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Capítulo 4. A construção do discurso sobre o aborto no debate eleitoral

4.8 As vozes e os enquadramentos predominantes e os mecanismos que dão sentido à notícia

4.8.2 Vozes predominantes no texto

4.8.2.3 As vozes religiosas nos enquadramentos

O segundo grupo de enquadramentos predominantes no noticiário foi representado pelas vozes religiosas. Essas vozes materializaram argumentos em torno de tabus religiosos, centrados em valores que produziram um noticiário homogêneo favorecendo o predomínio e a “naturalização” da cobertura pelo viés contrário ao direito ao aborto. Dos 43 textos em que a ênfase estava nas críticas ao aborto porque vai contra os princípios da igreja, a maioria das vozes foram de representantes institucionais das igrejas (57%). Os candidatos à Presidência foram 13% das manifestações, seguidos pelos especialistas e representantes governamentais (6%, cada um). Quando a candidata Dilma Rousseff (PT) aparece em textos com esse enquadramento, a ênfase recai sobre declarações em que a ela ressalta seu “vínculo” com os princípios da Igreja

católica, sem associar essas manifestações a posicionamentos anteriores, como foi o registro de suas declarações sobre o aborto e o batismo do seu neto no Rio Grande do Sul: “O batismo é um sinal. Fui batizada, fui crismada. E eu acho que meu neto tinha que ser batizado. É a religião da minha família e a minha também” (ROCHA, 2010, p. Especial 8).

Argumentos em que a candidata procura “explorar” sua religiosidade reforçam uma visão contraditória e oportunista de sua imagem, uma vez que ela foi a principal personagem da polêmica sobre o aborto no debate eleitoral, sendo sempre lembrada pelo noticiário, seja no texto informativo, nas falas dos religiosos ou em declarações dos candidatos concorrentes, como alguém que já defendeu a descriminalização do aborto. Porém, nesse enquadramento há uma preocupação em enfatizar o vínculo com as tradições e a doutrina das igrejas. Os candidatos à Presidência foram retratados nesses enquadramentos, em geral, com declarações reafirmando sua posição de subordinação, reconhecimento ou respeito aos preceitos religiosos. No episódio envolvendo as manifestações do papa Bento XVI contra o aborto, a uma semana da eleição em segundo turno, José Serra (PSDB) aparece, junto com a petista, em declarações legitimando as mensagens do papa “em defesa da vida” (CAMAROTTI, 2010, p. 3).

Outro enquadramento vocalizado pelas posições religiosas, contra o aborto, em defesa da

vida, é igualmente dominado pelo discurso de religiosos que representam instituições (45%).

Como já vem se demonstrando neste estudo, a temática do aborto está concentrada num questionamento à candidata Dilma Rousseff (PT). É ela quem precisa “dar explicações”, reafirmar seus posicionamentos e reforçar uma imagem de submissão aos preceitos religiosos. Em geral, os textos jornalísticos a colocam sempre numa posição defensiva, sendo questionada ou cobrada por suas posições em relação ao assunto.

O contexto desses dois enquadramentos religiosos enfatiza uma candidata “temente a Deus”. Nesse segundo enquadramento, por exemplo, a candidata registra sua “posição pessoal contra o aborto”. Além disso, os textos procuram demonstrar os arranjos políticos e os compromissos assumidos por ela e pelo PT com os religiosos de forma a não alterar a legislação atual sobre o aborto, acolhendo as demandas desse segmento social (FALCÃO, 2010, p. A10). Aqui, os argumentos religiosos são “universalizados” nos textos, e o questionamento aos candidatos é sobre seu comportamento diante desse contexto. Um exemplo desse enquadramento foi a reportagem em que a candidata Dilma Rousseff (PT) destacou sua “posição pessoal” contrária ao aborto, durante visita a jovens católicos numa igreja em Belo Horizonte:

Queria aproveitar para deixar claro a minha posição: pessoalmente sou contra o aborto. Até porque seria estranho quando há uma manifestação da vida no seio da minha família, porque meu neto acabou de nascer eu defendesse a posição a favor do aborto. Sou contra porque é uma violência contra a mulher (HERDY; GALGO; REMÍGIO, 2010, p. 12).

Nesse texto há uma evidência da hierarquia e do desequilíbrio com que o aborto foi tratado na construção da narrativa jornalística e do peso diferenciado para distintas posições presentes na sociedade. O caráter conflitivo das visões divergentes (sobre o aborto) é tratado de forma distinta no noticiário. Ou seja, para a candidata Dilma ter posições consideradas “aceitáveis”, é preciso que ela reafirme o aborto como “não aceitável”, sendo necessário marcá-lo de forma negativa nos espaços de controvérsia constituídos pela mídia.

São elementos simbólicos como o registrado acima com enquadramentos enfatizando a perspectiva religiosa que colaboraram para reforçar posições das igrejas, ao universalizar valores, ocultar ou registrar de forma desigual os conflitos, silenciando grupos ou posicionando negativamente perspectivas socialmente sub-representadas.

Na perspectiva das estratégias político-eleitorais, a utilização pela mídia dos enquadramentos com ênfase religiosa beneficiou determinadas posições vinculadas ao candidato José Serra (PSDB) e determinou uma cobertura questionadora à candidata petista. Isso ocorreu porque a maior parte dos textos com menções à candidata Dilma Rousseff (PT) estava vinculada a um contexto de permanente comparação entre declarações passadas e suas falas no contexto das eleições. A contradição nas falas da candidata foi explorada no enquadramento “mudar de posição de forma oportunista” (a favor da descriminalização para contra a descriminalização). Já o candidato tucano, José Serra (PSDB), não é instado a confrontar suas posições anteriores com as do momento eleitoral. Os enquadramentos definidos pela perspectiva religiosa formam um conjunto de 66 textos noticiosos (19% dos 341 textos).

Por fim, a tabela 12 revela a ausência de vozes no enquadramento em defesa da

descriminalização do aborto como um direito à autonomia da mulher. Por se tratar de uma

análise de textos noticiosos, produzidos no interior das redações, nesse enquadramento ficam mais evidentes os limites do pluralismo midiático na produção e difusão de conteúdo e a necessidade de discutir tais restrições, uma vez que o campo jornalístico é uma arena importante do debate público, em que as representações e o contexto social construído pelo noticiário

formam o ambiente onde a luta política se realiza (MIGUEL; BIROLI, 2011, p. 49). Para um debate plural seria necessário que todas as vozes de uma controvérsia pudessem estar presentes na arena noticiosa. No entanto, os dados da tabela 12 demonstram que vozes dissidentes ou “desviantes” em favor da descriminalização do aborto como um direito autônomo da mulher sobre seu corpo não foram consideradas na produção noticiosa. Não foi encontrado nenhum texto noticioso nesse enquadramento. Em toda a pesquisa, foram identificados somente quatro textos em que a autonomia da mulher foi o enquadramento predominante, todos em textos de opinião (uma entrevista e duas colunas na Folha de S.Paulo e um artigo em O Globo). Ao se cruzarem as tabelas dos enquadramentos e das vozes predominantes nos textos noticiosos (tabela 12), não foram encontrados registros de texto informativo com essa ênfase.

As vozes em favor da descriminalização encontraram espaço e legitimidade em textos noticiosos em que os enquadramentos estavam vinculados à saúde pública. Nesse caso, foram 14% (seis textos) com a presença de vozes representando movimentos sociais em favor da descriminalização do aborto e 16% (sete textos) de vozes representando especialistas, pesquisadores ou integrantes de universidades num total de 28 textos (8% dos 341 textos). No caso das vozes de movimentos sociais, dos seis registros, quatro foram em notas de colunas fixas, como o Painel (Folha de S.Paulo), Panorama Político/Ilimar Franco (O Globo) e Direto da Fonte/Sonia Racy (O Estado de S. Paulo), além de duas pequenas matérias. Os registros não produziram controvérsias, mas informavam posições de movimentos. Na coluna de Ilimar Franco, por exemplo, a nota registra carta aberta do movimento gay pedindo que os candidatos se “lembrem de seu passado” e “não maculem suas trajetórias” ao assumir posições retrógradas quanto ao casamento gay e à descriminalização do aborto, pelo menos no que já está definido como lei (FRANCO, 2010, p. 2).

Tratamento semelhante deu o Estadão, com um registro publicado na coluna de Sonia Racy do manifesto lançado pelo movimento Católicas pelo Direito de Decidir defendendo que os candidatos “deixem o viés moral e religioso da discussão e apresentem propostas de políticas publicas”. Na voz de Rosângela Talib, a colunista reproduziu uma pequena síntese do pensamento do grupo: “A favor da vida todos somos. Principalmente das mulheres que perdem as suas fazendo abortos ilegais. Nenhuma mulher faz aborto por que quer” (RACY, 2010, p. D2). Foram registros pequenos, de cunho informativo, que não influenciaram a cobertura jornalística para além da nota publicada nessas edições. Já a reportagem da Folha de S.Paulo não deu

destaque sequer no título da matéria em que registrou o ativismo das mulheres envolvidas na luta feminista pela descriminalização do aborto. Optou por abrir o texto num tema mais relevante para o campo da mídia do que para a luta feminista. O jornal registrou, no final de uma página, uma pequena matéria sobre as resoluções aprovadas na 11ª Conferência Regional da Mulher na América Latina com ênfase para a aprovação de temas como “o controle social da mídia, inclusão de casais do mesmo sexo na Previdência e revisão das leis que punem mulheres que praticam aborto”. O registro ressaltou ainda que a Ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Nilcéia Freire, também assinou o texto (TEXTO, 2010, p. A8).

Nos textos em que as vozes de especialistas estiveram presentes, a temática do aborto teve um tratamento efetivamente menos religioso e mais vinculado às questões de ciência e saúde pública. Um caso específico provocou em julho a abordagem nesse enquadramento: a divulgação do resultado de uma pesquisa feita pelo Ministério da Saúde e pelo Instituto do Coração (Incor) que revelou ser a curetagem o procedimento mais solicitado pelo SUS entre 1995 e 2007. As vozes presentes nos textos de O Globo e do Estadão foram de pesquisadores e profissionais da saúde explicando pontualmente os resultados do estudo e as consequências do aborto clandestino para o sistema público (TOLEDO, 2010, p. A15; BARBOSA, 2010, p. 14). Outro exemplo foi a grande reportagem de capa feita por O Globo, em outubro, apresentando dados, estatísticas e vozes de mães e avós de mulheres da periferia que perderam suas vidas após terem feito aborto clandestino (BENEVIDES; FARAH, 2010a, p. 3). Essa foi a edição que reuniu o maior volume de textos jornalísticos durante o período eleitoral de 2010 em favor de uma perspectiva “aceitável” para o tema do aborto. Em outras situações, os textos com a presença de vozes em defesa do tratamento do aborto como caso de saúde pública estavam vinculados a aspectos históricos e à dificuldade de implantar a lei prevista desde 1940: “Embora prevista desde 1940, somente em 1998, com uma norma técnica assinada pelo então ministro da Saúde, José Serra, é que a interrupção da gravidez passou a ser oferecida pelo sistema público de saúde” (FORMENTI, 2010, p. A10). Em geral, esses textos reconhecem a dificuldade do tratamento do tema no Brasil e como o assunto é “recorrente em campanhas eleitorais”, apontado como “responsável por derrotas de candidatos”, deveria ser tratado como saúde publica, mas “virou um verdadeiro cerco aos candidatos”, registrou a Folha de S.Paulo na voz da ativista da ONG Rede Feminista da Saúde, Télia Negrão (FORMENTI, 2010, p. A10).

Foram encontrados 28 textos jornalísticos que trataram o aborto como caso de saúde pública (8% do total de 341 textos jornalísticos). Conforme mostra a tabela 12, somente 12 textos reproduziram vozes de ativistas em favor da descriminalização do aborto (seis) ou de médicos, especialistas e pesquisadores com a mesma ênfase (sete textos). Outras vozes relevantes nesse enquadramento foram os candidatos à Presidência: Plínio de Arruda Sampaio (PSOL) em defesa da descriminalização da maconha e do aborto; José Serra (PSDB), que defendeu a permanência das regras “como está: os casos previstos em lei para o atendimento pelo SUS” (O PT, 2010, p. 10). Novamente, o maior volume de textos nesse enquadramento (assim como em outros) recaiu sobre a candidata Dilma Rousseff (PT). Suas declarações continham sempre o posicionamento de ser “pessoalmente contra o aborto”, mas, nesse caso, defendendo o tratamento do tema como caso de saúde pública (AMORIM, 2010, p. 15).

Cabe ressaltar que, apesar de esse enquadramento permitir outro ângulo para a discussão pública sobre o aborto, mais “aceitável”, ele não teve a mesma frequência nem a mesma saliência que os textos jornalísticos que enfatizavam enquadramentos político-eleitorais e religiosos, sempre voltados para a condenação da prática, o que produziu um desequilíbrio nas posições em disputa na arena discursiva da mídia.

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