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O campo jornalístico e as novas ferramentas digitais na disputa pela agenda

Capítulo 1. Mídia, política e o debate sobre a definição da agenda

1.6. O campo jornalístico e as novas ferramentas digitais na disputa pela agenda

A capacidade do campo jornalístico de construir interpretações genéricas e massificadas, associada à rapidez e à amplitude com que as ferramentas de comunicação on-line propagam uma ideia, dá uma dimensão do papel dessa esfera como um ator político que age na produção e transmissão de informações. Nas eleições de 2010, a discussão sobre o aborto ocorreu, inicialmente, de forma dirigida, através da distribuição de e-mails e mensagens via internet para grupos ou listas de pessoas restritas ou a partir de redes sociais de relacionamento (Facebook, Orkut, Youtube, blogs, etc.).

Esse foi o pleito onde as ferramentas digitais tiveram maior presença e foram bastante utilizadas nas campanhas eleitorais, embora essa utilização já tivesse sido detectada nas eleições de 2006 (LIMA, 2006). Atualmente, não é mais possível dizer que somente o campo da mídia tradicional e seus atores agem na construção do relato noticioso (embora sejam os agentes predominantes). Há uma disputa entre grupos e atores pelo acesso aos mecanismos de construção da notícia e as formas de mediação, circulação e publicização dessas informações ultrapassam os limites da mídia convencional. Durante as eleições de 2010, foi possível perceber que houve uma confluência de interesses entre grupos políticos pró-candidatura de José Serra (PSDB) com setores conservadores das igrejas (católicos ou evangélicos) contrários à descriminalização do aborto. Essa confluência de interesses também se evidenciou no campo da mídia, que, apesar de não concordar com a ênfase na temática do aborto, elevou o assunto à agenda central da cobertura eleitoral no segundo turno das eleições. O ingresso da temática do aborto no centro do debate eleitoral do segundo turno de 2010 demonstrou que as relações de força que compõem o discurso público atualmente acontecem “numa esfera pública ampliada que inclui não apenas as mídias tradicionais como a televisão, o rádio, o jornal impresso, mas também os blogs, microblogs e outras plataformas de comunicação na internet” (RAMOS, 2012, p. 73).

Esse aspecto reforça o argumento deste estudo de que o campo midiático teve que

competir na construção da agenda com outros atores que agiam em suas esferas de atuação com novas ferramentas de comunicação. Como será detalhado na segunda parte desse estudo, os grandes grupos empresariais de comunicação relutaram, num primeiro momento, em tratar o tema do aborto como assunto relevante para o debate eleitoral. Sua contrariedade estava expressa em vários editoriais publicados no período. No entanto, ao final do primeiro turno, a temática do aborto passou a ocupar de forma crescente o espaço noticioso, com amplo destaque para posicionamentos de grupos religiosos e políticos que acusavam diretamente a candidata Dilma

Rousseff (PT) de ser uma mulher conivente com “práticas abortistas”, ou ainda reproduziam declarações que a associavam a estereótipos de alguém “a favor de matar criancinhas”, “contra a vida” ou mesmo de “Dilma contra Jesus” (RAMOS, 2012, p. 71).

Tais argumentos tiveram um papel relevante na politização do aborto e na utilização do assunto como instrumento da luta político-eleitoral. A competição do campo jornalístico tradicional com agentes de campos simbólicos distintos que utilizaram novas formas de comunicação, através da internet, produziu uma disputa pela narrativa eleitoral e um movimento informativo paralelo ao conteúdo oferecido pela mídia convencional. Nesse sentido, observa-se que as mídias digitais foram incorporadas pelos agentes do campo político como ferramentas complementares de comunicação e de propagação de conteúdo de interesse das candidaturas à Presidência da República. Foi nessa eleição que os campos político e jornalístico receberam maior interferência dos eventos produzidos no ambiente da comunicação digital (JAMIL; SAMPAIO, 2011, p. 210). Candidaturas foram incrementadas com conteúdo interativo dos usuários das redes sociais (Facebook, Twitter, Youtube, entre outros). Vídeos com declarações negativas, gafes ou ainda colagens de imagens simulando situações de aborto foram disseminados nas redes de relacionamento e contatos por e-mail e compartilhados em perfis de redes sociais, tanto por apoiadores de uma das candidaturas quanto pelas entidades ou grupos religiosos.

As eleições de 2010 reforçam o que já havia sido detectado em 2006: a esfera da comunicação, como espaço privilegiado para o debate público, está se transformando com a expansão da internet e suas ferramentas tecnológicas. A comunicação em redes digitais vem produzindo espaços de diálogos horizontais entre grupos e indivíduos conectados. Hoje, quem tiver acesso econômico e conhecimento dos recursos tecnológicos pode organizar sistemas de comunicação e de informação sem mediação de terceiros, sobretudo, os meios tradicionais de informação como o rádio, a televisão ou o jornal. Criar canais de comunicação próprios a partir das novas ferramentas e iniciativas das mídias digitais produziu efeito sobre as práticas políticas (e de comunicação) (JAMIL; SAMPAIO, 2011, p. 209).

Embora essas ferramentas ofereçam uma capacidade maior de disputa e influência sobre a agenda pública, pressionando, muitas vezes, as organizações midiáticas tradicionais a acolher novos temas e assuntos de interesse público para a cobertura jornalística, ainda persistem limitações no uso da internet, como a barreira econômica que dificulta o acesso amplo às conexões mais eficientes, além da controversa discussão sobre “filtros” que garantam limites para

“discursos de ódio”, que circulam sem controle na rede ou, ainda, na falta de confiabilidade das mensagens utilizadas para fins políticos (BRAGATTO, 2011, p. 149).

Na era da comunicação globalizada e instantânea, novas estratégias são incorporadas e mediadas por ferramentas de comunicação que interagem com as tradicionais estratégias da política. Essa interação vem ocorrendo de maneira complementar aos processos comunicacionais tradicionais do campo político, como os programas do horário gratuito de propaganda eleitoral de rádio e televisão, regidos por lei, ou por materiais impressos e jingles. Desde o final de 1998, as ferramentas para disseminação das informações eleitorais pela internet foram aprimoradas e incorporadas aos instrumentos de comunicação digital do campo político (BIMBER apud JAMIL; SAMPAIO, 2011, p. 210). É o caso dos websites que veiculam vídeos profissionais assim como publicam material produzido por qualquer indivíduo que possua um aparelho celular conectado à internet. As atividades interativas com os internautas e a disponibilização desses materiais e das peças de programas eleitorais como jingles e programas eleitorais deram à internet um novo papel dentro das estratégias de comunicação política. Em 2010, essas e outras ferramentas assumiram nova dimensão na relação com o eleitorado.

O uso das mídias digitais tornou as disputas políticas mais diversificadas e complexas, oferecendo novas modalidades de ativismo eleitoral: seja na maior amplitude de informação política, ao disseminar informações pelos próprios canais e por internautas apoiadores, seja pela possibilidade de interatividade e propagação dessas informações em redes de relacionamento, ampliando o cenário das disputas e o espaço social dos conflitos cada vez mais aberto e visível a todos os indivíduos conectados (SILVEIRA, 2011, p. 52). Essas ações estimularam a participação nas campanhas on-line com base na reciprocidade das interações feitas pelo computador (JAMIL; SAMPAIO, 2011, p. 214). É nesse ambiente que candidatos à Presidência atuaram nas redes sociais, criando perfis e interagindo diretamente com seus “seguidores”, procurando influenciar a agenda política desde uma perspectiva de interesse do candidato.

As notícias publicadas pelos três jornais observados nesta pesquisa registram que as redes sociais foram um instrumento importante para a disseminação das campanhas negativas envolvendo a temática do aborto durante as eleições de 2010. Aliados da candidatura Serra disseminaram críticas à candidata Dilma por suas posições anteriores em favor da descriminalização do aborto, ao passo que apoiadores da candidatura Dilma procuravam mostrar

um moralismo oportunista, interessado em se beneficiar da fé e das crenças do eleitorado religioso (JAMIL; SAMPAIO, 2011, p. 212).

Em outro aspecto, o pesquisador Jair de Souza Ramos (2012) desenvolve uma análise sobre a centralidade do enfrentamento entre grupos religiosos e ativistas dos direitos humanos nas eleições de 2010, com o intuito de manter conquistas (ativistas dos direitos humanos) ou refluir essas vitórias (grupos religiosos) vinculadas à legislação de políticas públicas ligadas aos direitos individuais, como é o caso da descriminalização do aborto e o casamento homoafetivo. De um lado, havia a preocupação de grupos religiosos com o crescente espaço ocupado, ainda no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, por políticas e ações identificadas com as lutas em defesa da descriminalização do aborto e da criminalização da homofobia e com os “riscos” de que a vitória de Dilma Rousseff (PT) pudesse garantir a implantação de políticas simpáticas às lutas feminista e homoafetiva, derrotadas por setores conservadores no Congresso. De outro lado, a preocupação dos movimentos de direitos humanos era que o processo eleitoral pudesse representar uma oportunidade para grupos conservadores de capitalizar e impor sua agenda, revertendo, através da luta político-eleitoral, o espaço conquistado pelos direitos humanos no interior do Estado brasileiro (RAMOS, 2012, p. 57).

Os embates envolvendo a edição do Plano Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH3), em dezembro de 2009, com forte repercussão no início do ano de 2010, podem ter sido o pano de fundo para organizar os discursos dos atores políticos que utilizaram as ferramentas de comunicação on-line para disseminar boatos, versões, opiniões e imagens contra a candidatura de Dilma Rousseff (PT), acusando-a de ser favorável ao aborto9. Tais discussões disseminadas pela internet foram incorporadas pelos veículos tradicionais do campo da mídia. Ao organizar a agenda de cobertura eleitoral do segundo turno em torno da temática do aborto, os principais jornais impressos do país ocuparam um espaço importante na consolidação dessa controvérsia dentro da agenda político-eleitoral e na imagem dos candidatos (RAMOS, 2012, p. 56; MANTOVANI, 2013, p. 2-3). Os argumentos envolvendo a temática do aborto foram ajustados e incorporados como temática central da cobertura jornalística pelo campo da mídia, tornando-se um instrumento poderoso da disputa eleitoral e, ao mesmo tempo, produzindo uma “politização reativa” à agenda dos movimentos feministas e LGTB (MACHADO, 2012, p. 50).

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Agradeço as contribuições de colegas e pesquisadores que apontaram esse aspecto durante apresentação de parte dos resultados dessa tese no II Simpósio Nacional sobre Democracia e Desigualdades, realizado na Universidade de Brasília de 7 a 9 de maio de 2014.

Se, no primeiro turno das eleições de 2010, a temática do aborto não foi dominante na agenda jornalística, a virada do primeiro para o segundo turno demonstrou o ajuste que o campo jornalístico produziu no seu foco noticioso. Apesar das críticas e do desacordo com o tema no centro do debate político-eleitoral, a cobertura jornalística adequou-se e definiu os contornos dessa agenda, tornando-se um importante ator na sustentação de uma narrativa moral e conservadora sobre o aborto predominante no segundo turno do debate eleitoral de 2010. Esse aspecto reforça a compreensão de que as relações entre o campo político e jornalístico não atendem padrões predeterminados, mas revelam que há uma permeabilidade entre os campos com interação, tensões e ajustes. É nesse contexto que a análise da temática do aborto na cobertura jornalística das eleições de 2010 oferece elementos para aprofundar as reflexões sobre como o campo jornalístico respondeu às diferentes pressões entre governo, partidos e candidatos naquela disputa especificamente e, em termos gerais, sobre a forma como esse campo mobiliza seus argumentos técnicos e participa da definição de sentidos e posições que constituem uma disputa eleitoral (BIROLI; MANTOVANI, 2010, p. 91-92).

A abordagem do tema do aborto na mídia é uma oportunidade para refletir sobre a participação das empresas de comunicação tradicionais na delimitação e no enquadramento desse assunto no debate público. Em geral, a imprensa brasileira trata o aborto sob três enquadramentos: o religioso-moralista, o criminal (identificação de clínicas clandestinas e prisão de médicos) e o jurídico (mudanças na lei) (FONTES, 2012, p. 6).

Acrescentamos um quarto enquadramento encontrado na pesquisa que acompanha esta tese: a ênfase no tratamento do tema como um caso de saúde pública, explicitando casos de mulheres (pobres) que passaram pela experiência da interrupção de uma gravidez realizada de forma clandestina e, muitas vezes, com sequelas graves, que precisam ser atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) (BENEVIDES; FARAH, 2010a). No entanto, a mídia tende a tratar o aborto predominantemente no enquadramento moralista-religioso. No âmbito eleitoral, esse viés foi amplamente utilizado para questionar os candidatos sobre suas posições, concentrando o debate na visão dicotômica – “a favor ou contra” –, sem aprofundar a questão. A campanha eleitoral de 2010 mostrou que parte da imprensa tradicional usou “o discurso antiabortista para alvejar os candidatos de seu desagrado” (MIGUEL, 2012, p. 670). Dessa forma, quando a mídia torna dominante uma abordagem, tende a reforçar visões hegemônicas em detrimento de posições

socialmente sub-representadas, o que restringe um debate amplo e democrático na sociedade, como veremos em seguida.

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