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Capítulo 3. O aborto na agenda eleitoral de 2010

3.1 O contexto do noticiário

Os dados empíricos demonstram o comportamento do noticiário ao longo do período analisado (julho a outubro de 2010), quando a temática do aborto torna-se relevante na agenda jornalística. O objetivo neste capítulo é demonstrar a complexidade dos mecanismos que constituem a agenda noticiosa, a dinâmica das disputas e competições entre interesses distintos, e os atores os campos sociais que interagem e concorrem na busca pelo controle da agenda e pela definição da pauta pública.

Como já foi referido, a notícia é uma realidade construída. Mais do que uma “realidade sintética”, ela é, na verdade, uma “realidade seletiva” (TRAQUINA, 2000, p. 27) funcionando dentro de um campo estruturado, com uma cultura, procedimento e saberes próprios para a construção de uma narrativa dos acontecimentos que seja socialmente reconhecida como legítima. Entre os aspectos que dão legitimidade à notícia estão os mecanismos internos ao campo jornalístico, definidos pelo processo produtivo da notícia – newsmaking –, que determinam os “critérios de noticiabilidade” e justificam a seletividade e a hierarquia do que será destacado pelos meios de comunicação noticiosos.

No entanto, é preciso considerar que os meios de comunicação não são simplesmente “a soma total das ações que descrevem” (ADORNO apud WOLF, 2005, p. 81). Ao contrário, suas mensagens se constituem de símbolos, valores, mitos e padrões de comportamento construídos de formas “multiestratificadas” (WOLF, 2005, p. 82), sendo voltadas ao consumo de massa e, portanto, destinadas a padronizar e homogeneizar a diversidade de conteúdos (MORIN apud WOLF, 2005, p. 96). As narrativas construídas pelos meios de comunicação no noticiário cotidiano orientam e padronizam a interpretação dos acontecimentos, organizando cognitivamente o registro cotidiano e um “senso comum” sobre a realidade social.

Os estudos sobre comunicação de massa demonstram, ainda, que a notícia é um produto organizado e construído dentro do campo jornalístico, em que a definição e a escolha do que é noticiável possui uma orientação da “pragmática jornalística”. Ou seja, a narrativa jornalística é repleta de valor:

A notícia e reportagem não são relatos frios de coisas meramente materiais. [...] os fatos valem pelas razões que os geram, pelas intenções que os controlam e pelas consequências que produzem ou podem produzir. No jornalismo, a objetividade simplesmente não existe (CHAPARRO, 2007, p. 12).

Partindo dessa premissa, a pesquisa empírica deste estudo pretende demonstrar que houve uma disputa na definição sobre a agenda da cobertura eleitoral. Em um primeiro momento, ao observar as capas dos jornais no período de julho até o final de setembro, percebe-se que a agenda jornalística se unificava em torno da cobertura de escândalos políticos. Apesar de o aborto estar presente em textos encontrados ao longo de todo o período observado nesta pesquisa, o assunto só terá relevância para ocupar a capa dos três jornais observados a partir do dia 29 de setembro. Dessa data em diante, a temática unifica a agenda jornalística a ponto de tornar-se presença quase diária nas capas dos jornais, até o dia 31 de outubro, data da eleição em segundo turno.

3.1.1 O contexto da cobertura eleitoral de 2010

Como dissemos, a construção da agenda jornalística é fruto de uma concorrência entre diversos interesses pela primazia dos assuntos que serão centrais para a cobertura noticiosa. A razão para o aborto ter se transformado num tema relevante para o debate eleitoral não é algo espontâneo ou desinteressado. A mudança do eixo da cobertura dos escândalos políticos para o posicionamento dos candidatos sobre o aborto ocorreu porque em determinado momento (final de setembro) houve uma percepção de que esse tema poderia interferir na preferência de candidatura do eleitorado religioso e conservador.

É notório que grande parte da disputa política nos dias de hoje – do embate eleitoral ao jogo político cotidiano – pressupõe uma “luta pela imposição da imagem pública dos atores políticos” (GOMES, 2004, p. 238). Essa disputa se desenrola na forma de “uma competição pela construção, controle e determinação da imagem dos indivíduos” definidos pela comunicação de massa. Isso produz consequências importantes sobre o público, quando os meios de comunicação, vistos como meios “neutros” de divulgação, passam a reforçar estereótipos que orientam interpretações sobre a realidade com mensagens que costumam “escapar” aos controles cognitivos do indivíduo, por se tratar de uma informação veiculada pela mídia, vista como um campo distinto e, portanto, “distanciado” de interesses específicos do campo político. A polêmica

sobre o aborto ofereceu um conteúdo eficaz para essa disputa e permitiu a construção de uma imagem negativa sobre a candidata Dilma Rousseff (PT).

A temática do aborto se inseriu no debate eleitoral inicialmente difundida por canais específicos de comunicação de segmentos religiosos e grupos políticos. Tal constatação nasce da análise dos textos publicados nos jornais. Diante das evidências, expressas por pesquisas eleitorais, de que a polêmica estava produzindo efeitos nas intenções de voto, o debate em torno do aborto se expandiu, unificou interesses e organizou a agenda de disputa entre os candidatos e a cobertura noticiosa do segundo turno. Por meio da análise das capas dos jornais, é possível identificar como o noticiário, inicialmente convertido na cobertura dos escândalos políticos, se transformou num noticiário voltado para a temática religiosa antiaborto, demonstrando como a agenda jornalística pode ser um importante instrumento e um ator relevante na luta política.

3.1.2 Os acontecimentos na ótica das manchetes de capa

A capa de um jornal reúne sempre um conjunto de assuntos que são considerados relevantes pelo veículo para informar seus leitores dos principais acontecimentos daquele dia. A manchete, as chamadas e o que é selecionado para compor esse espaço de destaque são registros arranjados a partir de critérios organizacionais e técnicos dos processos produtivos da notícia (newsmaking), associados a uma intencionalidade dos editores que define o que será destaque. O conteúdo de uma mensagem tornada proeminente pela mídia orienta o leitor a compreender os acontecimentos, uma vez que os indivíduos tendem a buscar nos meios de comunicação convencionais uma resposta à sua necessidade de compreensão sobre o que se passa no mundo (McCOMBS, 2009, p. 90).

Muitas vezes, observar o que está na capa dos jornais pode ser a única forma de contato do leitor com os mais variados acontecimentos, mesmo com diversos instrumentos e canais de informação alternativos à mídia convencional disponíveis na internet. Para apresentar a contextualização do ambiente noticioso daquele momento, estabelecemos como marco analítico inicial a seguinte pergunta: “Quais assuntos unificaram as capas dos jornais nos dias em que o aborto estava presente no interior dessas edições?”. Foram analisadas as capas das edições de O Estado de S.

Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo – os três principais jornais diários do país – em que a palavra

editorial, artigo, coluna ou entrevista). O intervalo de tempo em que o corpus da pesquisa foi selecionado compreende 112 dias, de 11 de julho a 31 de outubro de 2010. Nesse período foram identificadas referências ao aborto em 74 dias ou 66% do período, em um total de 504 textos.

A data de 11 de julho de 2010 foi definida como o marco inicial desta observação porque se trata do dia do último jogo da Copa. A partir desse momento, tradicionalmente, o campo jornalístico passa a concentrar suas atenções com maior intensidade nos acontecimentos eleitorais. Encerra o período de análise desse material o dia 31 de outubro, data da eleição presidencial em segundo turno.

3.1.3 Metodologia

A análise dos dados foi feita através do programa de software Sphinx, uma ferramenta que permite o cruzamento de dados quantitativos e qualitativos. Como método para organizar o material, foram estabelecidos três estágios de trabalho: a elaboração do questionário, a coleta e preenchimento das respostas e, por fim, a análise consolidada dos resultados. O programa ainda permite realizar cruzamento de dados para analisar aspectos específicos da pesquisa. Para a composição do material de pesquisa e análise do material foi estabelecido o seguinte roteiro metodológico:

a) Identificação do material por jornal - Em cada um dos três jornais que fazem parte desta

pesquisa foi realizada inicialmente uma busca eletrônica com a palavra “aborto”, identificando o dia, a editoria e o texto. A seguir, foram analisadas todas as edições físicas (impressas) dos três veículos dentro do período de 11 de julho a 31 de outubro de 2010, para confirmar a presença do tema aborto nos textos inicialmente detectados. A partir da observação das 112 edições/dia foram identificadas 74 edições/dia em que a palavra aborto está presente em algum texto jornalístico.

b) Definição da editoria/seção - Os textos foram selecionados a partir da compreensão de que

esse material deve estar nos espaços do jornal em que são de responsabilidade da redação sua preparação e edição, ou seja, o conteúdo deveria ser produzido pelos agentes especializados do campo jornalístico ou publicados nos espaços sob a responsabilidade editorial da redação. Esse estudo não trata dos espaços de responsabilidade do setor comercial ou publicitário da empresa de

comunicação. A partir dessa premissa, foram definidos os espaços: capa; editorias21 País/Poder/Nacional, Cidades/Cotidiano/Metrópole, Segundo Caderno /Ilustrada/Caderno2 Saúde/Ciência/Vida; cadernos especiais Eleições 2010; e editorias de opinião, nas quais estão os textos com as posições e opiniões do jornal (editoriais) ou de autores de colunas, artigos e, por fim, as entrevistas. Cabe esclarecer que as entrevistas foram classificadas na categoria “opinião” pelo entendimento da autora de que as opiniões expressas nas entrevistas são literais em relação ao que seus autores pronunciam (mesmo em caso de edição para adequar as declarações ao espaço no jornal), diferenciando-se das vozes “em aspas” que compõem um texto jornalístico.

c) Classificação por tipo de texto - Os textos foram selecionados a partir da compreensão de que o material a ser coletado deveria estar publicado no espaço sob a responsabilidade editorial da redação. As categorias selecionadas foram: reportagem, nota de coluna fixa, entrevista, coluna, artigo, editorial.

Os tipos de texto foram divididos em dois subgrupos: a) aqueles em que o texto é produto da intervenção do jornalista na elaboração e seleção dos tópicos e vozes que vão compor o texto – enquadram-se neste subgrupo as reportagens e as notas de coluna fixa; b) textos que expressam opiniões individuais do autor ou da empresa jornalística – classificam-se neste segmento as entrevistas, colunas, artigos e editoriais.

Nesse processo, foram identificados textos em que a palavra “aborto” foi referida como mero registro, mesmo o assunto não sendo o foco central do texto (“Candidata culpa Serra por boatos sobre Petrobras”, O Estado de S. Paulo, 09/10/10, p. A10). Em outros, o aborto foi o tema central do texto (“Petista afirma que não mudou sua posição sobre o aborto”, Folha de S.Paulo, 01/10/10, p. Especial 10). O objetivo nesta seleção foi acompanhar o processo de crescimento da saliência e do destaque da temática até o momento em que se transforma no centro da agenda jornalística.

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