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OS JESUÍTAS NAS FRONTEIRAS

3.1. A CAMPANHA ANTI-FILIPE II DOS JESUÍTAS DE PORTUGAL

A compreensão dos fatores que explicam o fim do privilégio jesuítico na evangelização nos remete a um importante episódio do processo que levou à anexação da Coroa portuguesa pela Espanha. Em razão dos seus protagonistas, o fato pode ser elencado como uma das principais razões para a abertura promovida por Filipe II no campo missionário dos domínios ultramarinos que pertenciam a Portugal: a campanha anti-Filipe II encabeçada pelos jesuítas na crise sucessória de 1580 em Portugal.

Com as mortes de D. Sebastião (1554-1578) e de D. Henrique I (1578-1580), a Coroa portuguesa passou a ser reivindicada por D. Catarina, duquesa de Bragança; D.

Antônio de Portugal; e D. Filipe II, rei de Espanha. Jacqueline Hermann explica que antes de ser instaurada uma situação política de instabilidade e incerteza em Portugal, Filipe II já acompanhava de perto os movimentos que se desenrolavam na corte portuguesa. Em 1565, ano em que D. Antônio contrariou o desejo do cardeal D.

Henrique (seu tio e futuro rei) de ser ordenado sacerdote para que pudesse assumir o arcebispado de Évora, o monarca espanhol intercedeu a favor de D. Antônio, que era seu primo. O episódio, segundo Hermann, permitiu Filipe II intervir em um negócio do reino luso não apenas na condição de mediador em um assunto de família, como também como um articulador político entre as duas Coroas, porque “encontrava a brecha perfeita para interferir diretamente nas questões internas da corte portuguesa, agindo como um conselheiro generoso e magnânimo”.2

A intervenção permitiu a Filipe II ter D. Antônio, que mais tarde exerceu cargos importantes no reinado de D. Sebastião, como um informante privilegiado acerca dos assuntos políticos da Coroa de Portugal. Porém, com a morte do Desejado, o primo fez uma das maiores forças a ser enfrentada pelo monarca Habsburgo na disputa pelo trono português. Com o apoio de muitos nobres reivindicou a Coroa portuguesa e, mesmo assediado pelo primo a cedê-la a se favor em troca de benefícios, declarou guerra a

2 HERMANN, J. Um rei indesejado: notas sobre a trajetória política de D. Antônio, Prior do Crato.

Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 30, n. 59, 2010, p. 147.

82 Filipe. Em julho de 1580, quando D. Antônio se proclamou rei, Filipe II invadiu Portugal e obrigou o então D. Antônio I a fugir e a protagonizar um reinado efêmero.3

Porém, D. Antônio não foi a única força que o monarca espanhol teve que enfrentar para anexar a Coroa de Portugal. Quando foi aberta a disputa pela sucessão dinástica, tanto o clero secular quanto o regular apoiaram a ascensão de um português ao trono. No entanto, mais do que apoiar D. Antônio ou D. Catarina, eles iniciaram um movimento para incitar os lusitanos contra Filipe II, e os líderes da campanha foram os padres da Província jesuítica de Portugal.4

Estudos historiográficos indicam que o clero português tinha uma série de regalias quando do início da crise sucessória, tais como o exclusivismo de naturalidade na ocupação dos principais cargos da Igreja em Portugal e na gerência da estrutura eclesiástica nos domínios portugueses do Oriente. O documento Concórdia de 1578 assinado por D. Sebastião assegurava direitos conquistados pelos eclesiásticos junto à Coroa e ao papado. Além de amplos poderes jurídicos e privilégios fiscais, o clero estava isento de reverter parte de sua renda à Coroa, diferentemente do que ocorria no reino vizinho. Conforme a indicação de José Soria, desde o século XV, Castela se preocupou em intervir e controlar os assuntos eclesiásticos, enquanto o clero português conseguiu manter significativa autonomia na definição de diretrizes fiscais e jurídicas para a atuação da Igreja em solo luso.5

Como vimos, dentre todas as ordens religiosas e o clero secular luso, os jesuítas tinham maior influência e poder: eles eram confessores dos reis portugueses e haviam alcançado uma posição invejável na corte. Além disso, tinham influência política, o domínio das universidades, privilégios fiscais e bens, muitos deles transferidos de outras ordens religiosas a mando da própria Coroa e da Santa Sé. Mas, a expressão máxima

3 Ver HERMANN, J. Um rei indesejado... pp. 143-155.

4 Vale lembrar que a Companhia de Jesus estava dividida em Províncias, cada uma subordinada a poderes temporais diferentes. John W. O’Malley indica que as primeiras Províncias da ordem foram as de Portugal, Castela e Índia. Em 1553 foram fundadas as do Brasil, Aragão e Itália (sua jurisdição não abrangia Roma, que era a sede da Companhia). Três anos mais tarde passaram a funcionar as Províncias da Sicília, França, Andaluzia e Etiópia. Ver O’MALLEY, J. W. Os primeiros jesuítas. São Leopoldo:

Editora UNISINOS; Bauru: EDUSC, 2004, pp. 86-102.

5 NIETO SORIA, J. M. Las monarquías castellana y portuguesa a fines del medievo: algunas perspectivas para una historia comparativa. História: Questões & Debates. Curitiba, n. 37, 2002, pp. 27-28. Sobre a situação do clero português no século XVI ver ASSUNÇÃO, P. de. Negócios jesuíticos: o cotidiano da administração dos bens divinos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004, pp. 87-147;

BOUZA, F. D. Filipe I. Lisboa: Círculo de Leitores, 2005, pp. 111-122; e PALOMO, F. Para el sosiego y quietud del reino. En torno a Felipe II y el poder eclesiástico en el Portugal de finales del siglo XVI.

Hispania. Revista Española de Historia. Madri, v. 64, n. 216, 2004, pp. 63-93 (o documento A Concórdia de 1578 é estudado neste artigo, p. 69). As informações relativas à campanha antifilipina comentadas adiante em nosso texto estão contidas nesses estudos.

83 desse poder talvez estivesse mesmo na exclusividade dos inacianos de atuarem na conversão dos nativos nas missões de além-mar, o que reservava ao clero secular a função de prestar assistência religiosa aos colonos.

Diante da possibilidade de ascensão de um monarca espanhol a um trono que era, ao mesmo tempo, o propagador e o escudo da Companhia de Jesus, os inacianos iniciaram um movimento antifilipino na disputa pela sucessão dinástica. Eles usavam o púlpito para incitar o povo a reclamar o trono a um natural, velando a campanha contra Filipe II sob a forma de uma defesa de coroação de um português. Os pregadores recorreram à difamação da Casa de Habsburgo e à propagação de boatos de que D.

Sebastião voltaria da África, já que sua morte não havia sido confirmada. Mais tarde, como é sabido, o boato viraria a profecia do sebastianismo que revestia o movimento político de rejeição ao governo Habsburgo em Portugal.6

O clero secular e membros das ordens religiosas também engrossaram o coro antifilipino. O primeiro grupo temia perder a totalidade de suas rendas e o exclusivismo de naturalidade. Já o segundo receava ser equiparado ao clero regular espanhol, que era subordinado juridicamente ao poder secular e dependente de sua gerência financeira.

Por ser a tribuna eclesiástica uma arma difícil de ser combatida, o corpo diplomático de Filipe II passou a negociar com nobres e com mercadores portugueses para fazer frente à disputa da sucessão dinástica. Muitos deles estavam ou já envolvidos ou ainda interessados na lide colonial e não viam com bons olhos a atuação dos jesuítas, que agiam contra a política mercantilista baseada na exploração da mão de obra escrava de alguns povos de além-mar, principalmente a de ameríndios. Portanto, eles constituíam um grupo de apoio importante não somente a favor do monarca espanhol, mas principalmente contra os eclesiásticos portugueses. Visando ainda anular o poder de ação dos religiosos no púlpito, os diplomatas espanhóis garantiram ao alto clero luso a manutenção dos privilégios adquiridos e assegurou que honraria o intento salvífico dos portugueses favorecendo a propagação da fé no Oriente.

Filipe II venceu a disputa pelo trono português e as Cortes de Tomar garantiram a situação fiscal do clero português, assim como seus direitos de atuação jurídica e o exclusivismo de natureza na ocupação de cargos da Igreja em Portugal e seus domínios.

Em 1581, o monarca concedeu perdão público aos padres seculares, dominicanos, carmelitas, jerônimos e agostinhos por terem defendido a coroação de um português,

6 Sobre o tema ver HERMANN, J. No reino do desejado: a construção do sebastianismo em Portugal (séculos XVI e XVII). São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

84 mas não aos jesuítas. Aliás, o então Filipe I de Portugal não só deixou de conceder clemência aos membros da Companhia de Jesus como interferiu junto ao papa com o intuito de rever os privilégios que os inacianos haviam conquistados da Coroa portuguesa. Paulo de Assunção indica que o rei não conseguiu anular tais benefícios, mas também não criou oportunidades para que a ordem aumentasse seu poder político em Portugal e domínios de além-mar.7