• Nenhum resultado encontrado

A Comunicação da Comissão Europeia sobre a noção de auxílio estatal

CAPÍTULO II Os Acordos Prévios sobre Preços de Transferência

4. A Comunicação da Comissão Europeia sobre a noção de auxílio estatal

Em 2016 e tendo em conta o contexto da modernização das formas de atribuição de auxílios de Estado, e da economia em geral, a Comissão Europeia considerou crucial proceder a uma atualização das orientações emitidas em 1998, quanto aos conceitos fundamentais respeitantes à noção de auxílio de Estado, nos termos do atual artigo 107.º do TFUE e, neste sentido, emitiu uma nova comunicação bastante extensa na qual expõe a sua interpretação do artigo.123 Através destas novas orientações a Comissão procurou igualmente dar substância às suas recentes decisões no âmbito das investigações em matéria de auxílios de Estado que fizeram correr muita tinta nas primeiras páginas dos jornais de todo o mundo, dando origem a vários litígios perante o Tribunal Geral, interpostos não só por grupos multinacionais de elevado relevo internacional, mas pelos próprios Estados-Membros.

De acordo com a Comunicação da Comissão, auxílio de Estado é um conceito legal baseado em critérios objetivos, pelo que a Comissão apenas goza de um poder discricionário limitado no exercício da sua tarefa de controlo.

121 Paint Graphos (C-78/08 a C-80/08). 122

Ibid., para. 75.

123 Comissão Europeia, Comunicação sobre a aplicação das regras relativas aos auxílios estatais às

medidas que respeitam a fiscalidade direta das empresas, 10 de dezembro de 1998, foi assim substituída pela Comunicação da Comissão sobre a noção de auxílio estatal (2016), supra n. 43.

Conforme já referido, uma medida constitui um auxílio de Estado incompatível com o mercado interno da União quando atribua uma vantagem seletiva, i.e., que favoreça apenas certas empresas ou produções, essa vantagem seja concedida pelo Estado ou através de recursos estatais e, consequentemente, afete as trocas comerciais entre os Estados-Membros, falseando ou ameaçando falsear a concorrência. A Comissão Europeia na sua Comunicação faz assim uma jornada detalhada, passando por todos os critérios incluídos no artigo 107.º, n.º 1, do TFUE.

No que toca à origem estatal das medidas, a Comissão distingue duas condições distintas. Por um lado a vantagem deve decorrer direta ou indiretamente de recursos estatais e, por outro, ser imputável ao Estado.

Uma vantagem concedida é imputável ao Estado mesmo que a autoridade que a concedeu goze de autonomia jurídica em relação às outras autoridades públicas, relembrando a Comissão, nas palavras do Tribunal Geral que “o direito comunitário não pode admitir que o simples facto de criar instituições autónomas encarregadas da distribuição dos auxílios permita contornar as regras relativas aos auxílios de Estado”.124

Em seguida, a Comissão alerta para a dificuldade em avaliar a imputabilidade de uma vantagem quando concedida através de empresas públicas.125 Nestes casos é necessário determinar se as autoridades públicas estiveram implicadas de alguma forma, na adoção da medida, devendo a imputabilidade ser “deduzida de um conjunto de indícios resultantes das circunstâncias do caso concreto e do contexto no qual essa medida foi tomada”.126

124

Tribunal Geral, Acórdão de 12 de dezembro de 1996, Air France v Comissão, T-358/94, ECLI:EU:T:1996:194, para. 62.

125 Segundo o artigo 2.º, alínea b), da Diretiva 2006/111/CE, da Comissão, de 16 de novembro, relativa à

transparência das relações financeiras entre os Estados-membros e as empresas públicas, bem como a transparência financeira relativamente a certas empresas, deve entender-se por “empresa pública”, qualquer empresa em que os poderes públicos possam exercer, direta ou indiretamente, uma influência dominante em consequência da propriedade, da participação financeira ou das regras que a disciplinam.

126 TJUE, Acórdão de 16 de maio de 2002, França v Comissão (Stardust), C-482/99,

A Comissão Europeia enumera uma série de possíveis indícios, resultantes da jurisprudência dos Tribunais da União, para determinar se uma medida é imputável ao Estado, entre elas:127

(i) O facto de o organismo em questão não poder ter tomado a decisão contestada sem ter em conta as exigências das autoridades públicas.

(ii) A presença de elementos de natureza orgânica que ligam a empresa pública ao Estado.

(iii) O facto de que a empresa, por intermédio da qual foram concedidos os auxílios, teve de ter em conta as orientações emanadas dos organismos governamentais.

(iv) A integração da empresa pública nas estruturas da administração pública; (v) A natureza das atividades da empresa pública e o exercício destas no

mercado em condições normais de concorrência com operadores privados. (vi) O estatuto jurídico da empresa (se é regida pelo direito público ou pelo

direito comum das sociedades), embora a mera circunstância de uma empresa pública ter sido constituída sob a forma de uma sociedade de capitais no regime de direito comum não possa ser considerada razão suficiente para excluir a imputabilidade, tendo em conta a autonomia que esta forma jurídica lhe confere.

(vii) A intensidade da que as autoridades públicas exercem sobre a gestão da empresa.

Além dos citados, qualquer outro indício que demonstre a implicação das autoridades públicas na adoção da medida em causa ou a improbabilidade da sua não implicação, tendo em conta o alcance da medida, o seu conteúdo, ou as suas condições, podem fazer com que uma medida seja imputável ao Estado.

Apesar de todo o exposto é importante notar que quando a adoção de uma medida seja obrigatória para um determinado Estado-membro, na ausência de qualquer poder discricionário, não pode a mesma ser considerada imputável aquele. Contudo, nos casos em que é concedido espaço ao Estado-membro para adotar ou não a medida em causa, ou mesmo definir as suas características específicas, tal raciocínio não é aplicável.

Em relação à necessidade de a vantagem concretizada na medida ser concedida direta ou indiretamente através de recursos estatais, a Comissão realça que o conceito de recursos estatais abarca todos os recursos do setor público, incluindo os recursos das entidades intraestatais, acabando por concluir que “não tem necessariamente de ocorrer uma transferência positiva de fundos” bastando o Estado-membro em causa “renunciar a receitas do Estado”.128

É neste ponto que assistimos à alusão ao “critério do operador numa economia de mercado” por parte da Comissão, ao referir que se as autoridades públicas ou as empresas públicas fornecerem bens ou serviços a um preço inferior às taxas de mercado ou investirem numa empresa de uma maneira que seja inconsistente com o referido critério, tal implicará não só uma perda de recursos estatais, mas também a concessão de uma vantagem ao beneficiário.129 A utilização deste critério tem sido fortemente criticada na doutrina e será melhor abordada adiante.

Por sua vez, também a origem dos recursos utilizados para conceder a vantagem não deve ser relevante, desde que antes de serem direta ou indiretamente transferidos para os respetivos beneficiários, sejam colocados sob o controlo do Estado, através das suas autoridades, ainda que os mesmos recursos nunca cheguem a ser propriedade pública.

Este entendimento está de acordo com a jurisprudência do TJUE, que já determinou anteriormente que o artigo 92.° (atual 107.º) do TFUE, abrange todos os meios financeiros que o sector público pode efetivamente utilizar para apoiar empresas, não sendo relevante que esses meios pertençam ou não de modo permanente ao

128 Comunicação da Comissão (2016), supra n. 43., para 48 e seguintes. 129 Ibid., para. 52.

patrimônio do referido sector. Tal ocorre porque o fator relevante não é origem dos recursos, mas sim o grau de intervenção do Estado na definição da medida e do seu modo de financiamento. 130

Também a noção de vantagem é amplamente abordada na Comunicação da Comissão, que refere que uma vantagem consiste em qualquer benefício económico que “uma empresa não poderia ter obtido em condições normais de mercado”, isto é, sem a intervenção do Estado. Quanto à análise da medida, a Comissão Europeia considera, em sintonia com o TJUE, que apenas o efeito da medida é relevante, e não as causas ou motivos que fundamentaram a sua adoção, ou o objetivo especificamente prosseguido pela intervenção estatal. Adicionalmente, na visão da Comissão, também o facto de a vantagem ser obrigatória para a empresa que a recebe, sem existir espaço para que esta a recuse ou evite, é irrelevante.131

A Comissão reforça também a ideia de que a forma através da qual uma certa medida é atribuída é irrelevante na determinação do seu efeito de conceder uma vantagem a determinada empresa ou setor. Isto é, não só as vantagens positivas, mas também as negativas, como a isenção que mitigue os encargos económicos normalmente suportados por uma empresa, ou setor, podem atribuir uma vantagem incompatível com as normas do TFUE.

A existência de uma determinada vantagem não é excluída pelo facto de as empresas concorrentes que atuem em outros Estados-Membros da União Europeia estarem em uma posição mais favorável, uma vez que a Comissão Europeia considera que a existência da vantagem deve ser analisada tendo em conta a situação financeira de uma empresa no seu próprio “contexto jurídico e factual com e sem a medida específica”.132

130

TJUE, Acórdão de 16 de maio de 2000, França v Ladbroke Racing e Comissão, C-83/98 P, ECLI:EU:C:2000:248, para. 50.

131 Comunicação da Comissão (2016), supra n. 43., para 66 e 67. 132 Ibid., para. 72.

A Comunicação de 2016 contém ainda uma interpretação extensa do critério do operador numa economia de mercado. De acordo com a Comissão os “Tribunais da União desenvolveram o princípio do investidor numa economia de mercado para identificar a presença de auxílios estatais em casos de investimento público”, nomeadamente, no âmbito das injeções de capital, realizadas pelos Estados-Membros.

De facto, não constam dos Tratados quaisquer disposições que impeçam os Estados-Membros de atuar no mercado enquanto operadores económicos, sendo que o próprio TFUE estabelece que “os Tratados em nada prejudicam o regime de propriedade dos Estados-Membros”.133

Neste seguimento, a Comissão conclui que para determinar se o investimento de um organismo público constitui auxílio estatal é necessário apreciar se “em circunstâncias semelhantes, um investidor privado de dimensão comparável a operar em condições normais de uma economia de mercado poderia ter sido levado a fazer o investimento em questão”.134 Apesar deste critério não poder ser aplicado às situações em que o Estado-membro atua como autoridade pública, seguindo um raciocínio de política pública e tendo em conta considerações (de natureza social, regional, etc.) que um operador numa economia de mercado não teria, a Comissão Europeia considera que a aplicabilidade de tal critério não pode ser excluída pelo simples facto de os meios utilizados pelo Estado serem de natureza fiscal.135 Esta conclusão da Comissão levantou diversas críticas e será abordada posteriormente no nosso trabalho.

Quanto ao critério da seletividade a Comissão Europeia começa por relembrar que as medidas de caráter puramente geral, que não favoreçam unicamente certas empresas ou a produção de determinados bens, não são abrangidas pelo controlo em matéria de auxílios de Estado, ressalvando todavia que existem medidas à primeira vista aplicáveis

133 Artigo 345.º.

134 Comunicação da Comissão (2016), supra n. 43., para. 74. 135 Ibid., para. 80.

à generalidade das empresas mas que na prática favorecerem apenas certas empresas ou produções, sendo deste modo seletivas.136

A Comunicação de 2016 contém a distinção entre os conceitos de seletividade material e seletividade regional, sendo que apenas a primeira será abordada neste trabalho.

De acordo com a Comissão Europeia a seletividade material pode ser dividida em seletividade de jure e de facto.

A seletividade de jure resulta dos critérios jurídicos estabelecidos para a concessão de uma medida, i.e., quando formalmente a medida se encontra reservada apenas a algumas empresas, sendo que existem inúmeras formas de limitar a aplicabilidade de uma medida, designadamente, formalmente impondo que apenas se aplique a “empresas com uma determinada dimensão, ativas em determinados setores ou com uma determinada forma jurídica; sociedades constituídas ou recentemente cotadas num mercado regulamentado durante um determinado período; empresas que pertençam a um grupo com determinadas características, empresas responsáveis por determinadas funções num grupo; empresas em dificuldade; ou empresas de exportação ou empresas que exerçam atividades relacionadas com a exportação”.137

Já a seletividade de facto é verificada nos casos em que, apesar de a medida formalmente ser formulada de modo a ser aplicada em termos gerais e objetivos, possui uma estrutura tal que, na prática, os seus efeitos favorecem significativamente um grupo específico de empresas. Este tipo de seletividade pode resultar da imposição de condições ou barreiras impostas por parte do Estado-Membro (e.g. obrigações acessórias onerosas) que na prática, acabam por impedir o acesso de certas empresas ao benefício, por exemplo, a “aplicação de uma medida fiscal (como um crédito fiscal) apenas a investimentos superiores a um determinado limiar (que não um limiar menor por razões de oportunidade administrativa)”. Assim, a medida está “de facto” reservada apenas a empresas com um volume financeiro mais elevado, em detrimento das outras.

136 Comunicação da Comissão (2016), supra n. 43., para. 118. 137 Ibid., para. 121.

Finalmente, a Comunicação de 2016 inclui ainda uma nota relativamente à “seletividade decorrente de práticas administrativas discricionárias” determinando que as medidas gerais, à partida disponíveis a todas as empresas, mas que a posteriori limitadas através do exercício de poderes discricionários por parte da administração pública, são seletivas. Esta noção decorre diretamente da jurisprudência do TJUE que determina que “quando o organismo que concede vantagens financeiras dispõe de um poder discricionário que lhe permite determinar os beneficiários ou as condições da medida concedida, esta não pode ser considerada como revestindo um caráter geral”.138

Na visão da Comissão, quando o cumprimento dos critérios definidos não resulte automaticamente o direito à medida, tal medida será necessariamente seletiva. Assim, a título de exemplo, quando a administração tributária tiver poderes discricionários que lhe permitam determinar os beneficiários de um determinado benefício, tendo em atenção critérios alheios ao sistema fiscal (v.g. criação de postos de trabalho), deve considerar-se que o exercício desse mesmo poder discricionário favorece “certas empresas ou certas produções”.139

138 TJUE, Acórdão de 29 de junho de 1999, DMTransport, C-256/97, ECLI:EU:C:1999:332, para. 27. 139 Comunicação da Comissão (2016), supra n. 43., para.123 e seguintes.