salvos através do batismo.54

As instruções salvíficas ditadas por Tomás de Aquino e corroboradas pelas resoluções tridentinas deixam evidente que, de acordo com a tradição católica, seria através da persuasão que um missionário despertaria a vontade de um “gentio” de receber o batismo. Além disso, a orientação era para que eles fossem evangelizados somente quando manifestassem o desejo de receber o sacramento. Este era o momento da catequese, que para os missionários significava uma preparação dos catecúmenos ao recebimento da instituição salutar. A doutrina ainda indicava que, somente a partir do momento em que os catecúmenos demonstrassem conhecer os princípios do catolicismo

52 APOSTOLADO V. S. (org.). Documentos do Concílio Ecumênico de Trento. 1º Período (1545-1547):

Sessão VI. Direção de Carlos Martins Nabeto e tradução de Dercio Antonio Paganini. Disponível em http://www.veritatis.com.br/doutrina/documentos-da-igreja. Acesso em 21/12/2012, p. 02.

53 O Cânon XX sobre a Salvação previa a excomunhão daquele que dissesse que “o homem salvo (...) não é obrigado a observar os mandamentos de Deus e da Igreja, (...) como se o Evangelho fosse mera e absoluta promessa de salvação eterna sem a condição de guardar os mandamentos”. Ver APOSTOLADO V. S. (org.). Documentos do Concílio Ecumênico de Trento. 1º Período (1545-1547): Sessão VI... p. 09.

54 AQUINO, T. de. Suma Teológica. Tomo VII. Madri: La Editorial Católica, 1959. 2-2, q. 6 e 10. ap.

EISENBERG, J. op. cit., p. 66. É importante ressaltar que, em 1567, o papa Pio V (1566-1572) declarou o teólogo como o Doutor da Igreja. Dentre as preocupações da Santa Sé na Reforma Católica estava a formação intelectual do clero baseada na escolástica. Por isso, as obras do teólogo foram reeditadas, tais como o Catecismo, o Breviário, o Missal e a Suma Teológica. Nascida com um espírito reformador, a Companhia de Jesus formava seus membros a partir dos escritos tomistas. Sobre a questão ver COSTA, C. J. A racionalidade jesuítica na educação dos índios brasileiros (século 16). Em aberto. Brasília, v. 21, n. 78, dezembro 2007, pp. 99-101.

48 é que poderiam ser batizados, ou seja, convertidos e, consequentemente, salvos do pecado original.55

Avaliando os aspectos gerais da missionação jesuítica no império português entre 1542 e 1580,56 é notório que a doutrina da salvação estabeleceu uma lógica de ação na evangelização, o que não implicou, necessariamente, em uma uniformidade na atividade da ordem nas diferentes regiões da Ásia, África e América. Isso porque a execução dos planos evangelizadores obedecia a outra lógica que não a da soteriologia católica: a relação que Portugal estabelecia com as regiões onde os missionários atuavam. Assim, enquanto os preceitos salvíficos orientavam a definição de um modus procedendi, a efetivação dos planos traçados para a conversão era condicionada pela maior ou menor presença oficial da Coroa portuguesa nas regiões onde os missionários atuavam.

A compreensão desses elementos condicionantes da missionação jesuítica nesse período de privilégio emerge quando colocamos a ação dos inacianos nos domínios portugueses em comparação com a evangelização realizada em regiões onde a Coroa portuguesa não exercia domínio político efetivo, mas apenas estabelecido relações diplomáticas.