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CAPÍTULO IV As Investigações e Decisões da Comissão Europeia

2. O Caso Apple

2.1 A Decisão da Comissão Europeia

Na aferição da existência de um auxílio de Estado incompatível com o TFUE, a Comissão Europeia avaliou cada um dos critérios contidos no artigo 107.º, n.º 1.

Quanto à concessão de uma vantagem pelo Estado ou através de recursos estatais, a Comissão concluiu que, uma vez que os APPT em discussão foram aceites pela administração fiscal irlandesa, eram imputáveis à Irlanda, conforme a jurisprudência do

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Comissão Europeia, decisão relativa ao auxílio estatal concedido à Apple (2016), supra n. 6, para 68 e 148.

175 OECD Model Tax Convention on Income and on Capital: Commentary on the provision of Article 7 concerning the taxation of business profits, para. 2 (18 de dezembro de 2017), OECD Publishing.

Tribunal que é relembrada pela Comissão, às isenções ou reduções de encargos fiscais corresponde uma perda de receitas fiscais que equivale à atribuição de um subsídio.176

Em relação à capacidade da medida (atribuição dos APPT) em afetar as trocas comerciais entre os Estados-Membros, a Comissão considerou que se encontrava claramente verificada, uma vez que a ASI e a AOE estavam incluídas no grupo Apple, e tendo em conta que o mesmo opera em todos os Estados-Membros da UE, um eventual auxílio concedido a qualquer empresa que integre o mesmo é suscetível de afetar as trocas comerciais no mercado único.

No que se refere à terceira condição (capacidade da medida em falsear ou ameaçar falsear a concorrência) a Comissão Europeia relembra que o Tribunal de Justiça já admitiu que uma medida concedida por um Estado-Membro falseia ou ameaça falsear a concorrência quando melhora a posição concorrencial do seu beneficiário em relação a outras empresas com as quais concorre177, pelo que as isenções concedidas à ASI e à AOE, através dos APPT, ao libertar aquelas de encargos que as suas empresas concorrentes têm de suportar, cumpriria este requisito.

Em relação à seletividade da medida, a Comissão, apesar de considerar que a simples identificação da vantagem económica nos casos de auxílios individuais, em contraposição aos casos de regimes de auxílio, permite presumir a existência da vantagem seletiva, opta por “questões de exaustividade”, e talvez por antecipar as críticas e escrutínio público aos quais a sua decisão estaria sujeita, por proceder ao já referido tradicional teste da seletividade em três fases. Além disso, a Comissão indica, desde logo, que essa sua análise coincidirá com a demonstração da atribuição de uma vantagem às empresas implicadas, uma vez que, no seu ponto de vista, se o APPT conduzir a uma redução injustificada da carga fiscal das mesmas que na sua ausência estariam sujeitas a um nível de imposto mais elevado, de acordo com o regime normal

176 Referimo-nos à já mencionada jurisprudência desenvolvida no Caso Adria-Wien Pipeline (C-143/99). 177 No já referido Caso Philip Morris Holland BV v Comissão (730/79).

aplicável no Estado-Membro em questão, essa redução constitui tanto a vantagem, como a derrogação ao sistema de referência para efeitos de auxílio de Estado.178

A decisão da Comissão Europeia relembra os conceitos desenvolvidos pelo Tribunal de Justiça que determinam a dita análise em três passos. Em primeiro lugar, deve ser identificado o chamado “sistema de referência”, i.e., o regime fiscal normal aplicável no Estado-Membro em questão. Em segundo lugar, deve ser avaliado se a medida fiscal adotada constitui uma derrogação a esse sistema de referência e, por fim, caso a resposta seja afirmativa, deve estabelecer-se se a medida em questão é justificada pela natureza ou pela economia geral do sistema de referência, sendo que o ónus da prova nesta terceira fase caberá ao Estado-Membro em questão.

Quanto ao passo da definição do sistema de referência, a Comissão começou por mencionar que o sistema de referência ao qual deve ser comparada a tributação da ASI e AOE, é o regime normal de tributação do lucro das sociedades irlandês, que se baseia no lucro contabilístico das sociedades.

Segundo o regime irlandês, as sociedades residentes na Irlanda estão sujeitas ao imposto sobre as sociedades em relação aos rendimentos e mais-valias a nível mundial. Já no caso das entidades não residentes, o regime prevê que sejam tributadas sobre os lucros das atividades exercidas através de uma sucursal ou agência na Irlanda, bem como sobre quaisquer mais-valias decorrentes da alienação de ativos utilizados para efeitos da sucursal ou agência. Por sua vez, as sociedades não residentes que não disponham de sucursal nem agência naquele país, apenas são tributadas em imposto sobre o rendimento das sociedades quando os seus rendimentos ou mais-valias resultem da alienação de determinados ativos irlandeses.

No que se refere às taxas aplicáveis, o imposto sobre sociedades irlandês tributa os lucros decorrentes de rendimento comercial a uma taxa de 12,5%, e os rendimentos de fonte não comercial a 25%.

O primeiro passo na análise factual da Comissão Europeia passa por considerar que, para efeitos da aplicação das regras enunciadas acima, todas as sociedades com rendimento se encontram numa situação factual e jurídica semelhante, “dado que o objetivo das regras consiste em tributar o lucro sujeito a imposto na Irlanda”, indo ainda mais longe ao considerar que “todas as sociedades sujeitas a tributação na Irlanda, quer sejam residentes ou não residentes, encontram-se numa situação factual e jurídica comparável no que diz respeito ao regime normal de tributação do lucro das sociedades na Irlanda.179

A Comissão acrescenta ainda que as diferenças em relação à forma de aferição do lucro das sociedades integradas num grupo e das sociedades que atuem de forma independente no mercado (“sociedades integradas” e “sociedades não integradas”), não altera a conclusão de que estas se encontram numa situação jurídica e factual comparável, uma vez que a diferença na determinação do lucro tributável é simplesmente um meio para assegurar que o lucro das sociedades integradas, que não pode ser observado de forma fiável através da contabilidade, fosse determinado em condições de igualdade com o das sociedades não integradas, para efeitos do imposto sobre as sociedades.

Neste ponto é feita ainda referência à decisão emitida pela Comissão Europeia relativamente ao hipotético auxílio “groepsrentbox”180, decisão essa que a Apple utilizou na sua defesa por forma a rebater os argumentos da Comissão Europeia relativamente a comparabilidade entre as sociedades integradas e as sociedades não integradas. A decisão em causa será posteriormente abordada no presente trabalho.

A Comissão argumenta que, além do regime neerlandês em causa ter um objetivo diferente dos APPT escrutinados, não podendo a conclusão de tal caso ser extrapolada para o caso sub judice, tendo em conta que a sua análise quanto à compatibilidade de uma medida apenas se encontra vinculada aos critérios do artigo 107.º, n.º 1, ainda que

179 Ibid., para. 228.

180 Comissão Europeia, decisão relativa ao regime groepsrentebox, 8 de Julho de 2009, que os Países

fosse possível à Apple demonstrar que a Comissão Europeia emitiu uma decisão anterior antagónica, tal não afetaria de nenhuma forma a decisão adotada em relação aos APPT atribuídos à ASI e à AOE.

A Comissão atenta ainda para o facto de os próprios APPT confirmarem o regime normal de tributação irlandês como o sistema de referência adequado na situação em apreço, visto que o lucro tributável da ASI e AOE na Irlanda, que resulta da aplicação dos mesmos, é tributado à taxa normal do imposto sobre as sociedades de 12,5%, no caso de rendimentos comerciais, e 25%, no caso de rendimentos não comerciais, tal como o lucro de qualquer outra sociedade sujeita a tributação na Irlanda, quer estejam ou não integradas num grupo.

Após definir o sistema fiscal de referência a aplicar na Irlanda a Comissão Europeia embarca no segundo passo da sua análise que passa por avaliar se os APPT constituem uma derrogação ao sistema de referência identificado. Neste passo, a Comissão começa por indicar que o objetivo dos APPT sob escrutínio consiste em estabelecer o método de afetação dos lucros, de modo a que os lucros afetos às sucursais da ASI e da AOE possam ser subsequentemente tributados ao abrigo do regime normal do imposto sobre as sociedades vigente na Irlanda.

De acordo com a Comissão, o artigo 107.º, n.º 1, do TFUE, exige que os métodos de afetação de lucros sejam baseados no princípio da concorrência. Este argumento tem baseia-se no já referido Caso Bélgica e Forum 187 em que, segundo a Comissão, o Tribunal de Justiça admitiu ser crucial “comparar o referido regime com o do direito comum baseado na diferença entre receitas e despesas de uma empresa que exerça as suas atividades em condições de livre concorrência”.181 No mesmo caso o Tribunal determina ainda que se o método de afetação dos lucros não permitisse obter preços de transferência próximos dos que seriam praticados em condições de livre concorrência, essa circunstância seria passível de proporcionar uma vantagem económica ao seu beneficiário.

181 TJUE, Acórdão de 22 de junho de 2006, Bélgica e Forum 187 v Comissão, C-182/03 e C-217/03,

Com base na jurisprudência referida, a Comissão considera que o Tribunal de Justiça subscreveu o princípio da plena concorrência como indicador para determinar se uma vantagem seletiva foi atribuída a uma empresa inserida num grupo onde existam operações entre empresas relacionadas.

Neste ponto particular da decisão, a Comissão Europeia adotou argumentos que deram azo a fortes críticas. Em primeiro lugar, refere que ao contrário do que é defendido pela Apple e pela Irlanda, não aplica diretamente nas suas decisões o artigo 7.º, n.º 2 ou artigo 9.º, do Modelo de Convenção Fiscal da OCDE, nem sequer as já referidas orientações da OCDE, mas sim o artigo 107.º, n.º 1, do TFUE, e o princípio da plena concorrência, tal como interpretado pelo Tribunal de Justiça. Contudo, a Comissão admite que os princípios da OCDE constituem um quadro de referência bastante útil para as empresas que pretendam garantir uma correta determinação dos preços de transferência a aplicar nas suas operações intragrupo, sendo pouco provável que um APPT que autorize a aplicação de um método de alocação dos lucros corenete com tais orientações confira uma vantagem ao seu beneficiário.182

Por fim, a Comissão Europeia faz alusão a outro argumento bastante contestado, referindo que o princípio da plena concorrência aplicado nas suas decisões vigora independentemente de o Estado-Membro em questão o ter integrado, ou não, no seu sistema jurídico nacional.

Em relação às situações concretas de afetação dos lucros às sucursais irlandesas, a Comissão Europeia começa por referir que as licenças de propriedade intelectual da

Apple, detidas pela ASI e pela AOE foram totalmente alocadas fora da Irlanda na

ausência de uma avaliação da afetação de ativos, funções e riscos entre as várias partes dessa sociedade, uma vez que:

a) A delimitação interna das contas era inexistente. Não existindo contas separadas entre sucursal e a sede social daquelas empresas, a Comissão considera que a administração fiscal irlandesa não deveria ter aceitado a alocação em causa;

b) Inexistia à data da atribuição do APPT qualquer relatório sobre a afetação dos lucros e em matéria de fixação de preços de transferência. Os relatórios apenas foram elaborados ex post facto, após a decisão da Comissão Europeia de iniciar a investigação;

c) Durante o período em que estiveram em vigor os APPT, as sedes sociais da ASI e da AOE existiam apenas no papel, tendo em conta que nenhuma delas apresentava presença física nem funcionários fora da Irlanda durante esse período, sendo que as únicas pessoas a assegurar funções nas sedes sociais eram os respetivos membros dos conselhos de administração.

Apesar de admitir que a alocação de direitos de propriedade intelectual é uma matéria complexa, devido à sua intangibilidade natural, a Comissão entende que cabia à administração fiscal irlandesa confirmar se a alocação das licenças de propriedade intelectual da ASI e da AOE, fora do território irlandês, poderia ter sido acordada entre as empresas num contexto de plena concorrência.183 Neste sentido, aquela deveria ter tido em consideração os ativos utilizados, as funções exercidas e os riscos assumidos por aquelas sociedades por intermédio das suas sucursais irlandesas e concluído que o rendimento atribuído às licenças em questão cabia às sucursais, perante a inexistência de qualquer atividade de gestão ativa das referidas licenças por parte das sedes sociais das mesmas.