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A definição do aborto como discurso estratégico na disputa eleitoral de 2010

Capítulo 4. A construção do discurso sobre o aborto no debate eleitoral

4.2 A definição do aborto como discurso estratégico na disputa eleitoral de 2010

O conteúdo produzido pelo noticiário pode desempenhar um papel político quando constrói uma realidade a partir de enquadramentos que reforçam determinadas posições ou grupos socialmente dominantes. Numa campanha eleitoral, os cidadãos costumam ter acesso às informações políticas em geral de duas formas. A primeira é organizada pelo campo político em suas estruturas partidárias com agentes dotados de competência comunicacional e de conhecimento do mundo político, além de domínio sobre as técnicas da linguagem publicitária e de marketing capazes de “vender” o cliente político (GOMES, 2004, p. 157). A segunda forma é mediada pelo campo jornalístico, que costuma ser visto pela sociedade em geral como confiável e legítimo para a função e com a responsabilidade de selecionar episódios da agenda política que vão definir o conteúdo noticioso a ser apresentado aos leitores. Essas informações são seletivas, o que significa dizer que o horizonte de informação, temas e conhecimento que eventualmente pode orientar as decisões de um indivíduo “é um campo selecionado e estruturado por outrem” (GOMES, 2004, p. 183).

Tenho, então, um horizonte de conhecimento, um vocabulário do que posso pensar e do que estou em condições de discutir, portanto, categorias com que organizo a minha ideia do que se passa no campo político, uma agenda onde constam as prioridades que devem motivar meu agir político [...] outorgado por informadores do universo da comunicação (GOMES, 2004, p. 183).

Nesse contexto, é importante perceber que os temas políticos retratados no noticiário são caracterizados por uma disputa simbólica sobre qual interpretação irá prevalecer na narrativa jornalística cujo resultado diário beneficia certas alocações de valores. Assim, o campo jornalístico pode designar uma importância desigual e valorizar determinadas posições quando decide “quem deve falar, sobre o que e em que circunstâncias” (COOK, 2011, p. 206).

O enquadramento, portanto, define a ideia central que organiza o conteúdo noticioso a partir da ênfase de algum aspecto da realidade dando a ele mais saliência em relação a outros aspectos (McCOMBS, 2009, p. 137), produzindo “pacotes interpretativos” (PORTO, 2004, p. 81) que vão orientar a percepção do público para determinados atributos presentes no

conteúdo da mensagem. Embora existam pesquisas bastante abrangentes que utilizam o conceito de enquadramento de diversas formas e com sentido distinto e variado, neste trabalho, compreendemos os enquadramentos da mídia como “uma técnica importante para identificar os padrões utilizados pelo campo jornalístico para selecionar determinados episódios da vida cotidiana” (PORTO, 2004, p. 90).

No estudo sobre o agendamento do aborto na cobertura eleitoral de 2010 percebe-se que os enquadramentos enfatizaram de forma predominante as vozes religiosas que orientaram um viés conservador para as falas e imagens presentes nos discursos dos agentes políticos e candidatos à Presidência da República. Esses elementos presentes no texto noticioso promoveram uma ênfase particular, conferiram um recorte específico para os acontecimentos e construíram um sentido que organizou uma interpretação específica dos assuntos narrados.

Mauro Porto (2004) apresenta um conjunto de resultados de pesquisas americanas que demonstram uma variedade de enquadramentos utilizados pelos jornalistas para organizar a produção das notícias. Em alguns casos de cobertura eleitoral no jornalismo estadunidense, pesquisadores identificaram um foco nas propostas e posições dos candidatos, adotando um “enquadramento temático” (PORTO, 2001, apud PORTO 2004, p. 81). Em outros, o enquadramento foi o de “corrida de cavalos”, apostando-se num noticiário que destaca o “sobe e desce” dos candidatos nas pesquisas eleitorais e as estratégias adotadas pelas campanhas para garantir um bom desempenho nas intenções de voto dos eleitores. No caso das eleições em 2010 no Brasil, esses dois mecanismos foram perceptíveis.

O enquadramento temático no primeiro turno vocalizava os escândalos políticos envolvendo o governo Lula e a candidata Dilma Rousseff (PT), como vimos no capítulo 3 deste trabalho. Já no segundo turno, o aborto foi o tema que predominou na agenda da cobertura eleitoral. Apoiada em pesquisas eleitorais, a cobertura jornalística enfatizou o “sobe e desce” dos candidatos, dirigindo, com isso, a atenção do leitor para os enquadramentos que enfatizavam as estratégias a serem adotadas pelos candidatos para ajustar suas posições em relação ao aborto e mitigar os eventuais resultados negativos que o tema produzia na disputa pelo voto do eleitorado religioso, o público-alvo dos candidatos de acordo com os registros noticiosos do período.

Seja na agenda dos escândalos políticos como na do aborto, os enquadramentos predominantes nos textos vinculados à candidata governista enfatizaram questionamentos críticos sobre suas posições em relação aos dois temas – o que não ocorreu na mesma proporção a

nenhum dos outros candidatos que disputavam o mesmo pleito. No caso do aborto, os candidatos José Serra (PSDB) e Marina Silva (PV), em geral, apareceram no noticiário como vozes que reforçaram enquadramentos negativos às posições da petista. Ou seja, o contexto do noticiário considerava como fala legítima os valores defendidos pelo campo religioso. A partir desses enquadramentos, o tucano José Serra (PSDB) e a evangélica Marina Silva (PV) estavam em posições ofensivas com argumentos, opiniões e ênfases que corroboravam as críticas à petista Dilma Rousseff (PT), retratada, nessa perspectiva, como alguém na defensiva, em geral posicionada no noticiário como alguém que deveria “dar explicações”.

É importante ressaltar que há sempre uma seletividade no momento de escolher os elementos que vão compor o relato noticioso, uma vez que essa seletividade é organizada a partir de uma perspectiva individual (do jornalista) que orienta suas avaliações em conjunto com os processos estruturados e hierarquizados do campo jornalístico na seleção da mensagem. No entanto, Timothy Cook (2011) chama a atenção que em alguns casos essa seletividade pode produzir um viés quando ocorre a repetição e a seleção sistemática de determinados agentes ou a ênfase para determinados atributos: “A seletividade leva ao viés quando, dia sim, dia não, certos tipos de atores, partidos políticos e questões receberem maior cobertura e forem apresentados mais favoravelmente que outros” (COOK, 2011, p. 207). Os estudos sobre os enquadramentos da notícia também contribuíram para algumas constatações: mesmo considerando que os dois principais candidatos em 2010, Dilma Rousseff (PT) e José Serra (PSDB), tiveram presença quantitativamente semelhante no noticiário, isso não significa dizer que os espaços foram “equilibrados”. Os enquadramentos predominantes nesta pesquisa permitem identificar um viés na cobertura jornalística desfavorável para Dilma, em textos em que a narrativa construída ofereceu uma interpretação negativa sobre sua conduta em relação ao aborto: seja a favor da prática ou contra o aborto, sua posição sempre foi definida como “desviante”, movida por uma estratégia eleitoral para conquistar os votos do eleitorado religioso.

Os enquadramentos noticiosos envolvendo a descriminalização do aborto nas eleições de 2010 estavam concentrados em dois eixos centrais: um de ordem política, em que predominavam as ênfases nas “estratégias eleitorais” dos candidatos para conquistar o voto dos eleitores religiosos e para a postura “oportunista”, atributo principalmente vinculado à candidata Dilma Rousseff (PT); e outro, concentrado em valores religiosos com ênfase na condenação do aborto por ser uma “prática contrária aos princípios da igreja” e na oposição entre o aborto e “defesa da

vida, da família”. Tais enquadramentos moldaram o cenário de abordagem do tema na disputa eleitoral, organizando um relato noticioso propício para ativar a desconfiança do eleitor sobre os candidatos, sobretudo a candidata Dilma Rousseff (PT), principal foco dos questionamentos por suposta mudança de posicionamento sobre o aborto.

Estudos que analisaram os enquadramentos da mídia e o tema do cinismo político demonstram que, quando o noticiário adota um “enquadramento estratégico”, ou seja, chamando a atenção para motivações voltadas à manipulação ou “adequação de posições” aos interesses políticos, “o cinismo e a desconfiança do publico são ativados” (CAPPELA; JAMIESON apud PORTO, 2004, p. 86).

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