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A MISSIONAÇÃO JESUÍTICA EM TEMPOS DE PRIVILÉGIO

1.2. D. JOÃO III: UM REI EM TEMPOS DE REFORMA

Em 1521, ano em que D. João III foi coroado, Portugal enfrentava uma séria escassez de alimentos gerada por intempéries. Além disso, a peste havia causado um grande número de mortes e o reino carecia de instrumentos práticos para a manutenção da empresa marítima. A organização militar portuguesa, que ainda trazia características medievais, era incapaz de solucionar um problema que acompanhou D. João III (e D.

24 Sobre a questão ver THOMAZ, L. F. F. R. A “política oriental” de D. Manuel I e suas contracorrentes...

pp. 189-206.

34 Manuel) durante todo o seu reinado: o corso e a pirataria. No plano externo, uma série de fatos colocava o Velho Mundo em efervescência política e cultural: a excomunhão de Martinho Lutero, a guerra entre Castela e França, a chegada dos castelhanos no México e a expansão do império turco otomano eram alguns dos eventos que abalavam as estruturas da Europa católica. Ainda, D. João assumiu a direção de um império-rede baseado em feitorias alocadas na África, América e Ásia e que formava um novo e extraordinário mundo para os europeus.25

Diante desse quadro, D. João III encontrou na proposta de governo dos escolásticos a referência para solucionar os problemas da ocasião e, principalmente, para preparar Portugal para lidar com um mundo novo mundo que se desenhava. Essa proposta havia nascido do embate ideológico travado com os humanistas (e um pouco mais tarde com os reformadores) que visava a definição de um novo modelo de sociedade frente a abertura do mundo e as revoluções científicas e religiosas em curso.

Em razão disso, as mudanças promovidas pelo monarca combinavam, conforme apontou Ângela Barreto Xavier, elementos romanitas e christianitas: do mesmo modo que tinham inspiração no modo de governo de um imperador romano (que reorganizava os territórios conquistados para administrá-los racionalmente e submeter as populações locais ao seu direito, língua e religião), baseava-se, também, na figura de um príncipe que se apresentava como vigário de Deus, justo e prudente, uma combinação dos

“modelos bíblicos com os modelos clássicos e aristotélico-medievais do bom governante, um super-príncipe, quintessência da comunidade política”.26

No plano político, as reformas de D. João visaram, sobretudo, a racionalização da administração. Tanto em Portugal quanto nos domínios ultramarinos, o monarca criou políticas para dinamizar a empresa marítima e adotou formas administrativas que enfeixavam o poder em suas mãos. Ficava evidente, nessas manobras, seu intuito de fixar uma norma social eficiente à homogeneização da sociedade e à formação de súditos, o que lhe exigia, também, o dispêndio de forças em uma profunda reforma educacional e na criação de instrumentos voltados à manutenção da ortodoxia religiosa.

Agindo nesse sentido, em 1527, a Coroa passou a custear a formação de teólogos na Universidade de Paris, cujo reitor era o português Diogo de Gouveia (c. 1471-1557),

25 Este cenário interno e externo a Portugal quando da ascensão de D. João III pode ser visto em BUESCU, A. I. D. João III (1502-1557). Lisboa: Círculo de Leitores, 2005, pp. 86-106.

26 XAVIER, Â. B. Aparejo e disposición para se reformar y criar otro nuevo mundo. A evangelização dos indianos e a política imperial joanina. In: D. João III e o Império. Actas do Congresso Internacional comemorativo do seu nascimento. Lisboa: Centro de História de Além-Mar, 2004, p. 790.

35 ferrenho defensor da teologia escolástica. Uma década mais tarde, D. João III transferiu a Universidade de Lisboa para Coimbra e participou diretamente da escolha de suas instalações físicas, assim como do seu reitor e mestres. Entre eles estavam muitos dos ex-alunos bolsistas, além de grandes pensadores da Universidade de Salamanca, como o teólogo frei Martinho de Ledesma e o canonista Martín Azpilcueta Navarro.27

Aliada a essa reforma educacional e administrativa, em 1532 o monarca criou a Mesa da Consciência e Ordem a fim de melhor intervir nas decisões eclesiásticas e solucionar conflitos decorrentes da imbricação das jurisdições seculares e eclesiásticas e da arrecadação de tributos religiosos. Além disso, El-Rei interviu junto ao papado para garantir a nomeação de cardeais entre os membros da família real e promoveu a divisão das grandes dioceses para reorganizar os seus espaços de atuação e, principalmente, para transformá-las em um organismo mais efetivo de controle da religiosidade praticada pelos súditos e do próprio clero.28

Essas intervenções deixavam entrever um projeto que aliava o controle administrativo, político e religioso do império português, premissas fundamentais para o enfrentamento dos imperativos que o século XVI impunha às monarquias católicas.

Entre eles, talvez o mais importante fosse agir em prol da missão salvífica da qual a

27 São inúmeros os exemplos de centralização do poder adotados por D. João III em todo o império português. Para o Brasil, por exemplo, ele criou o Governo-Geral a fim de corrigir a administração descentralizada das capitanias-donatarias adotada em 1530. Sobre o assunto, ver COUTO, J. A construção do Brasil: ameríndios, portugueses e africanos, do início do povoamento a finais de quinhentos. Lisboa:

Edições Cosmos, 1998, pp. 207-235; e FAORO, R. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. v. 1. 13 ed. São Paulo: Globo, 1998, pp. 31-72. Sobre as medidas político-administrativas adotadas pelo monarca na Ásia, África e em Portugal ver os diversos artigos que compõem a publicação D. João III e o Império...; além de COSTA, J. P. O. e; RODRIGUES, V. L. G. Portugal y Oriente: el proyecto indiano del Rey Juan. Madri: Editorial MAPFRE, 1992; SUBRAHMANYAM, S. O império Asiático Português 1500-1700. Uma História Política e Econômica. Lisboa: Difel, 1993, pp. 127-149; e THOMAZ, L. F. F. R. Os portugueses nos mares da Insulíndia no século XVI. In: __________. De Ceuta a Timor. 2 ed. Lisboa: Difel, 1998, pp. 567-590. Há uma análise dos aspectos gerais dessas reformas joaninas no império português em SABEH, L. A. Colonização salvífica: os jesuítas e a Coroa portuguesa na construção do Brasil (1549-1580). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-graduação em História – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009, pp. 13-26. Sobre a reforma educacional promovida por D. João III ver BUESCU, A. I. op. cit., pp. 198-200.

28 Para se ter uma ideia da amplitude dessa reforma, quando da ascensão de D. João III havia treze dioceses em Portugal e domínios: Braga, Porto, Lamego, Viseu, Guarda, Coimbra, Lisboa, Évora, Silves, Ceuta, Tânger, Safim e Funchal. Na década de 1540, a diocese de Évora foi elevada a arcebispado, e em 1545 foram criadas as de Leiria e Miranda. Quatro anos mais tarde surgiu a de Portalegre e, com a participação da Cúria Romana nas decisões, foram criadas novas dioceses no além-mar, como a de Cabo Verde (1533), Angra do Heroísmo, São Tomé e Goa (1534), seguidas da Bahia (1550) e Malaca (1557).

A diocese de Goa tinha a jurisdição sobre as comunidades cristãs que compreendiam o espaço entre o Cabo da Boa Esperança e a China, o que reservou à entidade do Funchal, criada em 1514, sua ascensão a metropolita. Ver BUESCU, A. I. op. cit., pp. 192-197; CARDIM, P. A diplomacia portuguesa no tempo de D. João III. Entre o império e a reputação. In: D. João III e o Império... pp. 627-660; e MATTOSO, J.

(dir.). História de Portugal. No alvorecer da Modernidade (1480-1620). v. III. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, pp. 146-148.

36 Coroa e seus súditos, e não apenas o monarca, eram portadores. Já no reino de D.

Manuel, os grandes pensadores portugueses (teólogos em sua maioria) apontavam para a necessidade de se executar a atividade apostólica, uma vez que a abertura do mundo era interpretada como uma obra de gesta nacional e de afirmação da vontade divina. Por acreditarem ser um povo eleito, os portugueses entendiam que aquele era o momento de universalização do catolicismo previsto nas Sagradas Escrituras. Assim, em um momento em que a atividade missionária estava voltada à conversão dos muçulmanos, dos “infiéis”, o encontro com povos que não conheciam a fé de Cristo consolidavam como proféticos os apontamentos do livro Gênesis que cedo ou tarde todos os povos da Terra conheceriam a fé cristã.29

Salvar as almas ameríndias, africanas e asiáticas tidas como pagãs,30 portanto, surgia como uma nova característica do elemento religioso da expansão portuguesa.

Aliadas aos efeitos das teses de Lutero na cristandade ocidental, as mudanças culturais advindas das “Descobertas” sugeriam a D. João III que a busca do reino mítico de Preste João fosse transformada em um ministério evangelizador voltado ao fazimento de novos cristãos. O abandono do projeto de conquista do Marrocos, além de assinalar a renúncia da conquista de Jerusalém, apontava para os imperativos salvacionistas da vigilância dos heréticos e da conversão dos pagãos. E nesta contenda por almas, o monarca não só expandiu as dioceses, como ainda contou com a instalação do Santo Ofício da Inquisição, com a presença de representantes do seu clero nas seções do Concílio de Trento e, pouco depois, com a chegada da Companhia de Jesus no reino.

Esses eram instrumentos que também atuavam como ponta de lança da Reforma Católica que, uma vez no reino, transformaram-se em elementos comuns às reformas da Santa Sé e da Coroa portuguesa. E, pelo fato desse ser um programa de transformação

29 Sobre o impacto da expansão portuguesa nas formas de se pensar e conceber o mundo ver BARRETO, L. F. O orientalismo conquista Portugal. In: NOVAES, A. (org.). A descoberta do homem e do mundo.

São Paulo: Funarte/Companhia das Letras, 1998, pp. 273-291; BARRETO, L. F. Os descobrimentos e a ordem do saber: uma análise sociocultural. Lisboa: Gradiva, 1987, pp. 52-54; DIAS, J. S. da S. Os descobrimentos e a problemática cultural do século XVI. 3 ed. Lisboa: Editorial Presença, 1988, pp. 48-52; e MARTINS, J. V. de P. Descobrimentos portugueses e Renascimento europeu. In: NOVAES, A.

(org.). A descoberta do homem e do mundo... pp. 185-189.

30 A forma de se classificar e enquadrar os tipos humanos que se apresentavam à Europa cristã durante a expansão ibérica era baseada nos escritos de Tomás de Aquino. No Tomo VII da Suma Teológica, o teólogo havia mencionado a existência do herege e do pagão: o primeiro era aquele que negava a religião de Jesus e que, portanto, poderia ser punido ou compelido a abandonar seu erro; já o pagão era entendido como aquele que ignorava a fé de Cristo porque não a conhecia, mas que, em razão disso, deveria ser persuadido a aderir à religião cristã, porque sua conversão deveria ser espontânea. Ver EISENBERG, J.

As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aventuras teóricas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000, p. 66.

37 de uma realidade política, social e religiosa em crise, a evangelização surgia como uma ferramenta que era, ao mesmo tempo e indissociavelmente, política e religiosa.