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A concentração da temática do aborto nas reportagens: a construção da notícia na

Capítulo 3. O aborto na agenda eleitoral de 2010

3.3 A entrada do aborto na agenda jornalística

3.3.5 A concentração da temática do aborto nas reportagens: a construção da notícia na

As notícias são, na verdade, o resultado de um conjunto de ocorrências selecionadas pelos agentes do campo jornalístico e transformadas em “acontecimento público” através da propagação e divulgação pelos meios de comunicação. É essa característica que dá ao campo jornalístico importância estratégica nas sociedades modernas, por ser reconhecida como uma esfera “legítima” no plano simbólico para dar significado aos acontecimentos e oferecer uma “narrativa” aos episódios, com visibilidade e propagação capaz de tornar esses acontecimentos tema de discussão pública.

A forte presença nas editorias de política e nos cadernos especiais de eleições, associado à concentração dos textos nas reportagens, permite considerar que houve uma estratégia organizada pelos agentes do campo político e setores religiosos com o objetivo de orientar a agenda jornalística de cobertura política em torno da polêmica sobre o aborto e utilizá-la como instrumento da disputa eleitoral. As pesquisas eleitorais do final de setembro indicaram um novo rumo para o eixo de abordagem estratégica do campo jornalístico e, então, ocorreu a migração da agenda para a temática do aborto, que já estava presente na agenda política.

Tabela 4. Presença do tema aborto por tipo de texto X editoria Editoria/ seção X Tipo de texto O País/ Poder/ Nacional Cadernos especiais Eleições 2010 Opinião Rio/ Cotidiano/ Metrópole Segundo Caderno/ Ilustrada/ Caderno 2 Saúde/ Ciência/ Vida Total/ tipo de texto Entrevistas 15 (4%) 3 (5%) 0 (0%) 0 (0%) 3 (21%) 0 (0%) 21 (4%) Reportagens 273 (76%) 49 (79%) 0 (0%) 0 (0%) 0 (0%) 4 (100%) 326 (65%) Colunas 33 (10%) 9 (14%) 22 (39%) 4 (57%) 5 (36%) 0 (0%) 73 (14%) Artigos 9 (2%) 1 (2%) 22 (39%) 0 (0%) 4 (29%) 0 (0%) 36 (7%) Editoriais 1 (0%) 0 (0%) 12 (21%) 0 (0%) 0 (0%) 0 (0%) 13 (3%) Coluna fixa 30 (8%) 0 (0%) 0 (0%) 3 (43%) 2 (14%) 0 (0%) 35 (7%) Total textos/ editoria 361 (100%) 62 (100%) 56 (100%) 7 (100%) 14 (100%) 4 (100%) 504 (100%) Fonte: a autora

As linhas verticais da tabela 4 demonstram que a abordagem sobre o aborto no período eleitoral estava nos primeiros cadernos, onde a cobertura política é o foco (O País/Poder/Nacional). Agora, ao analisar o conjunto de textos que fazem parte da pesquisa, confirma-se essa informação. Dos 504 textos presentes na pesquisa, 361 (72%) estão nas editorias de política, que são seguidas pelos espaços exclusivos de cobertura eleitoral (cadernos especiais), com 62 textos (12%). Se somarmos os textos presentes nos primeiros cadernos e nos especiais de cobertura eleitoral, teremos 423 textos ou 84% das referências ao aborto nos textos de cobertura jornalística das eleições. Isso demonstra o quanto a temática do aborto foi vinculada à agenda das eleições e ao debate político- eleitoral. Apenas como um exemplo, os cadernos que tenderiam a tratar o aborto numa perspectiva voltada à ciência ou à saúde tiveram somente quatro reportagens ou 1% do universo total de textos que compõem a pesquisa, reforçando o foco na cobertura das estratégias eleitorais dos candidatos.

Outro dado a ser destacado é a grande concentração dos textos na reportagem. Foram 326 textos (65%) do total dessa pesquisa. Desse universo, 322 deles (99%) estavam concentrados na cobertura política (O País/Poder/Nacional) e eleitoral (cadernos especiais Eleições 2010). Somente quatro reportagens (1%) foram produzidas para os cadernos de Saúde/Ciência/Vida.

Da mesma forma, se analisarmos esse universo por jornal, igualmente a intensidade da abordagem reflete os mesmos resultados. Houve um volume médio muito semelhante entre os jornais. Os dados permitem considerar que a cobertura foi homogênea, focada na estratégia eleitoral para o tratamento do assunto.

Tabela 5. Presença do tema aborto por jornal X tipo de texto

Jornal/

Tipo de texto O Globo Folha de S.Paulo

O Estado de S. Paulo Total Entrevistas 3% (5) 5% (11) 3% (5) 4% (21) Reportagens 74% (113) 49% (98) 76% (115) 65% (326) Colunas 7% (11) 24% (49) 9% (13) 14% (73) Artigos 5% (8) 7% (15) 9% (13) 7% (36) Editoriais 3% (4) 3% (7) 1% (2) 3% (13) Notas de coluna 7% (11) 10% (20) 3% (4) 7% (35) Total 100% (152) 100% (200) 100% (152) 100% (504) Fonte: a autora.

A Folha de S.Paulo abordou o assunto de forma levemente mais elevada do que os outros dois impressos. Além disso, os dados demonstram que o aborto teve mais tratamento pelos agentes que ocuparam os espaços de opinião do jornal. Chama a atenção a grande quantidade de editoriais publicados pelo impresso, em comparação com os concorrentes. Foram sete (58%), enquanto o Globo publicou quatro (31%), e o Estadão dois editoriais (15%) no total de 13 textos nesse segmento. Isso também evidencia o quanto o tema mobilizou editorialmente a Folha. Por outro lado, o espaço da reportagem do Estado de S. Paulo e do Globo teve mais abordagens sobre o aborto, com 115 e 113 textos, respectivamente, enquanto a Folha de S.Paulo publicou 98 reportagens com menções ao tema.

Apesar da concentração dos veículos de comunicação na cobertura das estratégias dos candidatos sobre a temática, uma exceção, no entanto, merece registro. O Globo publicou como reportagem de capa no dia 10 de outubro um levantamento que revela a grave situação das mulheres que praticam o aborto de forma clandestina, sem assistência da rede de saúde pública

sem adotar uma posição pró-descriminalização29, a reportagem apresentou dados estatísticos sobre a prática no Brasil mostrando que uma mulher a cada dois dias morre em consequência do procedimento. O texto apresenta opiniões de especialistas e pesquisadores e relatos de mulheres vítimas ou com familiares que passaram pela experiência. Na abertura, a reportagem critica o enfoque da campanha eleitoral para o assunto:

Enquanto religião e política se misturam na campanha eleitoral, uma mulher aborta a cada 33 segundos e a prática insegura mata uma brasileira a cada dois dias [...]. Tema polêmico, desde que o aborto passou a ser assunto central da campanha, sendo responsável, segundo pesquisas, por ajudar a levar as eleições para o segundo turno, os candidatos José Serra (PSDB) e Dilma Rousseff (PT) têm se esforçado para manter a discussão vinculada ao viés moral e religioso (BENEVIDES; FARAH, 2010a, p. 3).

O texto também reforçou as críticas sobre o tratamento do assunto nas eleições, posição igualmente já expressa pelo jornal em editorial:

O debate não devia tratar de quem é contra e quem á a favor, mas de como é possível resolver um problema de saúde pública [...], diz Paula Viana do grupo Curumim que pesquisou a questão em cinco estados (BENEVIDES; FARAH, 2010a, p. 3).

A reportagem se diferenciou da maioria dos textos observados nesta pesquisa porque apresentou posicionamento de fontes que ao longo do período analisado, no entanto, não tiveram o mesmo espaço de fala. Como veremos no capítulo seguinte, há uma profunda predominância das fontes políticas e religiosas nos textos de reportagem em detrimento de fontes da sociedade civil. Isso implica dizer que o campo jornalístico, ao selecionar determinadas fontes em detrimento de outras para falar sobre o aborto, também contribuiu para construir uma abordagem conservadora, concentrando a cobertura nas estratégias eleitorais e no questionamento moral sobre as posições dos candidatos em relação ao assunto.

Por fim, a contextualização dos episódios envolvendo a polêmica sobre o aborto nas eleições de 2010 confirma o que a literatura sobre o agendamento apresenta quanto à relação entre a agenda pública, a agenda política e a agenda jornalística (TRAQUINA, 2000, p. 19). Sem dúvida, houve uma interação e uma concorrência entre indivíduos e agentes de campos sociais

29

O Globo defendeu em editorial o planejamento familiar como método eficaz para diminuir a gravidade do problema social

distintos do campo jornalístico que produziram acontecimentos com efeitos no processo eleitoral e na agenda política. Isso ocorreu de tal forma que foi detectado pelos institutos de pesquisa. Foi quando o assunto chamou a atenção do campo jornalístico, tornando-se “visível” e, dessa forma, temática relevante para a agenda da mídia.

A partir disso, os jornais reorientam seu eixo de cobertura e passam a destacar as mudanças nas estratégias das campanhas. A coordenação de campanha petista reorientou sua estratégia no sentido de “tirar a agenda religiosa, incluindo a polêmica do aborto, imediatamente do foco da campanha [...]” (“Lula determina guinada na campanha de Dilma, que vai explorar privatizações”, Folha de S.Paulo, 06/10/10, p. Especial 1). Ao mesmo tempo, os estrategistas de José Serra (PSDB) mudaram seu foco no sentido de aprofundar o debate sobre questões morais e religiosas envolvendo o aborto, como registrou a reportagem que acompanhou as atividades do candidato a vice-presidente da chapa tucana, Índio da Costa (DEM). O texto revelou que durante encontro do candidato a vice com mais de 500 lideranças políticas e comunitárias no Rio de Janeiro, foi discutida a estratégia para o segundo turno: “colar em Dilma temas polêmicos” (“Índio pede que classe média não viaje e vote”; ver BRUNO, 2010, p. 12).

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