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OS JESUÍTAS NAS FRONTEIRAS

3.3. A COMPANHIA DE JESUS NOS DOMÍNIOS DA CASA DE HABSBURGO

As diretrizes colonizadoras estabelecidas nas Ordenanzas de descubrimiento impactaram na posição dos inacianos dentro do império espanhol. Até 1573, os padres da Assistência jesuítica da Espanha tinham um papel secundário na Espanha e em sua colônia americana. Os primeiros inacianos haviam chegado a Castela em 1543 e logo fundaram colégios. Sob a orientação de importantes nomes da ordem, como Francisco Villanueva e Francisco de Borja, foram abertos os colégios de Barcelona, Alcalá, Valladolid e Valência. Em 1547, foi criada a Província jesuítica da Espanha, porém, menos de um ano depois, surgiram os primeiros críticos da Companhia de Jesus no reino. Teólogos usaram o púlpito e folhetins para refutar os princípios teológicos que norteavam os fundamentos da nova congregação e os Exercícios Espirituais34 de Inácio de Loyola. Com a expansão dos colégios jesuíticos no reino a partir de 1553 (ano da promulgação das Constituições da Companhia de Jesus), importantes membros do alto clero espanhol e das ordens mendicantes (principalmente dominicanos e agostinianos) reagiram contra a presença da Companhia de Jesus na Espanha, o que talvez tenha adiado a entrada dos inacianos na América espanhola. Por esta razão, o trabalho da

32 Ver FILIPE II. Ordenanzas de descubrimiento, nueva población y pacificación de las Indias dadas por Felipe II, el 13 de julio de 1573, en el bosque de Segovia. In: PADRÓN, F. M. Teoría y leyes de la conquista. Madrid: Cultura Hispánica del Centro Iberoamericano de Cooperación, 1979, pp. 489-518.

33 Ver BOXER, C. R. A Igreja militante e a expansão ibérica... pp. 91-97.

34 Loyola redigiu seus Exercícios Espirituais entre 1521 e 1524. Tratava-se de um manual devoto para a prática de exercícios diários de oração com a finalidade de purificação do coração e da busca da santificação pessoal. Ver LOYOLA, I. de (1491-1556). Exercícios Espirituais. Apresentação, tradução e notas do Centro de Espiritualidade Inaciana de Itaici. 2 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

95 ordem teria se baseado na formação religiosa (catequese), na pregação pelas cidades e vilarejos espanhóis e em trabalhos assistenciais em cadeias e hospitais.35

Javier Sánchez explica que os jesuítas só passaram a exercer influência significativa na Coroa espanhola no final do reinado de Felipe III (1598-1621). Isso porque Margarida de Áustria, antes de se casar com o monarca, tinha como confessor um jesuíta. Após sua união com Filipe III, por influência da rainha, muitos nobres espanhóis passaram a ter jesuítas como confessores, embora o monarca ainda não tivesse confiança na ordem religiosa. Mas, durante a Guerra dos Trinta Anos, os jesuítas agiram em defesa do “Rei Católico” em várias regiões da Europa, o que pode ter contribuído para os padres ganharem espaço na vida política castelhana. Durante o reinado de Filipe IV (1621-1640), os inacianos passaram a atuar na formação da elite de governo da Corte através de um projeto criado para este fim e que foi denominado Estudios Generales o Reales.36

Os inacianos, porém, demoraram menos tempo para começar a atuar na porção espanhola da América. O número reduzido de missionários de outras ordens religiosas contribuiu para que, em março de 1566, Filipe II solicitasse à cúria jesuítica 24 padres para atuar nas regiões americanas a serem indicadas pelo Conselho das Índias. Em função do regime da encomienda, os colonos eram obrigados a converter e oferecer assistência religiosa aos ameríndios sob suas responsabilidades e, por isso, reivindicavam a ampliação da estrutura eclesiástica no Novo Mundo.37

Nos primeiros anos de atividade na América, os jesuítas atuaram justamente em áreas onde os colonos reclamavam a falta de escolas e de igrejas. Os padres se dedicaram ao ensino e às missões itinerantes (que visavam a pregação e a aplicação de sacramentos, principalmente da confissão) em regiões onde franciscanos, dominicanos e agostinianos não conseguiam socorrer em função do número reduzido de missionários.38 De acordo com Charles Boxer, os jesuítas da Espanha “nunca alcançaram (...) a mesma

35 Ver ASTRAIN, A. S.J. Historia de la Compañía de Jesús en la Asistencia de España. Tomo I. 2 ed.

Madri: Administración de Razón y Fe, 1912, pp. 259-278.

36 SÁNCHEZ, Javier Burrieza. La Compañía de Jesús y la defensa de la monarquía hispánica. Hispania Sacra. Madrid, v. 60, n. 121, junho/2008, pp. 198-218.

37 A solicitação do monarca pode ser vista na instrução que Francisco Borja, Geral da Companhia de Jesus entre 1565 e 1572, deu aos primeiros jesuítas enviados para a América espanhola em 1567: BORJA, F. Instrução de Francisco Borja, Geral da Companhia de Jesus, a Jerónimo Ruíz de Portillo, primeiro Provincial das missões jesuíticas nas Américas (1567). In: SUESS, P. (coord.). A conquista espiritual da América espanhola. 200 documentos – Século XVI. Petrópolis: Vozes, 1992, pp. 562-563.

38 Esses temas são discutidos em ASTRAIN, A. S.J. Historia de la Compañía de Jesús en la Asistencia de España. Tomo I... pp. 259-278, pp. 321-340 e pp. 385-437; e ASTRAIN, A. S.J. Historia de la Compañía de Jesús en la Asistencia de España. Tomo II. Madri: Administración de Razón y Fe, 1914, pp. 501-552.

96 preponderância que tiveram na Ásia portuguesa, no Brasil e no Maranhão. Na América hispânica (...) tiveram de competir com os frades das ordens mendicantes que lá estavam muito mais firmemente estabelecidos”.39

Ao chegarem ao Vice-reino do Peru em 1568, de imediato os jesuítas se dedicaram às mesmas atividades que realizavam no reino. À frente do primeiro grupo de missionários que desembarcou no Novo Mundo, os padres Bartolomé Hernández e José de Acosta orientaram os trabalhos de catequese de colonos e de indígenas que trabalhavam sob o regime da encomienda. Além dos colégios padrões da ordem, os padres também construíram colégios destinados exclusivamente à catequese dos filhos de caciques. Eles foram erguidos em locais estratégicos, que geralmente eram áreas onde não havia a presença do poder temporal. Já em lugares como Potosí e Juli, a evangelização foi menos limitada. Pelo fato da presença das ordens mendicantes e do clero secular ser menos marcante nessas regiões, os inacianos assumiram as funções do clero secular e realizaram missões itinerantes para socorrer os colonos que viviam longe dos centros urbanos e das paróquias.

Essa forma de ação foi semelhante à dos inacianos que iniciaram atividades apostólicas no Vice-reino de Nova Espanha em 1572. O padre Pedro Sánchez conduziu o grupo que se dedicou aos trabalhos assistenciais em hospitais. Quando o padre tomou a iniciativa de construir o primeiro colégio da ordem na região, enfrentou a reação dos dominicanos e, só depois de vencer a resistência dos mendicantes e a burocracia (uma vez que a construção de colégios no Novo Mundo dependia da aprovação do Conselho das Índias) é que foram abertos os primeiros colégios jesuíticos na região. A partir de 1575, os padres passaram a oferecer aulas regulares e catequese a filhos de colonos, mestiços e indígenas.40

A atuação limitada e à sombra de outras ordens religiosas, do clero secular e do Conselho das Índias só sofreu alteração após a promulgação das Ordenanzas de descubrimiento. A partir de 1573, os jesuítas passaram a executar o importante projeto de Estado de exploração de diversas partes do continente americano. Em expedições de reconhecimento, geralmente realizadas em duplas, os missionários percorreram regiões que hoje correspondem à Califórnia, Amazonas, Goiás e Mato Grosso. No entanto, a

39 BOXER, C. R. A Igreja militante e a expansão ibérica... p. 89.

40 Sobre a atuação dos jesuítas no Vice-reino do Peru e no Vice-reino de Nova Espanha ver ASTRAIN, A. S.J. Historia de la Compañía de Jesús en la Asistencia de España. Tomo III. Madri: Est. Tipográfico

“Sucesores de Rivadeneyra”, 1909, pp. 123-176; e HERNÁNDEZ, Á. S. S.J. Los jesuitas en América.

Madri: Editorial MAPFRE, 1992, pp. 20-95.

97 hostilidade ameríndia e as necessidades latentes da Coroa espanhola levaram ao estabelecimento de “missões de fronteira” a leste (Andes), norte (México) e sul (Bacia do Rio da Prata) da América espanhola, sendo esta última a mais representativa.41

Em seu estudo daquilo que considerou uma organização política das povoações missioneiras da região, Arno Kern apontou que os jesuítas desenvolveram, com os guaranis, instituições militares frente à expansão do colonialismo luso-brasileiro. Pelo fato de terem de exercer uma ação civilizadora e de evangelização, mas ao mesmo tempo política (diante da ação dos bandeirantes e da ausência de representantes do poder secular no local), Kern entendeu que, nas povoações, os jesuítas representavam a Coroa espanhola, a Igreja e a própria Companhia de Jesus. Assim eles teriam formado uma bem sucedida vida comunitária cristã que integrou a população nativa à sociedade espanhola e que se mostrou capaz, também, de estabelecer as fronteiras de dois grandes impérios.42