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Capítulo 4. A construção do discurso sobre o aborto no debate eleitoral

4.4 Análise dos dados

4.4.1 Enquadramentos predominantes e seus principais registros nos jornais

4.4.1.3 A crítica do campo jornalístico ao marketing na política

Os enquadramentos vinculados à ação do campo político – aborto faz parte das estratégias

dos candidatos na campanha eleitoral e candidatos mudam de posição de forma oportunista

também podem demonstrar um julgamento depreciativo do campo jornalístico às ações dos agentes políticos na disputa pelo voto. Tais evidências se expressaram em textos noticiosos ou de opinião que associaram as estratégias de marketing e ajustes na condução da campanha ao oportunismo eleitoral para tentar adequar os candidatos à agenda conservadora, com o objetivo de conquistar os votos do eleitorado religioso em detrimento de um debate programático.

O Globo reclamou que, ao invés de os candidatos Dilma Rousseff e José Serra

“anunciarem suas ideias para conquistar o eleitor e transformá-las em políticas públicas”, agora “como qualquer produto, [o candidato] é moldado [...] às necessidades do público, pouco importando se o que ele diz corresponde ao que pensa” (BLOCH, 2010, p. 17). Para reforçar a afirmação do lead, o jornal ouve intelectuais, pesquisadores, filósofos e historiadores com reconhecimento e legitimidade em suas áreas, como José Murilo de Carvalho e religiosos como frei Leonardo Boff, para criticar a retórica política orientada pelo marketing eleitoral.

Na Folha, o colunista do jornal Fernando de Barros e Silva classificou de “esdrúxulo” o debate, uma vez que os dois candidatos têm origem na esquerda e fazem parte do campo progressista, mas começaram o segundo turno pautados

pela cabeça de Severino Cavalcanti [ex-presidente da Câmara]. Disputa-se para saber quem é mais filho de Deus ou quem é mais dramaticamente filho de Deus. [...] Serra na ofensiva como neoaliado do Senhor e Dilma, na defensiva, embromando os fiéis desempenham papéis complementares de uma mesma regressão política (BARROS E SILVA, 2010a, p. A2).

Ainda que os textos ofereçam argumentos críticos às posições conservadoras adotadas pelos candidatos, o foco no enquadramento “oportunismo eleitoral” reforça o que foi afirmado anteriormente sobre a pouca pluralidade de posições a ocupar os espaços para a controvérsia legítima na mídia. Mesmo que o registro feito pelo colunista da Folha considere uma “regressão” a posição dos candidatos, o direito ao aborto permanece “fora” dos argumentos aceitáveis no debate proposto. Isso também se evidencia nos registros do jornal O Estado de S. Paulo ao registrar a mudança de posição e a adequação dos candidatos à temática religiosa, por exemplo, na manchete do dia 9 de outubro, “Na TV, Dilma e Serra falam de aborto e se dizem a favor da vida”. Embora o impresso concentre os atributos negativos à mudança de opinião da candidata Dilma Rousseff (PT) – ressaltando a trajetória desde o tratamento do aborto como “caso de saúde pública”, passando pelo lançamento da “carta ao povo de Deus”, em agosto (o que evidencia que a campanha petista já havia detectado evidências do impacto da temática religiosa nas eleições desde essa época), até chegar aos programas eleitorais do segundo turno, quando se apresentou como “defensora da vida e da família” (DILMA, 2010i, p. 11) –, permanece o silêncio sobre “um lado”. Na verdade há um “não lado” que é ignorado quando a perspectiva hegemônica dos enquadramentos noticiosos foca apenas os ajustes dos candidatos em direção aos argumentos religiosos. Em outro ângulo, o colunista de política do Estadão João Bosco Rabello deu voz para uma vertente da disputa interna ao campo político, sem, contudo, ampliar a pluralidade de vozes a tratar do aborto. Sua coluna reproduziu uma crítica que responsabilizava a candidata Dilma Rousseff (PT) por ter “aceitado” a temática do aborto como agenda eleitoral:

Aceitar o debate plebiscitário sobre o aborto foi o grande erro cometido por Dilma Rousseff, na avaliação de políticos e analistas. Refém do sim ou do não, a candidata foi flagrada em contradição, o que se tornou mais importante

eleitoralmente que o tema. ‘A verdade não dá voto, mas a mentira tira’, resumiu um experiente político, ao referir-se à afirmação de Dilma de que sempre foi contra o aborto. Para a maioria, no mínimo, a candidata não passou sinceridade ao eleitor (RABELLO, 2010, p. 10).

Tal afirmação de alguma forma “condena” a candidata que foi o centro dos questionamentos sobre o aborto por “entrar” no debate. É de se perguntar se realmente haveria outra possibilidade de escolha no contexto daquela eleição. As evidências colhidas por esta pesquisa nos textos informativos demonstram que houve um conjunto de interesses políticos que se tornaram comuns a vários grupos dos campos político e religioso e da mídia que tornou o aborto o centro do debate público e, assim, o foco da cobertura eleitoral no segundo turno. Além disso, nesse exemplo, é possível perceber o papel do campo jornalístico na construção de uma representação simbólica em torno dos candidatos, definido por um conjunto de atributos ressaltados e associados pelos jornalistas a esses candidatos. Nesse aspecto, apesar de o candidato José Serra (PSDB) também ter sido retratado como um político que ajustou seu discurso para reforçar a retórica religiosa, a maior parte dos textos associados à sua imagem possuem enquadramentos que realçam atributos vinculados à ideia de “coerência” com a sua trajetória (NA BAHIA, 2010, p. 8), desde quando ministro da saúde34.

Na tabela 9 é possível identificar um conjunto de enquadramentos que construíram um discurso noticioso posicionado, orientando uma interpretação em que a temática do aborto foi vista como parte das estratégias dos candidatos (em 262 textos ou 52%) na competição pelos votos do eleitorado religioso, reforçada pelo viés de que os candidatos mudam de opinião sobre

o aborto de forma oportunista (10%). Sendo assim, em mais de 62% dos textos presentes nesta

pesquisa encontramos enquadramentos voltados para as estratégias eleitorais e as movimentações “oportunistas” dos candidatos. Neste último caso, os enquadramentos estão concentrados, sobretudo, em questionamentos à conduta da candidata Dilma Rousseff e de seu partido (PT).

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Foi durante o mandato de José Serra como ministro da Saúde, em 1998, que o Governo Federal normatizou o atendimento pelo SUS a mulheres vítimas de estupro, para a realização do aborto.

4.4.2 Enquadramentos religiosos: o predomínio de valores conservadores na narrativa

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