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A EVANGELIZAÇÃO COMO FERRAMENTA DE ENTRONIZAÇÃO DA CASA DE HABSBURGO NO BRASIL

6.1. UM IDEAL PARTILHADO

Em seu estudo sobre o papel da religião na estruturação das sociedades, Max Weber explica que a crença na salvação é tão antiga quanto as sociedades humanas, porque ela surgiu do sofrimento humano. A busca de cura dos males individuais ou coletivos originou rituais destinados a evitá-los ou eliminá-los. No interior dos primeiros cultos religiosos, o sofrimento individual também gerou a figura do conselheiro espiritual, que estabeleceu a individualidade na relação entre o homem e o seu deus (ou deuses). Esse sacerdote passou a ser considerado uma encarnação de um ser sobrenatural, ou o seu profeta. Ele detinha, por esta razão, a chave da salvação dos homens.

Segundo Weber, foi na adoração dos profetas que surgiu uma religiosidade fundamentada no mito do salvador. Nas religiões como o confucionismo, hinduísmo, budismo, cristianismo e o islamismo, essas personagens tiveram proporções e formas variadas, mas em todas elas suas profecias desencadearam processos que culminaram no surgimento das “religiões de salvação”. A anunciação e a promessa de um ser divino, onipotente e justo, atingiam grandes massas que esperavam pelo fim dos seus males. A promessa religiosa, então, estabeleceu uma ética na religião: uma conduta moral que leva o sujeito à tão esperada salvação, que é a recompensa dos infortúnios da vida e que pode ser atingida neste ou no outro mundo (paraíso). Mas a redenção ganhou significado, de fato, a partir do momento em que foram oferecidas doutrinas que explicassem os motivos da salvação, já que elas deram origem a uma regulamentação ética da conduta humana.

O cristianismo, por isso mesmo, é uma religião de salvação por excelência: ela tem um profeta que conduz seus fiéis ao fim dos seus sofrimentos e uma doutrina que explica os motivos pelos quais os indivíduos precisavam ser salvos. Assim como em outras religiões, o cristianismo tem a profecia como a sua base, enquanto a doutrina é o seu elemento racional. Na religião indiana, por exemplo, a doutrina que leva à salvação é o carma; para os calvinistas é a fé na predestinação; já os luteranos são justificados através da fé, simplesmente; e os católicos encontram a graça redentora na doutrina dos

184 sacramentos da Igreja romana. Nesse caso, a doutrina é o seu elemento racional porque é entendido como o guia para a redenção.1

Nosso olhar sobre a religião ainda é condicionado pela ideia iluminista de que os sistemas religiosos são a expressão mística do princípio do bem que, conforme explicou Kant, é inerente ao ser humano tanto quanto o seu pendor àquilo que é mal. De acordo com o filósofo, o estabelecimento da crença em um reino de Deus na Terra seria uma representação filosófica do triunfo do princípio bom sobre o mau, tendo em vista que esse reino estabelece leis éticas que permitem ao indivíduo tornar-se membro de uma comunidade ética, isto é, de uma religião. A doutrina religiosa, nesse caso, é um princípio ético para o crente, mas apenas um elemento simbólico que explica as práticas religiosas àqueles interessados em compreender o comportamento humano e os sistemas religiosos a partir do uso da razão.2

Mas, se para esses os princípios teológicos da salvação católica exprimem o dogmatismo da religião cristã, o adorno dos seus rituais, para aqueles que viam na doutrina católica um alicerce existencial e um roteiro de conduta ética, apresentavam-se como o caminho da redenção, a sua mais alta aspiração. Essa crença, então, nos ajuda a compreender porque muitas Coroas partilharam com a Santa Sé a obrigação de conduzir seus súditos à redenção. Ernest Kantorowicz demonstra que, na Europa do século XII, o poder régio era teorizado a partir de tratados teológicos que definiam o monarca como persona mixta e persona germinata: o primeiro, um ser que combinava faculdades seculares e religiosas, enquanto o outro, um ser tido como humano por natureza, mas divino pela graça. Os “dois corpos do rei” não implicavam na sua divinização, porque Cristo foi um Deus que se corporificou entre os mortais em função de sua natureza divina. Já o monarca não era um Deus, mas a personificação de Cristo na Terra pela graça que Deus lhe concedia para representá-lo no mundo. E, se na tradição bíblica Jesus dedicou-se a salvar os mortais, o rei também se imbuía de sua missão salvífica entre os homens.

Kantorowicz comenta que o tratado que consolidou a teoria foi redigido por um normando anônimo com profundos conhecimentos em Teologia e Direito que agia em defesa da monarquia inglesa na Questão das Investiduras. Seu objetivo não era atribuir aos reis funções religiosas próprias da Igreja, como a aplicação de sacramentos e a

1 WEBER, M. Religião. In: __________. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1963, pp. 309-346.

2 KANT, I. (1724-1804). A religião nos limites da simples razão. São Paulo: Escala, s/d., pp. 25-140.

185 nomeação de bispos, por exemplo. Tratava-se de uma tentativa, que se mostrou bem sucedida, de consagrar o monarca como um homem-Deus, como um imortal que temporariamente adquiria poderes divinos para governar os homens.3

O autor do tratado, conforme explicou Kantorowicz, não criou a tradição dos

“dois corpos do rei”. Ele se fundamentou nas teorias nascidas nos concílios realizados na Península Ibérica no século VII, muitos dos quais foram convocados, dirigidos e presididos pelos reis visigodos, os primeiros dentre os povos germânicos a se converterem ao cristianismo. Essas teorias tanto deram forma à tradição católica corrente no Velho Continente quanto circunscreveram a legislação que legitimava o poder régio. Eram, portanto, ideias correntes no meio letrado europeu, mas, como asseverou o medievalista, os tratados do anônimo normando “devem ser utilizados não como reflexo de ideias válidas em seu tempo ou prenúncio do futuro, mas como uma espécie de espelho que aumenta e, com isso, distorce ligeiramente os ideais correntes na era precedente”.4

O que o historiador quis dizer é que os fundamentos teológicos do poder régio se materializaram de diferentes formas na sociedade: ao serem retomados no século XII para fortalecer a monarquia inglesa na Questão das Investiduras, foram absorvidos e deram corpo à legislação e até à pintura e à escultura que os expressavam. No século XIII, depois de absorverem também tendência das teorias políticas do Direito Romano, deram os contornos do pensamento político da Inglaterra da Casa de Tudor e da Casa de Stuart, que governaram a partir de legislações que asseguravam o poder supremo do príncipe e as condições humano-espirituais que legitimavam essa condição do “rei acima da lei”, de homem imaculável eleito por Deus para instituir e preservar o bem comum.5

O que se depreende dessa análise é que o ideal de salvação, mais que uma simples crença, era um princípio motivador do homem na relação com seu meio e na transformação da sua realidade. Desde que Cipriano fundamentou parte da doutrina católica no binômio institucional Cristo-Igreja, os sacramentos foram consolidados como instituições salutares, portanto, como os únicos caminhos pelos quais o católico atinge a sua salvação. E pelo fato de apenas os sacerdotes da Santa Sé poderem administrar os sacramentos, os monarcas da tradição da persona mixta e da persona

3 KANTOROWICZ, E. Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval. São Paulo:

Companhia das Letras, 1998, pp. 48-71.

4 id. ibid., p. 58.

5 id. ibid., pp. 72-124.

186 germinata, assim como seus herdeiros, se compromissavam em materializar as bases teóricas do seu governo em práticas políticas.

Os “reis taumaturgos” deram exemplos bastante característicos nesse sentido.

Marc Bloch explica que os monarcas da Inglaterra e da França tocavam os enfermos para curar suas escrófulas. No esforço de identificar a origem da prática, o historiador encontrou relatos que atribuíam um milagre de cura a um rei merovíngio do século VI.

No entanto, o “toque das escrófulas” nasceu como rito no século XII: na França, foi criado pelos reis da Dinastia Capetiana e, na Inglaterra, pelos reis da Dinastia Angevina.

O “milagre do toque” ocorria em uma cerimônia voltada à ostentação da benevolência e da essência divina dos monarcas e era consentida, assistida e legitimada pelas autoridades religiosas. Ademais, não se tratava de qualquer doença que os reis tinham o poder de curar: o “milagre” ocorria, especificamente, no toque de escrófulas.

Diferente de enfermidades como a lepra, comum naquela época, os abscessos e as fístulas que surgiam mais comumente no pescoço dos enfermos eram de origem inflamatória, portanto, o próprio organismo tratava de combater e uma boa alimentação acompanhada de anti-inflamatórios naturais contribuía para a completa recuperação.

Como dificilmente a doença levava à morte, em poucas semanas o “toque” atestava o poder de cura dos reis.6

A escolha da doença não foi aleatória, assim como não foi o período em que o rito foi construído. No século XII, a dinâmica do sistema feudal havia fragilizado sobremaneira o poder régio, e é sugestivo que “a capacidade de curar não era pessoal, exclusiva; era faculdade de sua função: somente enquanto o rei era taumaturgo”.7 Tanto é que os teóricos da época indicavam que essa faculdade era hereditária, assim como as prerrogativas de governo do monarca.

Eficiente estratégia, evidentemente, mas que não deixava de ser construída a partir de referências contidas no imaginário dos súditos. Bloch lembra que “hoje temos o direito de sermos mais céticos ou mais críticos que eles”.8 Os homens daquela época, porém, acreditavam piamente no poder de cura de Jesus e dos santos católicos, assim como nos relatos bíblicos que apresentavam os reis como “homens eleitos” que assumiam, na Terra, as capacidades salvíficas de Cristo. Lembremos, o ritual foi construído no mesmo momento em que o normando anônimo teorizou os fundamentos

6 BLOCH, M. Los reyes taumaturgos. Estudio sobre el carácter sobrenatural atribuido al poder real, particularmente en Francia e Inglaterra. 2 ed. México: FCE, 2006, pp. 93-119.

7 id. ibid., p. 111. Tradução nossa.

8 id. ibid., p. 118. Tradução nossa.

187 teológicos do poder régio: assim como Jesus, o Salvador, os reis ofereciam a cura para os males da sociedade. Em uma época em que poucas pessoas tinham uma noção vaga da origem de uma doença que desfigurava os enfermos, e que as pessoas sem instrução lhe atribuía à vontade de Deus, recorrer ao seu emissário, o “rei taumaturgo”, era o único remédio para o mal que as acometiam. Se assim não fosse, segundo Bloch, o “rito do toque” não teria servido para transmitir e consolidar a imagem do poder supremo dos reis após as reformas religiosas e durante o ápice do Absolutismo na França e na Inglaterra.9

Em um plano mais profundo, os fundamentos teológicos do poder régio baseados na faculdade salvífica dos monarcas os comprometeram com as obrigações aparentemente próprias da Igreja de difundir e proteger a fé cristã. São conhecidas as ações de Carlos Magno (742-814) que resultaram na propagação da religião católica na Europa, assim como é conhecido o envolvimento dos monarcas da Inglaterra, da França e do Sacro Império Romano Germânico no embate com os turcos na tentativa de se conquistar Jerusalém. Na Península Ibérica, esse mesmo espírito de guerra santa das Cruzadas também motivou a retomada da Hispânia, que havia sido ocupada pelos muçulmanos no século VIII.

Nessa última região, as faculdades seculares e religiosas dos monarcas exerceram um papel essencial na construção e execução de ações político-religiosas que deram os contornos à Reconquista e, principalmente, aos reinos que nasceram naquele processo. À medida que os muçulmanos eram expulsos e que eram proclamados o nascimento de novas monarquias, a Igreja sacralizava os seus soberanos. A divinização, ao mesmo tempo em que comprometia esses monarcas em continuar com a Cruzada peninsular, instaurava uma forte identidade católica nas monarquias de Leão, Castela, Navarra, Aragão e Portugal.10

Em meados do século XV, era ainda o sentimento de Cruzada que levava os portugueses para além dos mares do Mediterrâneo e do Atlântico Norte. A expansão ultramarina paulatinamente enfeixava sentidos materiais, entretanto, este não excluía o caráter ideológico que o deflagrou.11 À medida que Portugal revelava um novo mundo à

9 BLOCH, M. op. cit., pp. 400-475.

10 Ver BARUQUE, J. V. La Reconquista. El concepto de España: unidad y diversidad. Madrid: Espasa Calpe, 2006, pp. 83-140; e GUZMÁN, A. A. El episcopado y la guerra contra el infiel en las Cortes de la Castilla Trastámara. In: SORIA, J. M. N. (dir.). La monarquía como conflicto en la Corona Castellano-leonesa (c. 1230-1504). Madrid: Sílex, 2006, pp. 253-265.

11 Sobre esta concepção da expansão ultramarina ver THOMAZ, L. F. F. R. Expansão portuguesa e expansão europeia – reflexões em torno da gênese dos Descobrimentos. In: __________. De Ceuta a