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Capítulo 1. Mídia, política e o debate sobre a definição da agenda

1.3 A mídia, a política e o debate sobre a definição da agenda

Já afirmamos anteriormente que o desenvolvimento da imprensa no mundo alterou as formas de comunicação e as relações de poder estabelecidas nas sociedades modernas. Pesquisas atuais demonstram que o fluxo de comunicação não é unidirecional, tampouco atende a apenas

um dos universos interessados (GOMES, 2004, p. 43). Wilson Gomes sustenta que a relação entre mídia e política conheceu três modelos distintos de atuação4. A primeira ocorreu na formação da esfera pública burguesa do século XVIII, já tratada neste capítulo, em que havia uma imprensa de opinião a serviço da esfera política em ascensão contra o Estado aristocrático. A conquista do Estado pela burguesia transforma a imprensa num espaço constituído por periódicos de partidos governistas e de oposição.

O segundo modelo se expressa quando ocorrem as transformações tecnológicas, com a circulação, reprodução de mensagens e produtos culturais massivos através da imprensa de massa, do rádio, do cinema e da televisão. Nascem a indústria da cultura de massa e a comunicação como negócio e as primeiras investigações sobre os efeitos e as possibilidades dos “meios” de comunicação sobre e para o mundo político, assim como a percepção de que os dispositivos técnicos da comunicação funcionam como um extraordinário instrumento para organizar o gosto, a disposição e a opinião do público, inclusive para questões de natureza política (GOMES, 2004, p. 48).

No terceiro modelo, predominante nas sociedades modernas, há uma nova sociedade, um novo “mercado consumidor” interessado numa informação “independente” do jogo político que estava presente na imprensa partidária. Surge, então, uma “imprensa empresarial”, que se afirma por colocar à disposição do consumidor “o tipo de informação que ele desejasse, na velocidade e no assunto que fosse de seu interesse” (GOMES, 2004, p. 50). Há uma percepção do mercado e do mundo dos negócios de que a notícia pode se tornar parte de um comércio, envolvendo os consumidores da informação e os anunciantes. A denominada “indústria da informação” compreende que “vender” a “atenção pública” e a “audiência” para anunciantes é parte de um negócio altamente rentável para as empresas de comunicação, desde que preservadas a “credibilidade”, a “isenção”, a “objetividade” e a “honestidade”, como valores não apenas éticos do jornalismo mas também comerciais (GOMES, 2004, p. 50-51).

Já a indústria cultural e a do entretenimento surgem para atender empresarialmente a demanda de produtos ligados ao lazer e ao consumo cultural, formando, assim, a cultura de massa. Gomes ressalta que tanto a indústria cultural como a da informação tornaram-se campos sociais, por constituírem um sistema de princípios, de valores, de relações objetivas e de distribuição de

4 Gomes define como “modelo” um conjunto de práticas instituídas, de costumes e habilidades que formam um

reconhecimento que não pode ser visto apenas de forma instrumental. Onde, antes, se viam apenas os “meios”, agora, é necessário considerar a mídia e a cultura como instituição social, com sua própria natureza, valores, regras e discurso autolegitimador (GOMES, 2004, p. 57).

Desse modo, o campo da mídia visto como um sistema de relações e de interação com outros campos simbólicos é também um sistema de distribuição, de reconhecimento e de construção do capital simbólico, pois interfere na construção da imagem e confere prestígio e visibilidade, ao mesmo tempo que define os contornos do discurso e do ambiente social e político. Os estudos sobre a prática política e a relação com os meios de comunicação demonstram que a disputa política atualmente converteu-se, em grande medida, numa competição pela produção da imagem e da percepção pública dos interesses que vão se constituir como parte da agenda da arena política (GOMES, 2004, p. 239). A partir de valores sustentados na ideia de uma atividade jornalística “independente e apartidária”, a mídia é parte da política e atua politicamente, mesmo quando não corresponde ao jornalismo partidário, uma vez que os discursos e temas previamente selecionados pelos meios de comunicação não sofrem o julgamento da parcialidade, estando “fora do jogo político [partidário]” (BIROLI; MIGUEL, 2011, p. 15).

Ter acesso e influência sobre as informações veiculadas no noticiário político é parte de uma luta concorrencial entre os agentes dos campos político e jornalístico como forma de: influir na formação das agendas públicas e governamentais; intermediar relações sociais entre grupos distintos; influenciar a opinião de inúmeras pessoas sobre temas específicos; e participar de contendas políticas posicionando-se sobre elas (FONSECA, 2011, p. 41). A notícia produzida pelos grupos empresariais modernos tornou-se uma mercadoria, e, por essa perspectiva, difere de outras mercadorias porque seu produto atua no universo simbólico da construção social da realidade, podendo potencializar ou distorcer imagens e versões sobre os acontecimentos, construindo uma visão ou opinião sobre o mundo social (FONSECA, 2011, p. 47). Em seu estudo sobre a imposição da agenda “ultraliberal” de privatização e desregulamentação de atividades vinculadas ao Estado e à flexibilização do mercado de trabalho, durante os anos 1990, pelos principais jornais impressos brasileiros, Francisco Fonseca destaca que o princípio da “liberdade de expressão” teve a função ideológica de naturalizar uma visão uníssona e “supressora de vozes discordantes”, que fez das empresas jornalísticas “máquinas de produção de consenso” (FONSECA, 2011, p. 46).

No plano simbólico, o campo jornalístico é um sistema de reconhecimento organizado em torno da reputação, do prestígio e da competência, como forma de garantir autoridade e legitimidade para ocupar posição dominante dentro de um sistema estruturado de relações. A centralidade da mídia no jogo político contemporâneo está em sua capacidade de constituir ou destruir esse capital, através da visibilidade produzida no interior da arena jornalística. A comunicação deixou de ser meio para se tornar o ambiente em que o jogo político público se realiza (GOMES, 2004, p. 60). Há, portanto, uma tensão nessa interface entre os campos político e jornalístico, produzindo impacto nas formas de atuação e na definição das estratégias dos agentes do campo político, uma vez que a presença na mídia é parte relevante do processo de construção do capital político (BIROLI; MIGUEL, 2011, p. 18). A força do “homem político” está na “fé mágica” e na confiança de sua capacidade de representação do grupo que lhe confere esse reconhecimento delegado (BOURDIEU, 2007, p. 187). Nesse aspecto, a comunicação de massa está no centro do jogo político, uma vez que a atividade política está vinculada ao tipo de visibilidade e reconhecimento público consagrado pelos veículos de comunicação de massa.

Sendo assim, o campo da mídia funciona como uma esfera “autorizada e legitimada” que tem controle sobre parte dos recursos utilizados na definição da visibilidade pública, constituída pela informação política (GOMES, 2004, p. 66). Reputação, prestígio e autoridade são formas de distinção que configuram um capital político. E, para conservar a credibilidade e a confiança, é necessário preocupar-se constantemente com todos os elementos que compõem esse capital político, entre eles, o noticiário. Dessa forma, o campo político passa a interagir e a estabelecer disputas, arranjos e mediações com o campo da mídia, reconhecendo e, em alguns casos, incorporando suas rotinas de produção para que seja possível produzir conteúdo e disputar a visibilidade a seu favor (GOMES, 2004, p. 68). Partindo do pressuposto de que os discursos reproduzidos pela mídia podem orientar compreensões da política que se tornam hegemônicas no campo mais amplo da produção ideológica (BIROLI; MIGUEL, 2011, p. 7), os meios de comunicação se constituem em

instituições que desenvolvem uma atividade-chave, que consiste na produção, reprodução e na distribuição de conhecimento [...], conhecimento que nos coloca em condição de dar um sentido ao mundo, que molda nossa percepção em relação a ele e contribui com o conhecimento do passado para dar continuidade à nossa compreensão presente (MCQUAIL apud WOLF, 2005, p. xiv).

Compreender os processos e mecanismos que interferem na produção noticiosa significa refletir sobre a construção de significados da realidade social e de sua influência no sistema cognitivo dos indivíduos, quando estruturam seu conhecimento e percepção do mundo a partir do consumo, de forma cumulativa, das informações oriundas do campo da mídia (WOLF, 2005, p. 138). Mesmo que não dispute diretamente os espaços de poder do campo político, a mídia atua e interage com os elementos simbólicos de que dispõe (o conteúdo da cobertura jornalística, por exemplo), de forma que seus agentes também são ativos no processo de luta pelo poder político.

Mesmo com toda a diversidade de fontes de informação, a narrativa produzida pelos meios de comunicação convencionais (rádio, televisão e jornais) e seus novos instrumentos associados à internet (blogs de colunistas, sites de notícias e redes de relacionamento) ainda ocupam posição central na definição da agenda pública. Por conta dessa centralidade, há uma permanente competição pela “construção, controle e determinação da imagem dos indivíduos, grupos e instituições participantes do jogo político” (GOMES, 2004, p. 239). A mídia torna-se a “fiadora” do que pode ser considerado como temática relevante para disputas eleitorais ou mesmo para questões cotidianas expostas pelo noticiário (BIROLI; MIGUEL, 2011, p. 14).

Por essa razão, tem importância a produção cotidiana do discurso jornalístico. Ao analisar os processos de construção do discurso midiático, Antonio Fausto Neto (2004) observa que ele segue regras de natureza “privada”, quando sua natureza institucional seria de caráter “público”:

O ato de publicizar a política é uma tarefa institucional de natureza pública, por parte das mídias, mas o processo produtivo, através do qual o discurso político é semantizado, torna-se cada vez mais, operações definidas e engendradas no interior de cada mídia (NETO, 2004, p. 122).

A atividade jornalística agenda, para outros campos, pautas e problemas que assumem um caráter “público”, de interesse coletivo, dando ao campo da mídia a condição de um “sistema leitor”, por sua “competência enunciativa” e estruturante da produção dos sentidos no campo político (NETO, 2004, p. 122). Em sociedades definidas por sistemas políticos e de mídia abertos, a atenção do público para um determinado assunto tende a crescer na medida em que aparece na agenda da mídia (McCOMBS, 2009, p. 67). Muitas vezes, o ambiente político acaba sendo definido pelas notícias políticas, uma vez que a mídia possui a capacidade de estabelecer o

determinados aspectos em detrimento de outros: “As representações que a mídia faz da realidade passam a constituir a própria realidade” (LIMA, 2004, p. 186). Já no campo político, o papel central da mídia, especialmente da televisão, reside “na tarefa contemporânea de ‘cimentar e unificar’ o bloco social hegemônico (e contra-hegemônico)”, dentro do qual ocorre a disputa política (LIMA, 2004, p. 192).

Por isso, nos estudos de comunicação política, torna-se relevante observar os mecanismos que interferem na produção da agenda da mídia, uma vez que os assuntos tratados no noticiário tendem a determinar a dimensão e a ênfase que determinados temas terão em atividades tipicamente políticas, como as campanhas eleitorais. Tratar desse fenômeno sob a perspectiva da teoria da agenda-setting permite não apenas refletir sobre os efeitos da mídia na construção de uma realidade (WOLF, 2005, p. 150) mas também compreender a dinâmica entre agentes de campos distintos na disputa pela construção dessa realidade.

Mauro Wolf (2005) enfatiza que os estudos sobre a eficácia dos meios de comunicação consistem, muitas vezes, em compreender sua capacidade de modificar a imagem do que é ou não importante, dos temas e dos problemas primários durante um processo eleitoral ou mesmo fora dele:

Ao filtrar, estruturar e enfatizar determinadas atividades públicas, o conteúdo da mídia não se limita a transmitir o que os porta-vozes proclamam e o que os candidatos afirmam […]. Não apenas durante a campanha, mas também nos períodos intermediários, os meios de comunicação de massa fornecem perspectivas, modelam as imagens dos candidatos e dos partidos, ajudam a promover os temas sobre os quais versará a campanha e definem a atmosfera e a área específica de relevância e reatividade, marcadas por toda a competição eleitoral particular (LANG-LANG apud WOLF, 2005, p. 141).

McCombs explica que o agendamento é uma teoria sobre a transferência das imagens da mídia sobre o mundo, em que a seleção dos tópicos para a agenda jornalística e a seleção dos enquadramentos para a narrativa desses tópicos são aspectos centrais do agendamento (McCOMBS, 2009, p. 111). Esses enquadramentos ou “atributos” com que os jornalistas selecionam e enfatizam seus relatos noticiosos sugerem ao público não apenas o que pensar mas como pensar sobre os objetos (McCOMBS, 2009, p. 114). Bernard Cohen ressalta em seu livro The press and foreign policy que a imprensa possui uma grande capacidade de sugerir “sobre o que” o público deve pensar (COHEN apud AZEVEDO, 2004, p. 43). Os mecanismos de

seleção e filtros utilizados pelos meios de comunicação constroem uma hierarquia de predicados que podem ser realçados ou ignorados, receber uma valoração positiva ou negativa, constituindo- se num instrumento poderoso do campo da mídia (TRAQUINA, 2000, p. 32).

O conteúdo produzido pelo noticiário pode desempenhar um papel político quando é organizado a partir de uma matriz ideológica limitada. Nesse sentido, o conceito de enquadramento oferece um instrumento eficaz para examinar esse conteúdo oferecido pela mídia, que pode afetar o processo de formação das preferências políticas da audiência a partir dos “marcos interpretativos, construídos socialmente” (GOFFMANN apud PORTO, 2004, p. 78). O estudo sobre o enquadramento auxilia na compreensão dos efeitos da cobertura da mídia e na estruturação e organização das imagens, tanto no plano sociológico como no plano político, conformando uma opinião ou sugerindo escolhas. As conclusões dos estudos de Ervin Goffman demonstram que os indivíduos tendem a perceber os eventos e as situações de acordo com “enquadramentos que permitam responder à pergunta: o que está ocorrendo aqui?”. As respostas que o indivíduo encontra para essa pergunta, a partir do que ele ouve, lê ou vê no noticiário, são marcos interpretativos oferecidos diariamente pela narrativa jornalística e que permitem às pessoas dar sentido aos eventos ou às situações sociais (PORTO, 2004, p. 78).

1.4 Quem define a agenda: a relação fonte-jornalista e os processos de construção da

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